Arquidiocese de Braga -

18 março 2024

IA pode conduzir a uma erosão da confiança nas instituições democráticas

Fotografia

DM - José Carlos Ferreira

A segunda sessão do ciclo de conferências Nova Ágora 2024 foi diferente do modelo adotado até agora, na medida em que durante o serão, não houve um morador, mas dois investigadores a interagir entre si e com o público

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O Cónego Eduardo Duque alertou ontem para o perigo da Inteligência Artificial poder conduzir a uma erosão da confiança nas instituições democráticas.

Este foi um alerta que deixou na abertura da segunda sessão do ciclo de conferências “Nova Ágora” 2024, que decorreu na sexta-feira, dia 15, no Espaço Vita, em Braga, numa organização da Arquidiocese de Braga.

Nesta sessão, que teve como tema central “Inteligência Artificial e Democracia”, participaram como oradores Daniel Innerarity, professor de filosofia política e social, investigador na Universidade do País Basco, titular da cátedra de Inteligência Artificial e Democracia no Instituto Europeu de Florença; e Miguel Poiares Maduro, professor da Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa, e ex-diretor da Escola de Governação Transnacional do Instituto Universitário Europeu, em Florença.

Na abertura desta segunda sessão, o diretor da “Nova Ágora”, o Cónego Eduardo Duque considerou que a Inteligência Artificial “pode ser um poderoso auxílio para o desenvolvimento das nossas sociedades, mas também acarreta inúmeros desafios”. Segundo sustentou, as redes sociais digitais vieram revolucionar a forma como nos dias de hoje as informações são disseminadas. “Antigamente, os jornais chegavam apenas a algumas comunidades e só alguns tinham o privilégio de os poder ler e compreender. Hoje, grande parte da população, maioritariamente jovens e adultos, têm acesso a redes sociais e estão constantemente conectados, a enviar e a receber mensagens. O ritmo acelerou-se”, disse.

Para o Cónego Eduardo Duque, atualmente, as pessoas têm acesso a uma quantidade excessiva de informação, disse usando um alerta que Daniel Innerarity, um dos oradores desta sessão, tem deixado na sua produção filosófica. “Se, por um lado, este facto é extraordinário, dado que democratizou o acesso à informação, por outro, acarreta novos desafios, na medida em que pode facilitar a manipulação das pessoas através da disseminação de informação”, sustentou. 

Socorrendo-se da informação veículada por Miguel Poiares Maduro, também orador desta sessão, que contou o facto de na Rússia terem surgido milhares de novas contas no Twitter a seguir à invasão da Ucrânia para replicar a informação oficial do governo russo, por forma a conferir-lhe mais credibilidade, o sacerdote deixou o alerta que, “se é possível disseminar a verdade de forma mais rápida, também é possível disseminar a mentira com igual celeridade”. “Como podemos viver numa sociedade assim? Diríamos uma sociedade doente, em que não sabemos em que nem em quem acreditar”, questionou. 

Para o Cónego Eduardo Duque, poderosa capacidade da IA tanto pode ser utilizada para ajudar o ser humano a viver melhor, como também para disseminar informação falsa. “Será possível regular as plataformas digitais, levando-as a operar de acordo com os princípios democráticos? Mas, se o digital não tem fronteiras, como regular a informação entre países tão diversos, como podem ser os europeus e a China, por exemplo?”, questionou.

Transformação digital está a alterar pressupostos de funcionamento da democracia

O professor da Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa, e ex-diretor da Escola de Governação Transnacional do Instituto Universitário Europeu, em Florença, Miguel Poiares Maduro, defende que a transformação digital está a alterar “de forma profunda” alguns dos pressupostos de funcionamento da democracia.

Segundo Miguel Poiares Maduro, a transformação digital “está a alterar a forma como formamos a nossas opiniões, está a alterar a forma como nós determinamos coletivamente aquilo que são os factos, o que é verdade, ou o que é mentira, e está a alterar a forma como nós interagimos”. “E altera de uma forma  que, do meu ponto de vista, tem trazido imensos problemas a essa capacidade de reconciliação”, acrescentou. Para o professor da UCP, as pessoas, com a internet, estão a confundir informação com conhecimento, achando, por exemplo que, tendo a mesma informação que um médico que prescreve uma receita para uma doença, também temos, com o recurso às plataforma digitais, a mesma formação que o médico. “E fazemos isso em relação a tudo. E isto é uma mudança abismal na forma como depois nós produzimos conhecimento, tomamos posição, tomamos uma preferência. No fundo, antigamente nós tínhamos referências a quem dávamos credibilidade, a quem atribuímos esse conhecimento. Hoje em dia, não. Nós achamos que podemos conhecer isso”, disse.

Por outro lado, defendeu ainda, o tempo médio que os seres humanos passam hoje é cada vez menor, porque “a forma como o nosso cérebro se aprende a comportar nas redes sociais está a transferir-se para outras áreas da vida” e, “ficamos mais prisioneiros quanto mais emocional for a nossa reação”. “E isto significa que somos cada vez mais seres emocionais do que deliberativos, menos racionais” com consequências ao nível do pensamento e da vontade política, acrescentou.

A Democracia vai sobreviver

Daniel Innerarity, professor de filosofia política e social, investigador na Universidade do País Basco, titular da cátedra de Inteligência Artificial e Democracia no Instituto Europeu de Florença, questionando se a democracia irá sobreviver à Inteligência Artificial, mostrou-se convicto que sim.

Segundo sustentou, a razão da sua convicção é essencialmente epistemológica. “Porque as máquinas são habilitadas para um tipo de decisões e nós, os humanos, somos habilitados para outras. Não vejo que a Inteligência Artificial possa acabar com a Democracia. Isso não pode acontecer porque ela não é capaz de assumir determinadas maneiras de decidir que são muito específicas dos seres humanos”, realçou.

Portanto, para Daniel Innerarity, os erros dos humanos e os erros das máquinas compensam-se uns aos outros porque temos erros completamente distintos. Segundo sustentou, como estas naturezas distintas, os humanos e as máquinas podem-se compensar. “Uma máquina tem muitíssimos dados. O input e o output estão claros, as soluções são binárias, há uma estabilidade, e um determinado nível de certeza. Esta parte do processo político, as máquinas fazem-no muito bem. Nós, os humanos, somos bons em quê? Os humanos são bastante bons quando é preciso decidir com poucos dados. Num horizonte de grande volatilidade, ambiguidade, incerteza e dúvida, decidimos relativamente bem. Se colocarmos uma máquina a decidir neste contexto que acabo de referir, ela tomará uma decisão desastrosa, pior que a nossa”, sustentou. 

Para o professor de filosofia política e social, os humanos são muito bons quando é preciso decidir com poucos dados. “Eu acredito que esta ideia que os humanos vivem num contexto de muita incerteza é uma boa notícia para a democracia”, o contexto mais favorável “para que as nossas decisões que tomamos sejam as mais racionais”, disse. O mais equivalente ao que vivemos hoje é o momento da invenção da impressão

Dois especialistas a conversarem sobre Inteligência ArtificIal e Democracia

A segunda sessão do ciclo de conferências Nova Ágora 2024 foi diferente do modelo adotado até agora, na medida em que durante o serão, não houve um morador, mas dois investigadores e amigos a conversar sobre Democracia e Inteligência Artificial, que se colocaram questões e que, no fim, se sujeitaram às questões do público.

E foi neste último momentos que Miguel Poiares Maduro mostrou de forma bem ilustrada o momento que vivemos na atualidade. “O equivalente mais próximo ao que se está a passar agora que eu encontro é a impressão. Imaginem o mundo antes da impressão, em que a informação só era transmitida através de cópia à mão, redigida. A disseminação de informação, de ideias era muito mais lenta. Por alguma razão, o grande período de crescimento económico e do conhecimento científico foi o da invenção da impressão, porque permitiu que o conhecimento criado num lado facilmente se espalhasse por outros, e que esse conhecimento fosse utilizado por outros  para gerar ainda mais conhecimento”, disse. Mas, salientou Poiares Maduro, da mesma forma que passou a circular boas ideais e conhecimento, passou a ser mais fácil circular também as informações falsas e as péssimas ideias. “Por alguma razão nós tivemos guerras associadas a esse período. Isto teve que ver com  a facilidade de disseminação de certas ideias”, acrescentou. Para o professor da UCP, a Inteligência Artificial, nos dias de hoje, pode promover a democracia, mas também pode ser uma fonte enorme de poder e controlo para os regimes autocráticos.

Nem inteligente nem artificial

Para Daniel Innerarity, professor de filosofia política e social, investigador na Universidade do País Basco, titular da cátedra de Inteligência Artificial e Democracia no Instituto Europeu de Florença, a Inteligência Artificial nem é inteligente, nem é artificial. Segundo sublinhou, existe um grande consenso entre comunidade científica que estuda a Inteligência Artificial que estamos completamente errados em relação a esta denominação. “Quando denominas algo com um nome equivocado, aquilo complica-se. E a Inteligência Artificial, não é inteligente e não é artificial. As duas coisas estão mal. Ela é astuta, calcula bem. E artificial não o é porque usa a tecnologia da nuvem, e os bancos de dados estão a consumir uma quantidade de energia brutal, disse. Para Daniel Innerarity, o que as máquina nos ensinaram é que somos muito hábeis na hora de aprender. As máquinas podem aprender inglês com grande facilidade, mas não conseguem atar uns sapatos. Um filho reconhece a sua mãe ao fim de um minuto de a ver pela primeira vez. Não precisa de grandes dados, Uma máquina de acesso a um edifício também podia reconhecer essa senhora e, provavelmente, melhor que o filho. Mas, tem de fazer um grande esforço de acesso aos dados. São dois sistemas de aprendizagem completamente distintos», explicou. 

Perante a plateia do Espaço Vita, o professor de filosofia confessou ter uma questão de princípio, ou seja: porque é que nós estamos tão empenhados em que as máquinas sejam como nós? Para Daniel Innerarity, quando queremos que um robô conduza um carro, não é porque tenha uma consciência, mas porque não se cansa, não bebe, não consume drogas.

Regulação da IA

Uma questão feita pelo público, e dirigida a Miguel Poiares Maduro, disse respeito à falta de regulação da Inteligência Artificial nos Estados Unidos e na China. Para o professor da UCP, o caso da China é muito específico e não diz respeito à regulamentação. “O risco é que sejam desenvolvidos sistemas de Inteligência Artificial na China que são, até, muito regulares, mas que depois possam ser utilizados  com finalidades perversas noutros países. Há dois grandes receios. Um é a falta de regulação e os riscos que isso pode comportar. Por exemplo, em termos de ‘fake news’ [notícias falsas], hoje é perfeitamente possível eu fazer um vídeo do Daniel Innerarity a falar 15 minutos, vocês vêem e ouvem o Daniel, e tudo o que ele diz, ele nunca proferiu na realidade. Tudo criado por voz sintética que depois é sincronizada com outras imagens que existam. Já existe isto, já é feito, e isto exige regulação porque esta é uma das formas mais perigosas de ‘fake news’”, disse. Segundo realçou, uma forma de combater isto tem sido o desenvolvimento de outros sistemas tecnológicos que detetam imagens que são feitas por sistemas de Inteligência Artificial. “A eficácia que existe é elevada, mas não é total”, salientou.

IA e Deus

Outra pergunta vinda do público foi qual o 'lugar de Deus na Democracia e Inteligência Artificial'?

Daniel Innerarity começou por dizer que a Inteligência Artificial “é uma tecnologia espetacular que os humanos criaram, usando uma inteligência natural, fascinante e que, seguramente, é uma das maiores expressões de criatividade que existe”. “E, se Deus é definido por algo, é por pela Criação, a criatividade, o novo, o imprevisto. Deus pode estar na origem da Inteligência Artificial, como ela é uma expressão da nossa criatividade, pois ela será a expressão do divino em nós. Mas, algo tem que ver com o limite da Inteligência Artificial é o misterioso, o indeterminado. E, a Inteligência Artificial, que é cálculo e atribui demasiado peso à continuidade histórica e não tem resolvido o problema de como os humanos se defrontam com a realidade radical, Deus podia estar na origem e nos limites da IA”, disse.