Arquidiocese de Braga -
14 fevereiro 2018
Redescobrir a esperança
Homilia na Quarta-feira de Cinzas
\n \nIniciamos a caminhada quaresmal dando um novo vigor ao compromisso arquidiocesano de despertar a esperança cristã. A Quaresma é, segundo a espiritualidade cristã, um tempo especial de revisão de vida. São quarenta dias onde os apelos da Palavra de Deus ecoam de um modo mais explícito, centrando-nos no essencial do Evangelho e promovendo a conversão de comportamentos e atitudes. Cada dia é um dom que deve frutificar e mostrar, com humildade e aceitação próprias, a alegria da renovação pessoal e comunitária.
A conversão envolve todas as dimensões da nossa vida. Na mensagem para a Quaresma referi, com particular relevo, o compromisso humano a partir da simbologia “Tens sapatos? Recorda-te de quem não tem pés”. É um itinerário desafiante face aos inúmeros problemas que afectam a sociedade. Podem tentar convencer-nos de que o país está numa situação económica favorável. Quem caminha com o povo sabe que a exclusão social e a desigualdade atingem fortemente o quotidiano da vida das pessoas. Basta estar atento para reconhecer a indignidade existencial de muita gente que vive nas cidades e, particularmente, nas aldeias mais recônditas.
Apesar de sublinharmos o cuidado a ter com os mais frágeis, não podemos esquecer que a conversão pessoal é um movimento do Espírito que nos permite ver Deus e o mundo segundo as exigências evangélicas. O nosso interior é um espaço onde se travam batalhas de autenticidade pela identidade cristã. Daí a importância de fazer destes quarenta dias uma caminhada de deserto que se traduza em momentos para nos abstrairmos da confusão e das preocupações. Entramos no deserto para dar espaço a Cristo e preparar caminhos de esperança.
A esperança é um recurso escasso na nossa civilização. Muitas vezes não passa de uma palavra oca e sem grande repercussão na existência. Gostaria que, durante a Quaresma, fizéssemos um exame de consciência a partir de três perspectivas.
O primeiro nível da esperança encontra raizes na mitologia grega e corresponde ao que S. Paulo apelidou de “vã esperança”. É a crença de que se vai ganhar a lotaria ou o totoloto, aquela atitude de, numa frase feita, afirmar “esperemos que tudo corra bem”. Coincide com a atitude dos governantes que convidam a esperar futuros melhores quando muito pouco fazem para melhorar as condições de vida das pessoas. Este horizonte é nocivo porque nos ilude, faz-nos acreditar que o mundo novo acontecerá sem o esforço necessário que nos torna protagonistas da nossa felicidade. Este é um caminho de passividade onde se espera que a felicidade bata à porta com a ajuda dos deuses ou da sorte.
É importante, numa lógica cristã, recusar esta via do providencialismo. São esperanças enganadoras que ainda hoje continuam a ser propostas pela nossa cultura do consumismo. Chegamos, assim, a um segundo nível da esperança. Tem já traços virtuosos e consiste numa atitude proactiva: fazer algo para que o futuro seja melhor do que o presente.
Foi esta esperança que norteou os nossos pais e antepassados, quase escravos dos campos e das minas, que procuravam garantir um futuro melhor. Nos seus sonhos estavam casas, campos ou diplomas que garantiriam um futuro melhor. “É a esperança das namoradas, das esposas, das mães, mas também a que impeliu tantos rendeiros e pequenos artesãos a tornarem-se empresários, não apenas nem sobretudo por amor ao dinheiro, mas em busca de um futuro melhor em dignidade e liberdade” (Luigino Bruni).
Existe, ainda, um terceiro nível da esperança. É a esperança daqueles que lutam até dar a própria vida para construir um futuro melhor, não apenas para os seus mas para a Humanidade. Esta é a esperança cristã que incide no mundo civil, social e político. Foi ela que moveu no passado “milhares de trabalhadores, sindicalistas, políticos, empresários, cidadãos, homens e muitas mulheres que quiseram e sonharam gastar a vida para melhorar o mundo em que viveram. Foi esta esperança que levou para a frente – e deve levar ainda – as fronteiras do humano, que escorou todas as virtudes, as irrigou, lhes deu coragem, sentido e direcção.”
Neste exame quaresmal, teremos de aferir em que patamar da esperança nos encontramos. Na sorte e confiança nos deuses, no trabalho de interesse imediato ou, pelo contrário, no compromisso com causas onde investimos as nossas capacidades e talentos para o bem de todos? Caras irmãs e irmãos, estou persuadido de que necessitamos de reacender este último grau de esperança. Foi vivida por aqueles que construíram a nossa história humana, assim como por aqueles que potenciaram a identidade cristã. Necessitamos de um tempo marcado pela gratuidade e pela entrega, sobretudo quando alguns grupos são movidos por interesses económicos e ideológicos. Não é preciso grande esforço para nos apercebermos disso mesmo. Olhemos à nossa volta! Chocam-nos os jogos de influência, a corrupção e as operações que visam o lucro fácil. Precisamos de uma nova era e, quem sabe, de inaugurar um período diferente na política, na economia, nas empresas e nos mercados.
Os cristão deveriam assumir, nesta reviravolta civilizacional, o compromisso de abrir novos caminhos. Podem não ser necessários muitos discursos mas impõem-se motivações novas e compromissos solidários, típicos de quem reconhece a vida como um dom a exigir intervenções na sociedade. Caminhamos para a Páscoa e ela é um estímulo à vida nova. Há quem tenha possibilidades e capacidades para grandes compromissos. Para outros basta o trabalho desinteressado e pautado pela alegria de construir a esperança. Ninguém está dispensado desta exigência da fé!
Se a esperança nos conduz a esta responsabilidade com a história humana, a Quaresma recorda-nos que os pequenos gestos, talvez ocultos, podem ter um valor incalculável de restituição da dignidade à vida de muitas pessoas. A dinâmica do contributo penitencial, que exige a capacidade de contribuir, supõe a renúncia a coisas supérfluas ou desnecessárias. Ela permite que com o pouco de cada um se façam autênticos milagres. Como já foi anunciado, destinaremos o contributo penitencial para o Fundo Partilhar com Esperança e para a missão de Santa Cecília de Ocua.
A Quaresma convida-nos ainda a olharmos para fora de nós mesmos a partir do encontro com a Palavra e a oração. Reservemos, no nosso dia-a-dia, momentos individuais e comunitários para esta interioridade. O Santo Padre pede às comunidades que organizem as “24 horas para o Senhor” no dia 9 e 10 de Março. Será um momento para “celebrar o sacramento da reconciliação num contexto de adoração eucarística” e uma oportunidade para estar com Jesus, ouvindo a Sua voz.
O Santo Padre pediu-nos ainda que se fizesse no dia 23 de Fevereiro o dia de oração e jejum pela paz. As guerras continuam e só a oração moverá os corações dos homens.
São muitos os desafios para esta Quaresma: despertar a esperança no quotidiano, escutar a Palavra e jejuar, contributo penitencial, as 24 horas para o Senhor e o dia de oração e jejum pela paz. Estes desafios têm o intuito de nos ajudarem a melhor compreender a esperança e a caminhar, passo a passo, com o mundo, reconhecendo que se temos sapatos há muitos que não têm pés.
Boa caminhada quaresmal,
† Jorge Ortiga, Arcebispo Primaz
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HomiliaCinzas2018.pdf
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