Arquidiocese de Braga -
2 fevereiro 2014
NÃO SE PODE DEIXAR AS COISAS COMO ESTÃO!
Homilia no encontro do Dia Arquidiocesano do Consagrado.
“Havia uma mulher muito devota e cheia de amor a Deus. Ia à igreja todas as manhãs. O caminho que seguia estava pejado de mendigos, crianças famintas e pessoas sem-abrigo.
Todavia, ela caminhava tão absorta nas suas devoções que nem sequer se apercebia do que via.
Certo dia, após ter percorrido o caminho habitual, chegou à Igreja no justo momento em que ia começar o culto divino. Empurrou a porta, mas esta não se abriu. Voltou a empurrar, desta vez com muita força, mas com o mesmo resultado.
Apercebeu-se então que a porta estava fechada à chave.
Ficou aflita, pois era a primeira vez que após tantos anos iria falhar.
Sem saber o que fazer olhou para cima e reparou num papel afixado na porta que dizia: «ESTOU AÍ FORA».”[1]
A Festa da Apresentação do Senhor, como Dia dos Consagrados, pode significar este momento peculiar de reconhecer que Deus nos escolheu entre tantos para o servirmos com abnegação e dedicação. Sabemos que o deveremos fazer “dentro” do nosso carisma mas em atitude de Igreja, que sai para O encontrar “fora”. “Ele está fora” nunca pode ser sinónimo de O esquecer na intimidade duma vida mais ou menos contemplativa. Esta é a raiz ou a fonte para ousar perder-se na entrega a todos sem condicionalismos ou restrições. Somos ou devemos ser uma “Igreja em saída”. Saída de hábitos e rotinas, mas sobretudo de atitude para percorrer, com fé, uma vida humana com todos os seus enigmas. Os conventos devem abrir-se. Já não bastam as atividades que realizamos nas “nossas” obras. Há outros mundos que esperam por nós.
Nunca podemos esquecer quanto o Papa Francisco diz a propósito dos diversos carismas. “Não se trata dum património fechado, entregue a um grupo que o guarde; mas são presentes do Espírito integrados no corpo eclesial, atraídos para o centro que é Cristo, donde são canalizados num impulso evangelizador”. Estas palavras não nos farão pensar? Permiti, por isso, três considerações.
Em primeiro lugar, seremos verdadeiros “presentes do Espírito”, não só nas constituições, mas sobretudo no dom profético de os colocar no coração da humanidade, onde o ser humano vive a nostalgia do amor de Deus, a angústia da solidão, o sofrimento das carências do essencial para a vida ou das doenças a solicitar ternura?
Tenho falado, muitas vezes, da pobreza envergonhada. Ultimamente vários casos têm batido à minha porta. Há estilos de vida, com o esforço de conservar o determinado estatuto social, que ocultam tragédias. Não poderemos procurar, sair, contactar, aperceber-se de situações para se “envolver” com a serenidade dum coração acolhedor capaz de restituir a alegria?
Esta perdeu-se em muitas famílias e não estamos a apercebermo-nos. Os carismas, quase todos nasceram para ser resposta institucionalizada a problemas e não temos encetado caminhos de proximidade com quem sofre. A idade dos membros das Comunidades não pode ser desculpa.
Em segundo lugar, este presente dos Fundadores não pode ser património fechado a usufruir por um pequeno grupo que tenta guardá-lo e começa a reconhecer, com a tristeza que não só não atrai mas afasta por causa das lamentações, que ele está a reduzir-se à insignificância. É o dom do espírito nos carismas que é insignificante, acrescentando que é por causa do tempo que estamos a viver, ou não seremos nós que o encerramos em vidas tristes e desencantadas em vez de o colocar no coração do mundo? O Evangelho em que acreditamos é “Evangelho da Alegria”.
Em terceiro lugar, não podemos deixar de acolher outro princípio do Papa Francisco. “O Espírito Santo enriquece toda a Igreja Evangelizadora também com diferentes carismas. São dons para renovar e edificar a Igreja”. Na atitude de sair do restrito duma vida comunitária com as suas obras, é urgente, em simultâneo com uma nova presença do mundo, uma mais articulada presença na Igreja na certeza de que ela se edifica com os carismas e se renova com a força do Espírito que representam. “É na comunhão, mesmo que seja custosa, que um carisma se revela autêntico e misteriosamente fecundo. Se vive este desafio, a Igreja pode ser um modelo para a paz no mundo”[2].
É nesta comunhão que devemos viver. Só aqui encontramos a força do testemunho para o mundo e a serenidade que só a família eclesial pode dar. Quando falamos em comunhão podemos incorrer no erro ou tentação que ela é primeiramente operacional pelos trabalhos a realizar. O Papa recorda-nos que a renovação da Igreja não reside, essencialmente, na organização. Daí que a comunhão é de Vida e é isto que nem sempre se vê.
Poderei, em termos de Arquidiocese, ser o primeiro culpado por não acrescentar gestos de presença e palavra de estímulo. Gostaria de ser ajudado para percorrer um caminho conjunto que pode congregar iniciativas mas que, sobretudo, mostra que vivemos para o mesmo. “Espero que todas as comunidades se esforcem por usar os meios necessários para avançar no caminho de uma conversão pastoral e missionária, que não pode deixar as coisas como estão”, pede-nos o Santo Padre. Neste momento, não nos serve uma “simples administração”. Constituamo-nos em “estado permanente de missão”[3].
“Não se pode deixar as coisas como estão”. O espírito leva-nos mais longe e para caminhos que não conhecemos. Não podemos permitir a resignação ou espírito de lamentação pela situação, muitas vezes crítica, da Congregação. Teimar no habitual, naquilo que sempre se fez só gera complexos de inibição que complicam a vida.
O Velho Semião foi ao templo “movido” pelo Espírito e, por isso, teve a graça de receber nos braços o verdadeiro salvador e gerador duma alegria transbordante. Apostou no essencial e experimentou o que nunca tinha sentido, mas também reconheceu que Ele era a luz a revelar a todas as nações.
Com Simeão não podemos deter-nos nos complexos da timidez que nos fecha nas nossas casas ou nas nossas obras, conservadas com maior ou menor dificuldade.
Nem sempre o Espírito está a confirmar os nossos passos. Impressionam-nos as atitudes inovadoras do Papa Francisco. Será que elas nos batem à porta e encontram o eco da correspondência? O encontro com Cristo, na fidelidade aos nossos carismas, é verdadeiramente a luz reveladora de Cristo e duma Igreja que caminha com o povo em respostas inovadoras que se integram numa ação pastoral da Igreja Diocesana? Não poderíamos em comum, discernir no Espírito, as periferias deste mundo para o qual Deus nos envia?
Terminaria com dois pensamentos do Papa. “O Espírito infunde a força para anunciar a novidade do Evangelho com ousadia, em voz alta e em todo o tempo e lugar, mesmo em contracorrente”. “Não digamos que hoje é difícil, é diferente.” Sim, é diferente mas a história confirma-nos que o Evangelho “dá respostas às necessidades mais profundas das pessoas” desde que aceitemos e nos deixemos conduzir por aquilo que ele está sempre a propor: profunda amizade com Jesus e sincero amor fraterno.
Mais um Dia do Consagrado celebrado na Arquidiocese? É demasiado pouco. Estamos empenhados, assim o espero, a redescobrir o tesouro para que este Programa produza mais frutos. Não nos contentemos com a vida cómoda – ou não – da comunidade. Há mais. Saiamos e criemos comunhão para ser luz numa sociedade que parece perdida pois acreditou que a felicidade estava no “ter”. Por isso, deixo uma última pergunta: estaremos a mostrar em todos os contextos, particularmente nas periferias, em comunhão com a Diocese que tudo depende do que somos?
† Jorge Ortiga, A.P.
Basílica dos Congregados, 02 de fevereiro de 2014.
[1] José Paulo Abreu, Estórias e pensamentos II, 223.
[2] Francisco, Evangelii Gaudium, 130.
[3] Francisco, Evangelii Gaudium, 25.
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