Arquidiocese de Braga -

21 março 2014

UM HUMANISMO COM DEUS

Default Image
Fotografia

Discurso na abertura do congresso sobre S. Bento.

\n


Um humanismo com Deus

Discurso na abertura do Congresso sobre S. Bento

Na Igreja Arquidiocesana continuamos a responsabilidade de mergulhar, pessoal e comunitariamente, na originalidade da fé que, este ano, queremos aprofundar na sua dimensão celebrativa. Para isso necessitamos de regressar ao essencial da mesma, discernindo a novidade que ela traz à vida, válida para os crentes e que os outros deverão ser a possibilidade de encontrar visível na vida de quem experimenta o dom da mesma fé. O Papa Francisco, na Lumen Fidei (21) explica a originalidade e novidade que nunca poderemos esquecer. “O crente é transformado pelo Amor, ao qual se abriu na fé; e, na sua abertura a este Amor que lhe é oferecido, a sua existência dilata-se para além dele próprio. S. Paulo pôde afirmar: “Já não sou eu que vivo, mas é Cristo que vive em mim” (Gal 2, 20)… Na fé, o “eu” do crente dilata-se para ser habitado por um Outro, para viver num Outro e assim a sua vida amplia-se no Amor” (L.F. 21). Aqui reside o verdadeiro humanismo cristão em contraposição ou continuidade com a grande paideia grega ou com a humanistas romana.

A influência do cristianismo na Europa, desde os primórdios dos Padres da Igreja e dos alvores do monarquismo – expresso numa contínua evolução perante os nossos desafios da humanidade – nasce deste Património que, expressando em inúmeras atividades humanas (arte, literatura, pintura, arquitetura, agricultura) teve sempre um cunho, matriz de índole espiritual. A fonte nascia duma descoberta dum Amor primordial de Deus pelo homem que o havia criado à sua imagem e semelhança. Se a criação nos reporta a esta fonte, a incarnação de Cristo, no fazer-se homem como enviado do Pai, para se identificar com todos, eleva o humanismo para este viver com Cristo de olhos na transcendência paterna e amorosa de Deus dando ao universo um colorido harmonioso de fraternidade, harmonia e paz.

Lentamente fomos passando desta conceção do homem, como criatura criada e redimida por Deus em Cristo, por um prescindir de Deus como autonomia e libertação da transcendência. Alguns pensadores apontam esta orientação ligada ao Renascimento e particularmente ao Iluminismo. Só que muitos outros, nesta época de esplendor na arte como realização plena do homem, não deixam de sublinhar uma conexão íntima entre a capacidade criativa do homem e a sua ligação de dependência de Deus como belo e maravilhoso, sublinhando a semelhança do homem com Deus delineada no Génesis. Sem dúvida que muitos tentaram idealizar uma liberdade independente de Deus acentuando a diferenciação interna ao humanismo que pretendia separar o que estava verdadeiramente unido.

Nesta corrida histórica, teremos de reconhecer que hoje o humanismo cristão parece uma pequena expressão minoritária em confronto com os numerosos e diferenciados tipos de humanismo que pretendem fugir a qualquer tipo de referência evangélica. Começam alguns a autodefinir-se como “humanistas seculares”. Para eles entramos numa época pós-moderna onde o processo de secularização enveredou por caminhos dum secularismo ateísta onde se nega que o cristianismo possa ser o “princípio” síntese dum verdadeiro e autêntico humanismo. Só que percorrendo as alternativas que alguns foram delineando na procura dum princípio unitário do humanismo, nós não o encontramos. Encontramos tendências, fruto de pensadores isolados, que não conseguem estruturar uma convergência mínima que seja apontada como caminho de plena realização humana.

Situando S. Bento num contexto de crise depois da queda do Império Romano e de quanto – ele com os beneditinos – realizou por um paradigma de sociedade alicerçada numa séria relação com a transcendência (Ora) para que o trabalho proporcionasse dignidade a todos (Labora), a celebração dos 50 anos sobre a sua proclamação como Padroeiro da Europa deveria provocar uma profunda reflexão. Nós, como Igreja, não podemos deixar de o efetuar.

Trata-se de reconhecer e ter consciência duma sociedade hodierna marcada por um profundo pluralismo. Toca-nos propor a pessoa de Cristo e a sua incarnação nas pessoas humanas como elementos decisivos e fundamentais para um novo humanismo. A experiência cristã, respeitadora da liberdade humana, é capaz de interagir com religiões diferentes e culturas e visões do mundo diversificadas, reconhecendo e aceitando que são detentoras de elementos positivos, pode assim, criar algo de novo que está a faltar. Desde os primórdios do cristianismo, os cristãos habitam numa sociedade plural mas fiéis aos seus projetos, conscientes da influência que podem proporcionar. Diagoneto comparava a ação dos cristãos à “alma”.

Não se trata de lutar por qualquer tipo de hegemonia da Igreja ou reivindicação de privilégios. Penso ser urgente que a Igreja mergulhe no mundo com o seu específico e aí se coloque como fermento e sal. Sabemos que existe uma visão do mundo não só marcada pela laicidade mas eivada de verdadeiro laicismo. Há medo da Igreja e são muitos os que não querem aceitar uma sadia liberdade religiosa capaz de criar as condições para que cada ser humano viva a sua experiência religiosa. Isto nota-se nas leis, nas atitudes de alguns governantes, na comunicação social. O Papa pede que não tenhamos medo. Só que não podemos ser ingénuos e permitir que a sociedade plural seja, construída com a nossa ausência ou marginalização.

Se sabemos que a Igreja tem o seu direito de habitar com o seu estilo numa sociedade plural, ela tem, também, o dever de no seu seio conviver com a mesma realidade do pluralismo. O humanismo cristão nunca foi mera uniformidade mas soube conviver, com a unidade no essencial, com diversos estilos de vida, sensibilidades espirituais, experiências culturais, carismas diversificados, testemunhos de santos comprometidos no serviço da caridade, das obras educativas, nas interpretações sociais e políticas. Tudo são contextos onde o humanismo cristão cresce e se desenvolve com a ação dos cristãos.

Que S. Bento, aqui S. Bento da Porta Aberta, Seja este estímulo para que a Igreja seja campo e experiência duma cultura do encontro para que o mundo possa verificar que é possível conviver com o diferente, fazer convergir políticas, unir esforços para que o bem de todos aconteça. O “ora” de S. Bento será sempre um recordar o valor do transcendente que torna todos os homens irmãos; o “labora” recordará o dever de trabalhar para o desenvolvimento verdadeiramente humano onde o mesmo trabalho surge como um direito para todos. Por outro lado, se somos quotidianamente bombardeados por modelos e estilos de vida que mostram esta permanente dialética entre o mundo e a fé, os santos focam o sinal de que é possível conviver desde que o neopaganismo que incomoda não se imponha à destruição da identidade cristã por ela ser ténue ou perde o seu valor. A fé exprime-se na história e a incarnação de Cristo foi o acontecimento que criou todas as condições para que a história assumisse o divino dando-lhe um sentido diverso. Urge fazer história, assumindo a história com toda a sua dramaticidade tornando-se responsáveis pelo seu futuro.

+ Jorge Ortiga, A. P.

Santuário de S. Bento da Porta Aberta, 21 de março de 2014.