Arquidiocese de Braga -

23 maio 2023

“Para resolver o meu problema de expressão”

Fotografia DR

Ir. Liliana Reis

"Nada aparenta ser tão fácil e, simultaneamente, tão difícil como a vida de oração: o que dizer a Deus? Como abrir-lhe o nosso coração?"

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  1. Só p’ra dizer que te amo / nem sempre encontro o melhor termo / nem sempre escolho o melhor modo”. Ao ouvir as palavras cantadas por Manuela Azevedo, vocalista do grupo musical Clã, recordava como também a oração se pode revelar como um verdadeiro “Problema de Expressão”, para muitos de nós. Orar pode-se compreender, de facto, como uma tarefa árdua! Nada aparenta ser tão fácil e, simultaneamente, tão difícil como a vida de oração: o que dizer a Deus? como abrir-lhe o nosso coração? Já o apóstolo Paulo confessava que “não sabemos o que havemos de pedir, para rezarmos como deve ser” (Rm 8, 26). Ao refletirmos sobre a nossa vida de oração, talvez, cada um de nós possa fazer suas as palavras que ecoam na voz de Manuela Azevedo: “o teu mundo está tão perto do meu / e o que digo está tão longe, / como o mar está do céu”; “e até parece que estou a mentir, / as palavras custam a sair, / não digo o que estou a sentir, / digo o contrário do que estou a sentir”.

O terço não deixa de ser, na sua simplicidade, uma ponte que nos leva a Deus e nos ajuda a ultrapassar o “Problema de expressão” que tantas vezes reveste a nossa vida de oração. É rezado por pessoas de todas as idades, línguas e camadas sociais. Por vezes, torna-se comovedor olhar e contemplar pessoas que na sua humildade se entregam à prática desta oração, transformando a vulgaridade do quotidiano no mais belo ato litúrgico, vivido com o maior fervor e solenidade. Passar as contas do terço trata-se de uma verdadeira liturgia doméstica, que perpetua a vida eucarística na vida quotidiana, tal como elucidava S. João Paulo II na sua carta apostólica Rosário da Virgem Maria: “esta oração [o rosário] não só não se opõe à liturgia, mas serve-lhe de apoio, visto que introduz nela e dá-lhe continuidade”.

Na medida em que “não sabemos o que havemos de pedir, para rezarmos como deve ser” (Rm 8, 26), o terço, pela sua estrutura acessível, introduz-nos na relação com Deus e une-nos à oração perpétua de Jesus Cristo, que vive eternamente para interceder por nós (cf. Heb 7,25).

  1. Por vezes, a sequência repetitiva pode-nos impedir de reconhecer a riqueza que esconde o rosário, considerando-o somente como algo monótono e, por conseguinte, maçudo e tedioso. Contudo, foquemos o olhar em três mestres desta oração: Francisco Marto, Jacinta Marto e Lúcia de Jesus, vulgarmente conhecidos como os três pastorinhos de Fátima. Na primeira aparição do Anjo, eles ficaram longas horas repetindo sempre a mesma oração “Meu Deus, eu creio, adoro, espero e amo-vos. Peço-vos perdão pelos que não creem, não adoram, não esperam e não vos amam”. Por terem-se entregado à prática desta oração, a irmã Lúcia testemunha que “a presença de Deus sentia-se tão intensa e íntima”. O método de oração repetitiva torna-se, assim, em caminho de acesso à Trindade, capaz de ajudar os três pequenos orantes a saborearem a presença íntima de Deus nas suas vidas.

A oração de repetição consiste num método antigo que nos introduz na relação com Deus. Os primeiros monges do deserto alimentavam-se da chamada “Oração de Coração”, a qual consistia na repetição constante da jaculatória “Senhor tende piedade de mim que sou pecador”. Ao procurar elucidar o sentido e a riqueza da “Oração de Coração”, Jean Lafrance afirmava: “há que oferecer a Deus o que podemos oferecer, isto é, a repetição da fórmula. Ainda que tenhamos a impressão de que oramos só com os lábios, esta oração frequente atrairá, com o tempo, a oração interior do coração e favorecerá a união do espírito com Deus. A oração, talvez, seca e com distrações contínua, criará um hábito, [...] e se transformará em oração pura, em admirável oração de fogo” (Jean Lafrance, Oração de Coração). O terço situa-se na tradição da “Oração de Coração”. O seu carácter repetitivo permite centrar o coração em Deus, fazendo brotar no coração do orante uma “oração pura”, uma “oração de fogo”, semelhante ao lume no peito que Santa Jacinta Marto dizia trazer no seu coração.

  1. Além da sua estrutura verbal, o Rosário possui uma dimensão contemplativa, permitindo-nos mergulhar nos mistérios de Jesus, através do Coração de Sua Mãe, tal como nos explicava S. João Paulo II em Rosário da Virgem Maria: “recitar o rosário nada mais é senão contemplar com Maria o rosto de Cristo”. Por meio do Rosário, não oramos sozinhos, a presença de Maria ajuda-nos a resolver os nossos problemas de expressão. Cada vez que rezamos o terço, Maria está junto a nós, passando connosco as nossas contas. Assim testemunhou a vidente de Lurdes, Bernadette Soubirous, afirmando que enquanto rezava o rosário, a Virgem Maria em silêncio, passava as contas do rosário que trazia entre os dedos. No fim de cada mistério oravam juntas: “Glória ao Pai e ao Filho e ao Espírito Santo”.
  2. Falar do rosário é também falar de uma oração de paz. “Rezem o terço todos os dias, para alcançarem a paz para o mundo e o fim da guerra”, foram as palavras da Virgem Mãe na Cova da Iria. Diante dos cenários de violência e opressão que todos os dias nos chegam através dos diversos meios de comunicação social, a Mensagem de Fátima apresenta-se como uma luz que nos relembra que cada um de nós tem o seu papel insubstituível na luta pela paz. Assim o elucidava Bento XVI, ainda como cardeal: “Parece-me que o nosso maior erro é o de pensarmos que só as grandes ações económicas e políticas podem transformar o mundo, é a tentação – mesmo entre os cristãos – de pensar que a oração não tem muito valor e, portanto, perde-se a interioridade. Ora, aqui em Fátima ouvimos falar de coisas escondidas conversão, oração, penitência – que parecem não ter nenhuma importância política, mas são as coisas decisivas, são a força renovadora do mundo".

Neste mês de maio, redescubramos o valor da oração do rosário, enquanto força renovadora do mundo. Que, de terço nas mãos, aprendamos a superar os nossos problemas de expressão que tantas vezes experimentamos na oração, de modo que cada um de nós possa “ficar mais perto, bem mais de perto” do coração do nosso Deus.