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DACS | 29 Mar 2018
Diocese de Pemba: Uma irmã do outro lado do mundo
Filipa Correia (Texto e fotos)
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  © Filipa Correia | Pemba, Moçambique

Há quatro anos, a Arquidiocese de Braga e a diocese de Pemba – no Norte de Moçambique –, firmaram um acordo de cooperação missionária. Hoje, damos-lhe a conhecer esta diocese irmã, com um ritmo próprio, gentes características, paisagens suis generis e condições de vida muito particulares. Corrupção, fome, doenças, analfabetismo: são alguns dos problemas de todos os dias. Em Pemba, a maioria dos sorrisos esconde uma realidade dura, muitas vezes vencida pela alegria e por uma força movida a amor.

Alegria e pobreza de braço dado

Os raios de sol começam a invadir o avião. Seguindo a luz intensa, avista-se Pemba. Da pequena janela, surge um novo mundo de cores e imagens. As placas de zinco dos telhados das casas reflectem o sol. Um puzzle de brilhos metálicos contrasta com a terra que o ladeia, de cor tijolo. Soma-se o verde infinito da imensa vegetação que as chuvas das últimas semanas fizeram despontar. Para trás, logo ali ao lado, vai ficando o mar. Sereno, de um azul límpido, quase transparente. Uma tela perfeita, harmoniosa.

Ao aterrar, um calor abrasador toma conta do corpo. A pouco e pouco, todos os sentidos são convocados a entrar em África. Pisamos a terra vermelha. A viagem de carro mostra de perto esta nova realidade, pela estrada, de terra batida, que há pouco menos de uma semana era um rio de lama. Há breves vislumbres de asfalto, em estradas inacabadas que a terra veio terminar. O missionário António vai ao volante. Conduz com a perícia que os seis meses de estadia em Pemba já lhe trouxeram. Entre saltos e solavancos, cada quilómetro é multiplicado pelas várias curvas e desvios a que os buracos da estrada obrigam.

Vêem-se alguns edifícios, poucos, quase todos degradados. As pessoas caminham tranquilas, ao ritmo que o calor pede. As cores vibrantes dos lenços das mulheres pintam o cenário. A esses tecidos coloridos de mil e um padrões chamam-lhes capulanas. Usam-nos na cabeça, para proteger do sol e do impacto dos materiais que transportam, à cinta, a fazer de saia, ou às costas, para sentar as crianças. Vestem ainda um sorriso sincero de boas-vindas, que condiz com o familiar “mano” e “mana” com que se dirigem a cada cara nova. As crianças brincam na rua. Com as roupas gastas, muitas delas rotas, com ou sem chinelos, a alegria é o denominador comum. Brincam sem brinquedos, ou improvisam alguns. Os carrinhos, feitos a partir de paus, canas e latas fazem as delícias da pequenada. A criatividade ajuda a trazer aquilo que o dinheiro não

pode comprar. Pela cidade, avistam-se amontoados de lixo onde muitos procuram sustento naquilo que a outros já não serve. Alegria e pobreza cruzam-se em cada sítio, em cada rua, em cada rosto.

Pemba é a capital da Província de Cabo Delgado, a mais pobre das 11 províncias do país. “Aqui, infelizmente temos os piores índices de tudo, na educação, na saúde, nos tipos de doenças, na alimentação, na economia. Por isso é um desafio ainda maior acabar com a desnutrição, com o casamento prematuro, com a mortalidade, com a cólera, etc.”, explica a irmã Andreia, coordenadora da Cáritas diocesana. Com projectos de intervenção em várias áreas, a responsável destaca o apoio na área alimentar, por técnicos especializados que ajudam a população a melhorar a produção de cereais, hortícolas, a criação de aves e piscicultura numa província onde a maioria da população tem como principal actividade e meio de sustento a agricultura. Em cada contacto, há também uma grande aposta na formação humana, com acções sobre equidade de género, finanças, higiene e saúde, nutrição e psicologia, por exemplo. A sensibilização contra o HIV/SIDA e outras doenças, assim como a construção de escolas e de poços de água para abastecer a população em zonas onde a água potável fica, por vezes, a 10/15Km de distância, percorridos a pé, são outros exemplos da actuação da Cáritas.

O bispo de Pemba, D. Luiz Fernando Lisboa, explica que a Igreja desenvolve, inevitavelmente, um importante trabalho de intervenção social. “Não é possível evangelizar ou levar Cristo se alguém está com fome, se está sem escola ou sem assistência, então o trabalho da Igreja é um trabalho muito social também. Todos os missionários e missionárias estão envolvidos nessa parte social”, conta. Saúde, educação, segurança e assistência social fazem parte do dia-a-dia de trabalho dos missionários. “Em todas as áreas a Igreja tem que estar presente porque é a situação do povo aqui”, acrescenta.

Para além das carências materiais e dos problemas sociais existentes, Violeta, uma voluntária espanhola que tem debruçado o seu trabalho sobre a questão dos direitos humanos, fala sobre outros problemas prementes, que agravam os já existentes. O consumo excessivo de álcool, a exploração mineira desenfreada, à qual se soma o tráfico de pedras preciosas, e a exploração de trabalho infantil são alguns exemplos. “Muitas vezes utilizam as crianças mais pequenas para chegar aos sítios em baixo da terra”, relata a voluntária. A corrupção é mais um dos agravantes à situação social, já complicada, que Violeta relata. A medicação para o tratamento da lepra ou outras doenças, exemplifica a voluntária, muitas vezes escasseia, não por não existir ou não ser cedida pelo Governo, mas por ser “desviada” pelos distribuidores ou pelos próprios profissionais de saúde.

Um desafio chamado educação

Esménia tem 15 anos e frequenta a escola em Mahipa – uma aldeia na província de Cabo Delgado, a 160

km de Pemba –, como denuncia o uniforme de camisa branca e saia azul. Tem 12 disciplinas, as preferidas são Língua Portuguesa e Química. Gostava de ser enfermeira ou professora. Os pais são agricultores e tiveram seis filhos. Todos estudam. Mas Esménia sabe que nem todos os meninos vão à escola como ela. Muitos nem a 7.ª classe, obrigatória, concluem: “Uns ficam a ajudar na machamba, outros os pais não insistem para irem à escola”. A amiga Sifa, vestida de igual, frequenta a 10.ª classe. Quer ser médica. Tem sete irmãos. Os mais velhos não estudaram. A sina dos mais novos será diferente. Explica que o futuro para quem não estuda “é desvantajoso”. “A escola é importante para não sermos analfabetos”, complementa. E é isso que as leva a fazerem, todos os dias, a habitual caminhada de duas horas até à escola. Arrancam às 4h, para chegarem a tempo da “concentração”, marcada para as 6h. Pelas 12h, aguardam-nas mais duas horas de caminho, de regresso a casa. Nem o sol abrasador ou a chuva intensa as demovem de aprender, numa província onde a taxa de analfabetismo ronda os 50% na população entre os 15 e os 19 anos, atingindo valores superiores a 60% no caso das raparigas (dados relativos a 2007, do Instituto Nacional de Estatística - INE). Esménia e Sifa almejam um futuro diferente. E um percurso diferente daquele que trilha grande parte das meninas da sua idade. Luís Metonha, director da Escola Primária Completa de Mahipa e professor há 33 anos, esclarece que para a maior parte das meninas é difícil frequentar a escola a partir dos 12 anos. “Acabam por casar muito cedo”, justifica. Este é apenas um dos muitos desafios com que o director se depara diariamente. A falta de professores, e a consequente sobrelotação das turmas, é outro dos problemas que tem de contornar. De acordo com o regulamentado, as turmas devem ter um máximo de 50 alunos. No entanto, revela o director, não é raro contarem-se 100 alunos por turma. “Optamos por formar turmas mais numerosas para não deixar nenhuma criança de fora”, explica. As salas de aula ficam de tal forma cheias que por vezes são substituídas pelas sombras das árvores.

A barreira linguística é mais uma das dificuldades do ensino. De acordo com os dados mais recentes divulgados pelo Governo da Província de Cabo Delgado, 66,8% da população tem como língua materna o Emakhwa. E embora a Língua Portuguesa seja a única língua oficial de Moçambique, é falada por apenas 22,2% das pessoas em Cabo Delgado. “As aulas devem ser leccionadas em Língua Portuguesa, mas muitos dos meninos não falam português, por isso às vezes recorremos à língua materna para facilitar a percepção”, admite Luís. O director da escola primária culpa, em parte, a falta de “escolinhas” – creches e pré-primárias – onde as crianças poderiam começar a ter contacto com o português. Em Moçambique, o Governo não possui uma proposta educativa para as crianças com menos de seis anos. É a Igreja que tem assumido esse papel. No entanto, as “escolinhas” já criadas não servem toda a população. Em grande parte das aldeias são ainda uma miragem.

São várias as congregações e missionários presentes em Pemba que têm investido na educação, particularmente na educação das raparigas. Laura, uma leiga italiana de 48 anos, chegou a Pemba há 22 anos e não regressou mais a casa. Ergueu a Fundação Sementes de Esperança. É com uma alegria genuína e um orgulho que vai escapando pelo sorriso humilde que explica a actuação da sua “pequena fundação”. A “Sementes de Esperança”, para além da intervenção em áreas como a saúde, ocupa-se, sobretudo, de crianças em situação de vulnerabilidade: órfãs, com desnutrição, portadoras de deficiência ou em risco social. Um dos projectos da Fundação, o centro Talitha Kum, procura trabalhar a questão da emancipação feminina. “Nesse centro queremos reforçar, promover a educação e acompanhamento social das meninas, de maneira a reduzir os riscos que elas correm na actual sociedade de Pemba, que é uma realidade muito difícil, com muitas ameaças ao seu desenvolvimento. Queremos também ajudá-las a reforçar a frequência escolar”, explica.

As irmãs Mercedárias do SSmo. Sacramento têm, também, uma casa de acolhimento para meninas que desejam estudar mas cuja família não consegue suportar os custos. Procuram fornecer uma formação integral: espiritual, humana e intelectual. Neste momento acolhem 31 raparigas. “A maioria chega cá sem saber ler nem escrever. Chegam à cidade e é tudo novo para elas, a escola é diferente, por vezes são matriculadas num nível inferior ao que estavam na escola da sua comunidade, para conseguirem acompanhar as aulas. Nas comunidades, muitas vezes chegam à escola e voltam para casa porque o professor faltou e não houve aula”, explica a irmã Ofélia, que vive com as meninas. E apesar de financiarem os estudos, garantirem o alojamento e a alimentação das raparigas, lamentam o facto de não conseguirem pagar a universidade àquelas que querem continuar. “Pagar uma universidade é difícil, essa oportunidade nós não lhes podemos dar. É uma tristeza porque elas ficam só com o 12.º ano e depois vão fazer o quê? Voltam aos seus lugares de origem para fazer o que sempre fizeram: trabalhar nas machambas, ter filhos, …”, desabafa.

Retrato de uma saúde doente

Malária, lepra, coléra, VIH/SIDA, febre tifóide são alguns dos nomes que se ouvem todos os dias nos corredores dos hospitais da província de Cabo Delgado. Vinda do Brasil para Pemba, a irmã Marta foi chamada para trabalhar “na parte pastoral, na parte litúrgica”, juntamente com outras irmãs da congregação das Discípulas de Jesus Eucarístico. Foram viver para uma casa, da diocese, mesmo em frente ao Hospital Provincial de Pemba, o que lhes valeu um inesperado repensar de planos. “Detectámos muitas necessidades, muitas carências, e começámos a dar assistência àqueles que muitas vezes iam à procura de tratamento mas os médicos, os enfermeiros não davam o tratamento correcto, e até os dispensavam para irem a curandeiros, feiticeiros. Então, os doentes vinham até aqui reclamar, pedir alguma medicação”, conta a irmã. O envolvimento na área da saúde conferiu-lhes o título de “extensão do hospital provincial”, atribuído pelo bispo, em tom de brincadeira. E nem a falta de formação na área as impede de intervirem enquanto cuidadoras. “A nossa forma de ser eucaristia na diocese de Pemba foi tomando outro rosto, vimos que a evangelização parte não somente de adorar a eucaristia, mas mais ainda por ser eucaristia, dar-se de comer, ser-se pão para aqueles que têm fome, da maneira que for necessário”, revela.

O Hospital Provincial de Pemba é quase uma segunda casa para si. Percorre os corredores enquanto cumprimenta quem passa. Sabe os nomes de cor. Os “acessos restritos” não a fazem hesitar. O contacto próximo com os profissionais de saúde e doentes permite-lhe afirmar que a realidade é bem pior do que aquela que as estatísticas espelham. “A Direcção Provincial da Saúde esconde os números em relação à lepra, à cólera, à febre tifóide… Eles lançam os números, mas, na realidade, o que nós vemos no bairro, no hospital, nos centros de saúde, não corresponde”, denuncia. A título de exemplo, aponta o HIV/SIDA, em que o Governo refere que o número de “infectados e afectados” está a diminuir. “Na realidade, o número tem subido cada vez mais”, afirma. Culpa a falta de higiene e o acúmulo de lixo, resultado da má limpeza da cidade, pela propagação de algumas doenças, como a cólera, a malária e a febre tifóide.

Em pleno surto de cólera, com os números de vítimas mortais a aumentar de dia para dia, Zacarias, médico no Hospital Distrital de Chiúre – um dos cinco municípios de Cabo Delgado –, revela que o principal motivo de ida ao hospital têm sido as doenças diarreicas, “por causa da água que as pessoas consomem dentro da comunidade”. Logo a seguir indica a malária e a tuberculose: “Temos muitos casos de tuberculose relacionados com a imunodepressão causada pelo HIV”. Quanto às condições de trabalho, preocupa-o a falta de luvas em pleno surto de doenças diarreicas. Por vezes há também rupturas do stock de medicação, de soro e de algum material médico cirúrgico. Neste momento, a falta de água é o problema mais alarmante: “Temos tido problemas com a bomba de água que alimenta o hospital, mas estão a resolver”. No total, são quatro médicos, num hospital que serve todo o distrito, com cerca de 238 mil habitantes (dados de 2013, INE). Por dia atendem mais de 500 pessoas. “Temos três médicos de clínica geral, um médico internista e um técnico de cirurgia”, diz. Apesar das dificuldades, o clínico geral destaca os aspectos positivos. No passado, para um doente fazer uma tomografia axial computorizada (TAC), por exemplo, tinha que ir a Maputo, a 2.340Km de distância. Agora, podem fazer em Nampula, a cerca de 280Km.

A lepra tem sido outra das preocupações dos missionários no terreno. Fruto do estigma e isolamento social que acompanha os portadores da doença, as autoridades e os profissionais de saúde não chegam a conhecer a maioria dos afectados. Sufo Carimo, coordenador geral da Fundação Sementes de Esperança, que opera em parceria com a Associação de Leprosos de Moçambique (Alemo), afirma que Cabo Delgado é a província onde a doença tem maior taxa de incidência, a par da Zambézia. O problema, diz, é sobretudo cultural. Iniciado o tratamento, a lepra deixa de ser contagiosa, mas a desinformação e os mitos em torno da doença condenam as vítimas à discriminação. “Acredita-se que quando a pessoa é atingida pela lepra é um castigo de Deus, por ter feito algo de errado, e que esse castigo pode ser transmissível. A pessoa é posta de parte, excluída da comunidade”, explica. O trabalho tem passado, assim, por sensibilizar a população e por ir ao encontro dos doentes, muitas vezes isolados no mato, e trazê-los de volta à comunidade.

A medicação para o tratamento da lepra já não foi a tempo de apagar as marcas das feridas nas mãos do vice-presidente da Alemo, Augusto Puanela, mas a rejeição de que foi vítima terminou assim que iniciou a toma dos comprimidos e que a comunidade compreendeu que a doença tem cura.

Apesar de todas as dificuldades, refere a irmã Marta, os moçambicanos “alegram-se com pouco”. No entanto, crê que a alegria serve para esconder “a tristeza que está dentro”. “Nós dizemos sempre que basta um batuque para fazer a festa, mas talvez seja uma festa para calar o pranto”, diz. Considera fundamental que o mundo não se habitue à pobreza de África e que cada um, a partir do seu país, se empenhe em mudar esta realidade. “Claro que não podemos ambicionar ser Europa, mas pelo menos ter o suficiente para uma vida digna, porque a vida que muitos deles levam não é digna de ser humano. A pessoa ir dormir sem comer ou beber para esquecer que o filho não tem estudos, que não tem comida, isto é muito difícil”, alerta.

E acredita que a chave para que os moçambicanos comecem a “sonhar mais alto” e o país se desenvolva é sobretudo uma: apostar na educação.

Reportagem publicada no Suplemento Igreja Viva de 29 de março de 2018.

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