Arquidiocese de Braga -

20 março 2016

Escutar como escutam os discípulos

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Homilia no Domingo de Ramos, na Sé Catedral de Braga.

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O livro do Êxodo é explícito ao lembrar que «o homem não pode contemplar-me e continuar a viver» (Ex 33, 20). Apenas Moisés falava com Deus face a face. Quem visse a Deus ficava atemorizado. Assim nos conta, por exemplo, Manoé: «Vamos morrer, não há dúvida, porque vimos o SENHOR!» (Jz 13, 22). Com a morte de Jesus, pelo contrário, «rasgou-se o véu do templo em dois» (Mt 27, 51), derrubou-se o muro do anonimato e passamos a ver Deus face a face sem que isso implicasse a morte. Bem pelo contrário. Fitando Jesus no alto da cruz, todo o cristão reconhece que aquele homem «era verdadeiramente o Filho de Deus!» (Mt 27, 54). Dito de outro modo, a incarnação de Jesus concedeu uma experiência sensitiva da fé. Pelo nossos sentidos, fazemos a experiência do amor Trinitário.

Hans von Balthasar, sacerdote e um dos teólogos mais importantes do século XX, escreveu no seu livro Gloria que a maior dificuldade dos apóstolos foi passar da experiência sensível à experiência de fé. Sabemos que os primeiros discípulos viram, tocaram e falaram com Jesus. Mas reconhecer que Jesus é Deus é um passo de fé. E captar tal realidade não é obra dos sentidos humanos mas, na linguagem dos padres da Igreja, dos sentidos espirituais.

Gostaria, por isso, caras irmãs e irmãos, de, ao longo desta Semana Santa, apresentar um itinerário espiritual que nos leve dos sentidos humanos aos sentidos espirituais… da experiência humana à experiência divina. Dos sentidos humanos passaremos para determinadas opções que caracterizam o discípulo missionário. Estamos, assim, a concretizar o Programa Pastoral. Depois, percorrendo este itinerário de conversão pessoal, creio que estaremos em condições de operar uma conversão pastoral. Aquilo que vemos, ouvimos ou tocamos não nos é dado apenas pelos nossos órgãos humanos mas também pelos nossos sentidos espirituais. Segundo Balthasar, o encontro com Deus dá-se quando os sentidos humanos, que tornam possível o acto de fé, se fazem espirituais e a fé se faz sensível. Surge depois a necessidade de transformar várias coisas nesta Igreja que amamos.

Na linha do grande património cristão, Orígenes defendeu um «sentido geral para o divino que se subdivide em várias espécies: uma visão para contemplar as coisas sobrenaturais, […] um ouvir para percepcionar as vozes que não ressoam no ar externo, um paladar para saborear o pão que desceu dos céus para dar a vida pelo mundo e ainda um olfacto para que percepciona aquilo de que fala Paulo – para Deus somos o bom perfume de Cristo – e um tacto de que fala João “tocou com as mãos as palavra de vida”».

Comecemos pelo escutar. A primeira leitura deste Domingo, retirada do livro de Isaías, diz-nos que o Senhor
«todas as manhã desperta os meus ouvidos para eu escutar, como escutam os discípulos» (Is 50, 4). E continua dizendo «o Senhor Deus abriu-me os ouvidos e eu não resisti nem recuei um passo» (Is 50, 5). Como sabemos, para compreendermos as realidades mais profundas da Humanidade, não basta ouvir… é necessário escutar.

Assim dizia Yves Congar: «o modo mais verdadeiro para ouvir é escutar». Escutar Deus mas também o grito dos aflitos, dos sem-voz, das injustiças e angústias; escutar aquelas realidades positivas distantes dos holofotes, a bondade do Homem, escutar o útero da Terra que continua a gerar vida.

«Escuta, Israel!» é o primeiro mandamento da lei de Deus porque, segundo o livro dos Provérbios, «quem me escuta viverá tranquilo, seguro, sem receio de mal algum» (Pr 1, 33). Como escutar?

1. Pelo silêncio. Somos bombardeados com música e imensos ruídos. O silêncio é, para muitos, desconfortável. Existe, contudo, um silêncio positivo. Aquele que nos permite concentrar e centrar no que é essencial. A espiritualidade cristã apela amiúde ao recolhimento e ao silêncio, não por ser algo “esotérico” mas porque é a linguagem própria da interioridade. Criemos, por isso, esses momentos. Em Ano da Misericórdia, porque não participar numa peregrinação para ouvir o silêncio que toca a consciência?

2. Abrindo os ouvidos. Perante os dramas da Humanidade, afastamos, por vezes, os nossos ouvidos. Não queremos escutar para não nos comprometermos. Já o Senhor tinha avisado que falava em parábolas pois nos tornamos «duros de ouvido» (Mt 13, 15) e ouvimos «sem ouvir nem compreender» (Mt 13, 13). Quantas vezes desviamos conversas, fugimos aos relatos da realidade ou simplesmente dizemos que é fantasia? Quantas vezes não dissemos que o drama dos refugiados é um exagero ou não nos compete a nós encontrar uma solução? E noutra vertente, quantas vezes não dissemos que ainda temos muitos fiéis nas nossas paróquias e nos recusamos a ouvir os clamores de quem denuncia o êxodo dos cristãos? A Arquidiocese está a chamar a um maior compromisso eclesial para ser verdadeiramente missionária aqui e agora. Não será chegada a hora de responder?

3. Escutando o diferente. As opiniões monolíticas podem, como sabemos, condicionar a nossa visão da realidade. Para conhecermos a realidade é importante ouvir pessoas e opiniões diferentes. Como é importante escutar o que o mundo diz à Igreja. Foi neste sentido que a Arquidiocese de Braga criou a plataforma de diálogo entre crentes e não-crentes “Nova Ágora”. Como tive oportunidade de referir no discurso de encerramento: «As razões da não crença interrogam-me. Estou certo que a minha fé também questiona quem não crê». Esta é a beleza de pluralidade, da aceitação do diferente e, ao nível da fé, um sinal inequívoco de maturidade. Quem é maduro e seguro de si não se escusa ao diálogo.

Gostaria ainda de deixar uma palavra aos jovens da nossa Arquidiocese. Hoje celebra-se o Dia Mundial da Juventude. Caros jovens, abri os vossos ouvidos à realidade que vos envolve. Sê-de os olhos da Igreja atentos aos dramas humanos; tê-de ouvidos dispostos a ouvir as angústias dos vossos amigos; preparai também os vossos ouvidos para, porventura, escutar a brisa suave do Senhor que passa pela vossa vida. Se algum dia «escutardes a sua voz, não endureçais os vossos corações» (Heb 3, 7-8). A vocação sacerdotal e de especial consagração é o modo mais sublime de viver a missão na Igreja. As tecnologias e as diversões oferecem-vos muitas coisas gratificantes, mas nada é tão gratificante quanto uma palavra certa no momento certo, uma palavra com sentido em momentos vazios. Não queirais ser mornos e sem sabor. Jesus e a Igreja esperam muito de vós. Confiamos plenamente em vós e ter-vos perto enche-nos o coração.

 

† Jorge Ortiga, Arcebispo Primaz

 

Pode ouvir aqui a homilia: 


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