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25 Jan 2020
Um testamento a cumprir
Homilia no funeral do atleta Paulo Gonçalves
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O Paulo Gonçalves encontrou a morte no Domingo em que a Igreja Católica celebrava a festa do Baptismo de Jesus. Nesse dia, os crentes foram convidados a reviver o seu baptismo para reconhecer que nele fomos mergulhados no seio da Santíssima Trindade, constituindo-nos Filhos de Deus. Na verdade, pela fé, temos um único Pai a quem chamamos Pai-nosso e nesta paternidade todos somos irmãos.

Esta é a grande novidade do cristianismo que poucos querem descobrir. Relacionar-se com um Deus que é Pai amoroso, amigo, companheiro e conviver com as pessoas, para além da raça, credo, cor, como verdadeiros irmãos.

Estamos, por isso, aqui hoje como irmãos do Paulo, tendo-o conhecido pessoalmente ou não, e identificamo-nos com os sentimentos de alguém que terminou a corrida da vida ainda muito jovem. Unidos a ele, sentimos de dar graças a Deus, num ambiente de alegria interior misturada com as lágrimas e saudades, por aquilo que ele foi como homem, como marido, pai, colega, amigo de profissão. A sua vida não foi uma corrida inútil. Deixou marcas que iremos conservar na memória. Sabemos que foi uma figura imersa no mundo do motociclismo a nível nacional e internacional. Deus seja louvado pelas metas que alcançou e pelos sonhos que realizou. A vida foi curta mas vivida com densidade e paixão.

Se nos unimos a ele como a um nosso irmão, unimo-nos, também, de um modo intenso à esposa e familiares. Peço-lhes que sintam o calor e o conforto de tantas pessoas que assim como se alegraram com as conquistas do Paulo, também choram a sua partida nas condições em que tudo aconteceu. Morreu no lugar onde gostava de jogar a vida e esse lugar agora ficou vazio. Mas a solidariedade enche-o com as nossas orações que consolam e pedem a Deus que lhe conceda a coroa de quem viveu a vida até ao fim. Sempre na mesma lógica do Baptismo que gera uma nova família, vamos renovar a nossa fé na certeza de que a família dos cristãos se prolonga para além da morte. Fisicamente sentimos a ausência e a perda. Interiormente, com a sua morte, a família adquiriu um protector que a acompanhará em todos os momentos, de um modo particularíssimo para com os filhos que terão sempre a certeza de um pai que continuará a acompanhar, a aconselhar, a estimular. Ele, vivo em Deus, saberá estar presente em todas as histórias familiares. Assim queiramos acreditar nesta verdade da Ressurreição.

 

Mas agora queremos prestar a nossa última homenagem ao Paulo e retirar conclusões para as nossas vidas.

Sabemos que existe um código de honra entre os pilotos do Dakar que é nunca deixar um companheiro em dificuldades para trás. 

O Paulo cumpriu-o. Ficou conhecido pelas muitas atitudes de grande fair play ao ajudar colegas em dificuldades. Em 2016 assistiu um piloto austríaco. Depois numa entrevista confidenciou. “No Dakar o risco está sempre à espreita. Não sou um herói, sou um ser humano com respeito pelos outros. A nossa vida vale mais do que qualquer vitória, sem ela não vencemos. O espirito do Dakar é isso mesmo. Passamos muitas horas sozinhos, muitas vezes no deserto. Umas vezes ajudamos, noutras somos ajudados.

Encontro nestas palavras uma espécie de testamento. A nossa verdadeira homenagem consiste em o acolher, transportando-o para a vida.

A sociedade moderna está caracterizada por muita indiferença. É por isso que há muitas pessoas sozinhas mesmo não estando no deserto. Não deveríamos permitir tanta frieza e distanciamento. O grande poeta Dante dizia na Divina Comédia. “Os lugares mais tenebrosos do inferno estão reservados àqueles que mantém a neutralidade”. A neutralidade perante as situações alheias, a indiferença perante as necessidades dos outros, o espirito de arranjismo, tornam a vida um verdadeiro inferno.

Convido a que levemos este testamento. Teremos de ajudar. Em casa, no emprego, no desporto, em qualquer lugar. Quando ajudamos, criamos as condições para merecermos ser ajudados. Sim! Importa ajudar sempre para que na hora da necessidade encontremos quem nos ajude.

Se este espirito de entreajuda não caracteriza a nossa sociedade, talvez o mundo do desporto seja um espaço onde necessita de encontrar muitas mais aplicações. A manifestação pública e a presença aqui de tantos dirigentes e desportistas mostra que o desporto, no seu estado mais nobre, cria pontes de amizade. Corremos o risco de permitir que isto aconteça só nestes momentos de dor e luto. A competição é importante, é legítima e até, quando bem vivida, torna-se numa arte, Mas tão importante quanto isso são os tempos fora da competição, longe das areias do deserto ou dos relvados do estádio. Temos necessidade duma nova cultura do desporto que seja capaz de levar as pessoas a encontrarem-se para juntos desenvolverem todas as suas capacidades e saberem que a felicidade só se conquista de mãos dadas. O desporto, normalmente, envolve muitas pessoas, muitas equipas. Se todos se ajudassem, movidos por um espírito de verdadeira fraternidade, o mundo poderia ser melhor.

Aí importa fortalecer laços de amizade, sentido de entre-ajuda, troca de experiências humanas, encontro com a multiculturalidade. O antagonismo acontece nos lugares onde o desporto se desenrola. Depois importa reconhecer que somos irmãos que caminham juntos. O resto são interpretações erradas.

 

Há um ano escrevi uma carta Pastoral que intitulei “Desporto, escola e missão de humanidade”. Aí, para não pensar que era só a linguagem de um Bispo, servi-me de um especialista em ética desportiva. Citei, “o desporto tem uma dimensão mais competitiva, mas tem mais ainda uma dimensão fulcral e fundamental que é dimensão valorativa. Esta dimensão da ética, dos valores, tem de estar presente, senão o desporto deixa de ser desporto para ser espectáculo somente”. “Sem valores, há golos e defesas, há passes e remates, há técnica e tácticas, mas não há desporto.”

Por onde passa a nossa homenagem ao Paulo? Por duas interpelações que partilhei convosco. Em primeiro lugar, o desporto necessita de ética, de valores e de princípios. Não esqueçamos que o Paulo chegou a receber o Prémio da Ética no desporto. A sociedade em geral também necessita de pessoas que, nas atitudes e palavras, digam que não vale tudo. 

Convido, ainda, a que guardemos a palavra “ajudar”. O que poderá trazer de novo à nossa vida de desportistas, de cidadãos e de crentes?

Que Deus Pai, em quem acreditamos, conceda a bem-aventurança ao Paulo e que Cristo, de quem somos todos irmãos, conceda à família e particularmente à esposa e filho, a certeza de que podem contar com a nossa presença que hoje não é de circunstância. Daqui saímos para percorrer o rali da vida onde encontraremos dunas traiçoeiras e areias peregrinas. Nascemos para sermos irmãos de todos e faremos o mundo mais solidário.

O deserto é belo. Falta-lhe apenas a vida. Não permitamos que este mundo seja um deserto.

 

† Jorge Ortiga, Arcebispo Primaz

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