Arquidiocese de Braga -

5 fevereiro 2014

UMA BALA... 30 ANOS DEPOIS.

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Artigo do Pe. Jorge Vilaça, Departamento Arquidiocesano para a Pastoral da Saúde, no âmbito do Dia Mundial do Doente, a celebrar-se no próximo dia 11 de fevereiro.

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Uma bala... 30 anos depois.

O Papa João Paulo II resiste ainda na memória de várias gerações, admirado em diversos ângulos: desportista, ator, comunicador, pastor, Papa, ministro de Deus, líder e animador de massas e de fiéis. No entanto, talvez tenha ficado marginal a sua faceta mais fecunda: a de sofredor.

Três anos após ter sofrido um atentado na praça de S. Pedro em Roma, experimentando por conta própria o limite da vida, publicou a 11 de fevereiro de 1984 a carta encíclica sobre o sentido cristão do sofrimento (Salvifici Doloris). Uma bala entrou-lhe no corpo e saiu-lhe em forma de testemunho. Nela define o ser humano como mistério e o sofrimento como apelo “à transcendência do homem”[1]; sofrimento que suscita compaixão, respeito e intimidação[2]. Por outro lado, apresenta a Sagrada Escritura como um grande “livro sobre o sofrimento”[3]. Trinta anos depois, falta cumprir-se a leitura deste documento. A bala que originou este testemunho reclama ainda a fecundidade da reflexão antropológica e de agir pastoral: a compaixão nos encontros, o respeito pela centralidade dos que sofrem, a timidez respeitosa da linguagem, por exemplo, nas celebrações litúrgicas exequiais. Subsiste ainda demasiada ligeireza de pensamento, demasiada distância na visitação e, sobretudo, demasiada banalidade nos encontros.  

É inesquecível a última aparição pública do Papa João Paulo II: no limiar das forças físicas, foi conduzido à janela do “angelus”, tentando sofregamente dizer algumas palavras à multidão que estava na Praça de S. Pedro e não o conseguindo fazer. Tentando repetidamente fazê-lo, ouve-se um tímido esgar de palavras imperceptíveis. Naturalmente todas as leituras deste gesto são possíveis mas é de todo sintomático que o sofrimento de um homem global, de um Papa e de um chefe de estado tenha sido assim visualmente exposto. Um Senhor exposto. Talvez nos tenha querido explicar-nos, olhos nos olhos, o que tinha escrito: “um outro grande capítulo deste Evangelho do sofrimento se vai desenrolando ao longo da história. Escrevem-no todos aqueles que sofrem com Cristo, unindo os próprios sofrimentos humanos ao seu [de Cristo] sofrimento salvífico”[4].

De facto, o evangelho do sofrimento continua a ser escrito em silêncio em muitas casas, lares, hospitais.... E se o paradigma dominante apela ao “tudo jovem, tudo belo, tudo saudável, tudo com sucesso” a reflexão antropológica eclesial e o acompanhamento pastoral deve distanciar-se claramente deste equívoco. O acompanhamento pastoral tem a marca da compaixão, centro e natureza da autoridade, capaz de evitar a distância da piedade bem como a exclusividade da simpatia[5]. A compaixão cristã exige, em primeiro lugar, a familiaridade com a nossa vida interior e a experiência pessoal da vulnerabilidade, expor-se a ferir e a ser ferido, lutando contra a tendência de ignorar ou negar as próprias feridas[6]. Deste modo evita-se a ansiedade dos encontros emotivamente fortes, abre-se espaço para uma relação amadurecida, e dá-se lugar ao (já afirmado anteriormente por João Paulo II) “doente como sujeito de evangelização”[7]. O doente não é um outro mas um pré-eu. A ferida do outro deixa de ser purulenta[8] para mim para ser o lugar que me revela a identidade e a missão. Numa expressão: pode haver fecundidade e sentido no sofrimento[9].

Henry Nouwen cunhou uma expressão particularmente profunda para este dinamismo pastoral: o curador ferido. O curador ferido, isto é, aquele que conseguiu dar um sentido à vida, à doença, à morte, consegue ter aquela liberdade graças à qual pode aproximar-se das feridas dos outros sem sentir-se ameaçado e, portanto, obrigado a recorrer a mecanismo defensivos. Como explicou Nouwen, somente aquele que se encontra à vontade em sua casa pode acolher um hóspede, criando-lhe um espaço livre de medos: “o curador ferido tem maior facilidade em superar a tentação de exercitar um relacionamento de poder sobre as pessoas às quais presta ajuda. Sabe, na verdade, que não é isento do mal estar que existe nas pessoas necessitadas de ajuda. O curador ferido, no desenvolver do seu ministério pastoral é motivado por um interesse autêntico e não por motivações ambíguas. Tendo feito a experiência de cura, o curador ferido pode ajudar a pessoa em dificuldade a percorrer o mesmo caminho, retomando a esperança”[10]. O curador ferido, “afinador de silêncios”[11], é no sentido positivo, um parasita: sabe ‘nutrir-se do alimento que está no outro e vem do outro’ e que, por isso não é – nem pode ser – conquista, domínio e posse mas graça, dom, reconhecimento e acontecimento[12]. Levinas e seus discípulos já nos falaram deste homem e, anteriormente, toda a tradição judaico-cristã: é o outro que me institui “eu”. Com António Couto podemos afirmar que “em termos bíblicos, há experiência religiosa verdadeira quando eu experimento a transcendência do outro sobre mim (…) que grita e ordena porventura no silêncio: ‘dá-me de comer, dá-me de beber’ (...) quebrando o cadeado que me prende a mim mesmo (idolatria) operando em mim o milagre da bondade radical, do dom[13]”. O “afinador de silêncios” constrói-se, portanto, na escuta da narração do outro, sem que isso signifique anulação ou dissolução de si, devendo-lhe unicamente uma proximidade dadora de esperança. En-colhe-se, por decisão, para criar espaço respirável para que o outro, desvelando-se, me institua e apele à liberdade máxima e à responsabilidade gratuita.

Pelo dito até aqui se compreende que para Nowen o cristão do futuro precisa de três qualidades: “articulador de acontecimentos interiores” (impedindo que se sofra por motivos errados), “homem de compaixão” e “crítico contemplativo”[14]. Numa linha mais científica, terá que ser capaz de elaborar um diagnóstico espiritual “processo através do qual o agente de pastoral, baseando-se nas informações fornecidas pela pessoa encontrada, consegue ler a sua situação (o seu universo, as suas preocupações, a sua história de vida…) à luz de uma perspectiva teológico-pastoral. Por outras palavras, trata-se de perceber a dimensão sagrada de cada aventura humana; entrar no mundo interior do outro e identificar as fontes que produzem sentido; descobrir que lugar Deus ocupa na história única da pessoa; avaliar o papel que a fé ocupa na gestão de uma experiência”[15].

Uma bala entrou no corpo do Papa João Paulo II. Saiu-lhe em palavras ensanguentadas na Salvifici Doloris. Trinta anos depois, que entre uma bala no corpo muralhado da Igreja. Quem sabe, ela se esvai em forma de testemunho.



[1] JOÃO PAULO II, Encíclica Salvifici Doloris, n. 2.

[2] Ibidem, n. 4.

[3] Ibidem, n. 6.

[4] Ibidem, n. 26.

[5] NOWEN Henry J. M., O curador ferido, pp. 53-69.

[6] BRUSCO A., Affondare le radici, estendere i rami, Camilliane, Torino 1999, pp. 85-99.

[7] JOÃO PAULO II, Christifideles Laici, n. 54

[8] “As feridas podem ser vividas de três modos distintos: se cuidadas, fazem crescer; se sepultadas ficam inconscientemente ativas e perturbam os comportamentos; se infectadas, impelem-nos em direções erradas”. PACOT Simone, L’evangelizzazione del profondo, Queriniana, Brescia 2008, p. 80.

[9] “A estratégia terapêutica da lei passa então, paradoxalmente, por aumentar o pecado. Aumenta-o para o manifestar. Manifesta-o para o curar”. COUTO A., Uma palavra é melhor que um presente, UCP, Lisboa 2009, p. 201.

[10] BRUSCO A., Affondare le radici, estendere i rami, Camilliane, Torino 1999, pp. 85-99.

[11] Cfr. COUTO Mia, Jesusalém, p. 16.

[12] Cfr. DI SANTE Carmine, L’io ospitale, Edizioni Lavoro, Roma 2001.

[13] COUTO A., Como uma dádiva. Caminhos de antropologia bíblica, UCP, Lisboa 2005, p. 284.

[14] NOWEN Henry J. M., op. cit., pp. 54-63.  “A perspectiva contemplativa, insisto, altera o olhar, não altera o mundo” MATTOSO José, Levantar o céu, Círculo de Leitores, Lisboa, pp. 255.

[15] BRUSCO A., Attraversare il guado insieme, Il segno dei Gabrielli editori, 2007, pp. 141-142.