Arquidiocese de Braga -
28 março 2013
O UNIFORME DE CRISTO
Homilia na Missa de Lava-Pés.
O uniforme de Cristo
Homilia na Missa de Lava-Pés
Experiência humana
1. Era uma vez uma viúva simples, que depois de uma vida inteira de trabalho, tinha morrido e encontrava-se agora perante o S. Pedro às portas do Céu. Havia muitas pessoas à sua frente e o S. Pedro ia dando as sentenças, conforme a ordem de chegada.
A uma disse: “Estava ferido na estrada e tu levaste-me ao hospital. Por isso, entra no Paraíso.” A outra disse: “Estava sem dinheiro e fizeste-me um empréstimo sem juros. Por isso, entra no Paraíso.” A uma outra disse: “Fizeste-me muitas consultas médicas grátis. Por isso, entra tu também no Paraíso.” A uma outra disse ainda: “Estava sem casa e abriste-me a tua porta por alguns dias, até que arranjei alojamento. Por isso, entra no Paraíso.”
Chegada a vez desta viúva simples, ela temia a sentença pois, a julgar pelas outras, não tinha feito nada de especial. Porém, S. Pedro ao vê-la sorriu e disse: “Tu passaste as minhas camisas a ferro. Por isso, entra tu também no Paraíso!”
Liturgia da Palavra
2. Partindo desta história, comprovamos como o mundo não se constrói apenas com grandes presidentes, grandes descobertas científicas ou grandes discursos musculados, mas também com pequenos e silenciosos “gestos alternativos” [1] que, fundados na fé, “podem salvar muitas vidas humanas, na medida em que lhes oferece o argumento do amor” [2] , como nos ensina o filme “Favores em Cadeia”.
O evangelho de hoje informa-nos sobre a origem destes gestos. Antes e durante as refeições rituais, era costume os israelitas piedosos fazerem lavagens com água, cujas mãos do chefe da mesa eram lavadas por um servo ou pelo mais novo dos convidados. Mas nesta Ceia algo inédito acontece: Jesus, o chefe da mesa, levanta-se, depõe as vestes como faziam os escravos, pega numa toalha e cinge-a à volta da cintura. Depois deita água na bacia e começa a lavar, não as mãos, mas os pés dos discípulos, e a enxugá-los com a toalha de que Se tinha cingido.
Tratou-se de algo tão surpreendente que todos ficaram atónitos, revelando assim um novo rosto de Deus. Todavia, no meio deste cenário há um pormenor posterior que me cativa: quando regressou ao seu lugar, o evangelista não diz que Jesus tirou o avental antes de ter retomado as vestes. De facto, esta peça de roupa ficou sempre com Ele. [3] Com base neste pormenor, eu creio que o avental do serviço simboliza na perfeição o uniforme dos cristãos na actualidade.
Erros ideológicos
3. Se muitos asseguram que a Igreja é uma instituição poderosa, gostaria de lhes recordar que o nosso poder chama-se apenas caridade.
A título de exemplo, os marxistas vieram atacar a Igreja, acusando-a de ser contra os proletários e a favor dos ricos, quando é evidente o contrário, isto é: “o cuidado permanente, multissecular e pluricultural dos cristãos para com os pobres e infelizes, e as maravilhas sociais da solidariedade católica no apoio aos mais desfavorecidos.” [4] Como prova disso, exibimos o “Prémio Direitos Humanos” atribuído recentemente pela Assembleia da República à Cáritas Portuguesa.
Um outro caso reporta à denominada Teologia da Prosperidade que as novas igrejas/seitas cristãs defendem, prometendo a retribuição de Deus pelas nossas obras, não no fim da vida, mas já aqui e agora. Se já sabíamos que existem religiões que matam em nome de Deus, estas novas igrejas, como o caso da IURD, exploram os homens em nome de Deus com promessas anti-crise, “garantindo que ele retribuirá a triplicar todo o dinheiro que é oferecido no altar”. [5] A essas igrejas oferecemos-lhe a citação da Carta de S. João: “Deus é Amor”.
Porque se Deus é amor, Ele não se inscreve numa lógica comercial, mas numa lógica caritativa. Se assim fosse, Jesus só teria lavado os pés aos seus discípulos, depois de estes pagarem previamente esse serviço.
Desafios Pastorais
4. Aliás, Jesus sabe que Deus não pode mudar o mundo sozinho, sem que essa mudança comece primariamente por nós. Por isso, neste ano da Fé, precisamos de redescobrir a fé na eucaristia e as implicações socias do seu mistério. [6]
A propósito destas implicações sociais, vem-me agora à mente a figura do Pe. Abílio Gomes Correia, um dos rostos de fé da nossa Arquidiocese, cuja biografia gostaria que fosse mais conhecida. A sua vida de amor à Eucaristia, como experiência pessoal de quem nunca se cansava de saborear a presença de Deus nas longas horas de adoração, deu-lhe forças extraordinárias para suscitar idêntico amor junto dos mais necessitados. [7]
Na verdade, a eucaristia não se limita nem se reduz ao aspecto celebrativo, mas excede-se até à caridade. [8] E neste tempo em que somos bombardeados com a palavra crise, a eucaristia pode oferece-nos gratuitamente um pouco de luz para a nossa noite, um pouco de paz para a nossa luta, um pouco de amor para o nosso ódio, um pouco de água para a nossa sede, um pouco de doação para o nosso egoísmo, um pouco de calor para a nossa frieza, um pouco de ideal para o nosso desânimo, um pouco de alegria para a nossa tristeza, um pouco de auxílio para a nossa necessidade e um pouco de fé para a nossa dúvida! O dom da eucaristia exige-nos uma vida em doação gratuita.
5. Para terminar, o poeta Teixeira de Pascoaes afirmava: “todos os gestos de um homem visam a Humanidade.” Por isso, superemos a máquina sedutora da publicidade e vistamos o avental da caridade, autêntico uniforme de Cristo. Se assim for, já não precisaremos de temer a sentença final de S. Pedro, como aquela viúva simples, porque os nossos gestos alternativos serão a antecipação do sinal salvífico de Deus. E como nos pedia o Papa Francisco, na missa de entronização papal: “Não tenhamos medo da bondade e da ternura!”
+ Jorge Ortiga, A.P.
Sé Catedral de Braga, 28 de Março de 2013.
[1] Cf. D. Jorge Ortiga, Gestos Alternativos. Mensagem para a Quaresma 2013.
[2] Cf. D. Jorge Ortiga, Proibido Desistir! Mensagem para o Ano-Novo de 2013.
[3] Cf. Fernando Armellini, O Banquete da Palavra. Festas, 241.
[4] João César das Neves, Contos de Páscoa, 62.
[5] «Revista Visão», Fé em tempos de crise, 24 a 31 de Janeiro de 2013, 64-70.
[6] Cf. Bento XVI, Sacramentum Caritatis, 89.
[7] Cf. António Costa Neiva, O Cura d’Ars Português. Padre Abílio Gomes Correia, edição da Comissão Fabriqueira de S. Mamede de Este, 18-19.
[8] Cf. João Paulo II, Ecclesia de Eucharistia, 12.
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