Arquidiocese de Braga -

5 dezembro 2013

O ROSTO DAS CIDADES

Default Image
Fotografia

Homilia na festa de S. Geraldo, Padroeiro de Braga.

\n


Celebramos a festa do grande reconstrutor da cidade depois do domínio muçulmano que a havia descaracterizado. Antes dele encontramo-nos com o Arcebispo D. Pedro que deu vida a esta Catedral, símbolo duma matriz que voltaria a ser dominada por um humanismo integral. A alusão a estes dois Arcebispos sublinha que, na vida das comunidades, o espiritual tem espaço peculiar e o material oferece o seu contributo imprescindível, tudo em ordem à qualidade de vida do povo. Muitos quiseram falar de “dois reinos”, “duas cidades”.

Como crentes, só compreendemos este problema colocando os dois poderes em modo de responsabilidade cooperativa (co+operar = trabalhar juntos) para o mesmo fim. Já Aristóteles definia o homem como amante do bem da pólis, político no sentido genuíno da palavra, o que se concretizava através dum diálogo permanente e dum compromisso sério orientando as duas dimensões da vida para o mesmo sentido.

  Como reconstrutor da cidade de Braga, a merecer-lhe juntamente o título de Padroeiro da cidade, São Geraldo oferece-nos este exemplo, que hoje teremos de o saber reinterpretar. Sem perder o específico da dimensão política e religiosa, é fundamental estabelecer laços de cooperação para que a vida de todos se torne verdadeiramente humana, pois como referia hoje o Senhor Presidente da Câmara Municipal de Braga, numa entrevista a um jornal local: “é incontornável que a câmara municipal e outros agentes tenham com a Igreja uma relação de colaboração contínua”[1].

  Por vezes, ouvimos os produtores de opinião a exigir que a Igreja fale mais nestas ocasiões de crise, alertando para a desigualdade social, onde um restrito grupo de portugueses enriquece e a maioria, situada no meio, é permanentemente sacrificada, acrescentando-se um número crescente de portugueses que já vivem à margem da dignidade, por falta do essencial em verdadeiros índices de pobreza. Terá a Igreja de falar mais ou deverão os portugueses ouvir mais a palavra do Papa e dos Bispos? Poderemos ter uma linguagem que parece abstracta, mas o anúncio da justiça é permanente e as denúncias aparecem em tantas ocasiões, tal como nos interpela o evangelho de hoje.

  Por vezes, penso nos católicos e interrogo-me se conhecem a Doutrina Social da Igreja e as intervenções nos mais variados areópagos dos últimos Papas. E interrogo-mr se trabalham, sem vergonha, para que esta doutrina se concretize. Não basta, por exemplo, falar do Papa Francisco. Importa que o seu pensamento, verdadeiramente interpelante, incomode as consciências e renove o modo de viver e agir.

  Se é de esperar esta cooperação e reconhecer que a Doutrina Social da Igreja é um tesouro desconhecido a suscitar paradigmas de vida novos, não podemos prescindir dum trabalho já feito pela Igreja. São sempre atuais as palavras do Papa Bento XVI, quando afirmava: “Não precisamos de um Estado que regule e domine tudo, mas de um Estado que generosamente reconheça e apoie, segundo o princípio de subsidiariedade, as iniciativas que nascem das diversas forças sociais e conjugam espontaneidade e proximidade às pessoas carecidas de ajuda. A Igreja é uma destas forças vivas.”

  O dia de hoje, neste ambiente festivo para a cidade, quer significar que estamos aqui, Igreja e autarquias, para mostrar que o bem-estar do nosso povo depende deste agir comum, colocando a dignidade humana sempre em primeiro lugar. Só assim, a cidade de Deus e a cidade dos homens deixarão de ser dois reinos separados, para se tornarem uma única causa.

  Quero deixar outra ideia.

  Com o Papa Francisco estamos empenhados em renovar a Igreja, e esta renovação, entre outros aspetos, passa pela consciência de que Deus colocou nas mãos de cada um uma missão salvadora, sabendo que o fiel desempenho desta missão proporciona e oferece felicidade ao próprio e aos outros. Rezo hoje para que, por intercessão de S. Geraldo, esta consciência de serviço e missão se incremente entre nós e em todos os âmbitos.

  Perante uma missão a interpretar por cada um, o cristão vive-a em qualquer lugar, dentro e fora da Igreja, em Braga ou fora de Braga, na economia ou na política, na universidade ou no mundo da saúde. Quero, com emoção e saudade, recordar um dos nossos sacerdotes que cedo partiu para o Brasil em missão de compromisso com um povo que não conhecia mas amou. Depois de alguns anos de serviço eclesial ainda tentou regressar à sua terra. Mas maiores necessidades chamaram-no, e ele não resistiu ao convite para partir, depois de ter trabalhado somente três anos em duas paróquias da nossa Arquidiocese. Mais tarde, chamado ao episcopado, exerceu o seu serviço até à entrega da vida. Já o ano passado foi acometido de doença grave durante o período de férias a gozar entre nós. Só se tranquilizou quando regressou para o meio do seu povo. Faleceu no dia 1 de Dezembro com 70 anos. Quero recordá-lo, não só pela amizade pessoal e eclesial, mas por este testemunho de missão e paixão que deixa ao seu presbitério de Braga. Que D. António Lino da Silva Dinis, junto de Deus, questione a Igreja de Braga – Bispos, sacerdotes e leigos – sobre a sua consciência de missão, exercida com paixão desinteressada pelo povo. E que os leigos acreditem que vale a pena gastar-se pelo bem da humanidade.

  Para terminar, reza a história que S. Geraldo morre quando efetuava uma visita pastoral longe de Braga, mas no meio do povo, fazendo jus às recentes palavras do Papa Francisco: “é preciso sentir o cheiro das ovelhas”. Por isso, sejamos seus continuadores no gesto de estar com o povo para lhe abrir horizontes de vida digna: os crentes, políticos ou sacerdotes, como exigência da fé que orgulhosamente deveríamos professar por obras e palavras; e os não crentes, por amor a um povo que necessita de alguém que trabalhe por ele. Sejamos, todos e em espírito de verdadeira cooperação, capazes de dar à nossa cidade um rosto mais humano.

† Jorge Ortiga, A.P.

Braga, 05 de Dezembro de 2013.

 



[1] Suplemento «Igreja Viva» do jornal «Diário do Minho», 5 de dezembro de 2013, p. 4.