Arquidiocese de Braga -

14 fevereiro 2021

Amparar quem mais necessita

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Homilia no VI Domingo do Tempo Comum

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A Bíblia começa, como todos sabemos, por um conjunto de cinco livros a que intitulámos de Pentateuco. Este conjunto é uma espécie de pórtico da Bíblia que contém em gérmen todo o projecto humano e divino de que falará todo o Velho e Novo Testamento. Aí se pretende explicar como nasceu Israel, como se constituiu em povo e quais os caminhos que deveriam percorrer para atingir os objectivos de povo escolhido por Deus. São cinco livros que compõem o Pentateuco, todos com uma característica própria e diferente. O segundo chama-se Levítico. Aí se manifesta um povo à escuta da Lei que Moisés manifesta em nome de Deus. É uma espécie de manual de prescrições que os sacerdotes deveriam observar no culto, assim como um conjunto de ensinamentos destinados ao povo onde se aponta um conjunto de deveres que todos deveriam cumprir no seu viver em sociedade.

A primeira leitura fala-nos de rigorosas prescrições a serem observadas para defender a comunidade do contágio de doenças, determinando que o doente se afastasse da comunidade. O leproso deveria segregar-se da comunidade e trazer consigo diversos sinais que o identificasse, gritando para que ninguém dele se aproximasse, correndo o risco de ser contagiado. Durante o tempo da lepra eram verdadeiramente excluídos da comunidade, devendo usar um vestuário andrajoso e o cabelo desalinhado e gritando impuro para que ninguém dele se aproximasse.

No Evangelho que ouvimos parece que Jesus Cristo não cumpriu quanto estava determinado. Também Ele se deveria afastar do leproso que, irresponsavelmente, se aproximou de Jesus solicitando que o curasse. Jesus não só não o admoesta pelo facto dele se aproximar mas foi mais além tocando, correndo o risco de ser contagiado. Jesus não quis ir contra a lei estabelecida. Quis ter um sinal através do milagre da cura, aproximando-se e dando-lhe saúde. Inverteu os esquemas para mostrar que ninguém deve ser excluído, descartado, marginalizado, mesmo que seja um leproso.

O nosso programa pastoral mostra-nos uma cena idêntica. O Samaritano viu um homem ferido à margem da estrada e poderia continuar o seu caminho pois não era nada com ele. Pelo contrário, encheu-se de compaixão e cuidou dele no momento e entregando-o na estalagem com o pedido de que o estalajadeiro continuasse o processo de cura, garantindo que pagaria todas as despesas desde que o tratasse bem.

A passagem do Evangelho, na sua ligação com o quanto era determinado no Levítico, convida-nos a que olhemos para tudo o que está a acontecer. Temos a Covid extremamente contagiosa. Não podemos negligenciar as nas nossas atitudes e, responsavelmente, teremos de nos confinar. Sabemos que é o bem de cada um que está em questão. Não vamos baixar a fasquia. Mais do que nunca, e por muito que nos custe, teremos de continuar a trabalhar para readquirirmos a normalidade tão ansiada.

Quero, porém, convidar, segundo a lógica do Evangelho, a que nos interroguemos sobre os comportamentos a ter, pessoalmente e em sociedade, para aqueles e aquelas que se encontram em confinamento. Estarem confinados não é a mesma coisa de estarem sozinhos, isolados sem o contacto mínimo com os outros. Não sei o que poderemos fazer. Só sei que começa a ser urgente repensar esta situação. Há pessoas sozinhas no seu apartamento, passam dias e dias sem verem ninguém. Também nos lares a vida é passada nos quartos com raríssimos contactos com os outros, sem nenhuma actividade que desanuvie uma pressão que começa a ser custosa. Basta ir conversando com quem lá se encontra para verificar muita tristeza, desalento. Não é por acaso que as depressões estão a crescer e não sei se também o número de pessoas idosas que estão a morrer, em ritmo crescente, e não se morre só por covid. Não se deverá a este ambiente motivado pelo confinamento, absolutamente necessário, que empurra para a tristeza da solidão?

Penso ser necessário trazer para a reflexão este assunto. Os cuidados médicos são necessários. É preciso mais alguma coisa. Acredito que juntos poderemos encontrar soluções equilibradas, até porque nos vão dizendo que o confinamento é para continuar.

A Academia Pontifícia para a Vida, do Vaticano, publicou, esta semana, um documento intitulado “A velhice: o nosso futuro. As condições dos idosos após a pandemia”. Aí se sugere uma viragem cultural para restituir dignidade aos idosos. Perante uma cultura do descarte que, entre outras coisas, “se pode manifestar em preguiça e falta de criatividade na busca de soluções eficazes”, importa trabalhar colocando “no centro da atenção a pessoa, com as suas necessidades e direitos”, isto como expressão do progresso, da civilização e da autêntica consciência cristã.

Aí é dito com toda a clareza: “toda a sociedade civil, a igreja e as várias tradições religiosas, o mundo da cultura, da escola, do voluntariado, do espetáculo, da economia e das comunicações sociais devem sentir a responsabilidade de sugerir e apoiar - no interior desta revolução Copérnicana – novas e incisivas medidas para que seja possível aos idosos serem acompanhados e assistidos em contexto familiar, na sua casa e, em todo o caso, em ambientes familiares que se assemelhem mais à casa que ao hospital”.

É isto que me parece ser urgente encarar. Envolver a todos numa séria reflexão para que sejam encontrados outros modos de acompanhar a velhice, dando prioridade aos ambientes familiares ou fazendo com que os outros espaços também sejam similares. “A institucionalização dos idosos, sobretudo dos mais vulneráveis e sós, sendo necessário, não pode ser proposta como a única solução possível. Em todos os casos só um ambiente similar, com tudo o que isto implique, pode dar dignidade”.

Se precisamos, segundo o documento da Santa Sé, de encontrar novas e mais sábias políticas de saúde pública e propostas originais de um sistema assistencial mais adequado à velhice, vão acontecendo iniciativas que devem ser conhecidas, não para serem elogiadas mas para reconhecer que muito mais pode ser feito para que os nossos idosos readquiram a alegria em viver. 

A Arquidiocese voltou a activar o serviço “um ouvido com coração” que é coordenado por cinco sacerdotes e que tem por objectivo escutar e acompanhar espiritualmente todos os que estão a passar por uma situação de sofrimento. As conversas são confidenciais e de absoluto sigilo. A todos quantos nos seguem pela internet peço que dêem a conhecer a iniciativa ou, se tiverem necessidade, recorram a ela sem hesitar. A linha verde está acessível todos os dias e basta perguntar pelo número do telefone.

Também os jovens da Pastoral Universitária deram origem a uma experiência que será retemperadora para muitas pessoas. Foi estabelecido um protocolo com a P.S.P que apresentou os jovens a alguns idosos, e agora esses jovens irão estar em contacto com eles. E será telefónico, mas aberto a encontros, se for necessário. 

As distâncias vão-se abatendo, a solidão é preenchida e é de esperar que não se sintam excluídos, marginalizados, descartados como acontecia no tempo de Cristo. Ele quis tocar aquele leproso para lhe restituir a saúde. Não é possível tocar, mas pequenos gestos podem humanizar o quotidiano. Gostaria que a nível local ou nacional se tomasse consciência da situação de muitos idosos, nas suas casas ou institucionalizados, e que surgisse uma séria reflexão. É tão importante como os cuidados sanitários ou, se quisermos, é a medicina que importa praticar.

 

† Jorge Ortiga, Arcebispo Primaz


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