Arquidiocese de Braga -

31 agosto 2009

Tarefa permanente: reavivar o dom

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Colaborador

Discurso de abertura no Simpósio do Clero - Fátima

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1. Verdadeiramente seja bendito, Deus, que nos reuniu aqui, bispos e sacerdotes, como irmãos, a quem saúdo fraternalmente, para reflectir e reavivar o imenso dom que nos foi dado de Sua parte: o sacerdócio. Saúdo, também, todos os diáconos e todos seminaristas aqui presentes, sinais visíveis de quem se encontra num tempo forte de procura, numa perspectiva de missão na Igreja, e reconhece nos seus irmãos mais velhos um reflexo da sua entrega ao Senhor da Vida.

2. No passado dia 26 de Maio, o Cardeal Hummes escreveu uma carta a todos os sacerdotes, por ocasião do Ano Sacerdotal, onde exortou a que este ano fosse oportunidade "para um período de intenso aprofundamento da identidade sacerdotal, da teologia do sacerdócio católico e do sentido extraordinário da vocação e da missão dos sacerdotes na Igreja e na sociedade". Algo que poderia ser alcançado, entre várias possibilidades, por meio de congressos de estudo e jornadas de reflexão.

Assim, este Simpósio surge como proposta de vida para os sacerdotes, uma vida que se questiona em perspectiva da comunhão e da fidelidade. No fundo, podemos olhar para a identidade do sacerdote na lógica de uma comunhão que exige fidelidade. "Fidelidade de Cristo, fidelidade do sacerdote", assim proclamou o Papa Bento XVI como lema para o corrente ano.

Torna-se, portanto, urgente repensar a identidade do sacerdote que constantemente vive na tensão de saber que, à imagem de Cristo, não pertence a este mundo (Jo 1, 9) mas, por outro lado, joga a sua fidelidade no tempo que lhe é proposto viver (Mc 16, 15); vive numa cultura profundamente marcada pelo relativismo que recusa toda a verdade absoluta e transcendente e ainda os valores fundamentais, mas, por outro lado, é chamado a propor ou repropor de um modo positivo o Senhor da Vida que veio habitar connosco (Jo 1, 14).

Como poderá, então, o sacerdote viver a sua fidelidade a Cristo na fragilidade do nosso tempo e da nossa condição? Permitam-me que lance apenas algumas pistas de reflexão, na certeza que este Simpósio possibilitará uma reflexão mais aprofundada.

3. Sacerdote fiel a Cristo. No decurso de uma intervenção do Sínodo dos Bispos de 1990, sobre a formação dos sacerdotes, o cardeal Joseph Ratzinger afirmou inequivocamente que o "essencial e fundamental para o ministério sacerdotal é o seu profundo vínculo pessoal com Cristo". Nesta identidade cristológica, o sacerdote deve ter consciência que a sua vida é um mistério totalmente inserido no mistério de Cristo. No início da Sua vida pública, Cristo escolheu doze para "estarem com Ele" (Mc 3, 14), desejo esse que se perpetua connosco, e nos desafia, à imagem da Trindade, a um amor recíproco permanente e a uma doação incondicional da vida.

4. Sacerdote fiel a si mesmo. Creio que a nossa maturidade cristã ou sacerdotal é tanto mais genuína quanto maior for a nossa maturidade humana. O mesmo é dizer que o nosso ministério não aniquila a nossa identidade. Bem pelo contrário, Deus quando irrompe na história, na nossa vida, faz-se presente e transforma-nos qualitativamente, uma vez que daí em diante participamos da Sua natureza divina (DV 2). Assim, quanto mais humanos formos, mais divinos seremos, como condição imprescindível para a qualidade do ministério.

5. Sacerdote fiel ao dom recebido. "Recebeste de graça, dai de graça" (Mt 10, 8). É neste paradigma da total gratuidade que a Igreja relê o dom do ministério que lhe foi concedido por Deus. Sendo dom não encontra amarras nem pode ser confinado por pressões exteriores. Bem pelo contrário, sendo dom é para se exceder, é para contagiar. Naturalmente o dom necessita de instrumentos para se multiplicar e nós, enquanto sacerdotes, temos de ter consciência disso. Nada nos pertence, tudo é de Deus (Jo 17, 6-8). Curiosamente esta é a nossa maior segurança: saber que o "dom ultrapassa o mérito" (CV 34) e que a mensagem que procuramos transmitir não é produto do nosso intelecto mas uma verdade que nos é primeiramente dada e que depois vamos transmitindo fielmente de geração em geração.

Numa sociedade que equaciona a vida em termos de direitos e deveres, surpreender o mundo com uma linguagem completamente diferente, como é a da gratuidade, poderá ser um sinal inquietante da vitalidade da Igreja, e assim "Deus possa ter espaço na esfera pública" (CV 56). Gratuidade quanto ao nosso tempo, às nossas vontades, à nossa entrega, a tudo aquilo que somos e temos para sermos "chão" para os nossos irmãos, como nos lembrava João Paulo II, reflectindo sobre o gesto da prostração. Trata-se de sermos servos de Cristo para, com Ele, nos fazermos servos dos nossos irmãos, não como quem se aniquila mas como quem já experimentou o "excesso do dom" de Deus e quer que outros façam a mesma experiência.

6. Sacerdote fiel ao bispo e ao presbitério. Nas palavras da Pastores dabo vobis: "não existe, efectivamente, ministério sacerdotal senão na comunhão com o Sumo Pontífice e com o Colégio Episcopal, e de uma forma particular com o próprio Bispo diocesano, aos quais se deve guardar «o filial respeito e a obediência» prometidos no rito da ordenação" (PDV 28). Este não é, deveras, um pormenor. Daí que só na medida em que colocarmos em prática a comunhão dentro do presbitério, poderemos ser modelo de comunhão nas comunidades cristãs.

Naturalmente criar unidade não é fácil. Urge que acreditemos que só a comunhão pessoal com Deus cria as condições e o ambiente propício para promover relações proveitosas de fraternidade presbiteral. Olhando para a nossa realidade com os "olhos" de Deus, tudo sairá transformado e a nossa fidelidade será mais genuína.

Neste mundo em mudança, o Bispo deve ser um irmão maior, uma ajuda mútua de crescimento e resposta colegial, alguém disponível para partilhar as maravilhas de Deus, mas também sempre pronto a apoiar em momentos de maior fragilidade, incompreensão, falta de saúde e de "noite escura", para que a fidelidade não encontre desencanto.

Por outro lado, é imperioso estabelecer entre os sacerdotes "vínculos de caridade apostólica, de ministério e de fraternidade" (PDB 17). Esta caridade deve, do mesmo modo, estender-se aos nossos irmãos sacerdotes que, por diversos motivos, abandonaram o exercício do ministério. Nas palavras do Cardeal Bertone e de Bento XVI, o Ano Sacerdotal que agora vivemos poderá ser uma oportunidade para recuperarmos o contacto com eles.

Quero recordar o que o Papa referia na Carta onde proclamava o Ano Sacerdotal (16 de Junho de 2009):

Queria ainda acrescentar, apoiado na Exortação apostólica Pastores dabo vobis do papa João Paulo II, que o ministério ordenado tem uma radical «forma comunitária» e pode ser cumprido apenas na comunhão dos presbíteros com o seu bispo. E preciso que esta comunhão entre os sacerdotes e com o respectivo bispo, baseada no sacramento da Ordem e manifestada na concelebração eucarística, se traduza nas diversas formas concre¬tas de uma fraternidade sacerdotal efectiva e afectiva. Só deste modo é que os sacerdotes poderão viver em plenitude o dom do celibato e serão capazes de fazer florir comunidades cristãs onde se renovem os prodígios da primeira pregação do Evangelho.

Como consequência desta fraternidade vivida, o sacerdote deve sentir-se convidado a ser "o tecelão paciente da comunhão da sua paróquia com a sua Igreja particular e com a Igreja universal" . É trabalho paciente que nunca poderemos considerar realizado.

7. Sacerdote fiel à missão. Tendo por pano de fundo o capítulo décimo de S. Mateus, a missão do presbítero torna-se evidente. Somos enviados a seguir por novos caminhos, a proclamar o Reino do Céu, a curar os enfermos e os marginalizados, a viver no espírito de pobreza e a não nos apegarmos às realidades que nos oprimem. De entre todos, devemos ter um olhar de maior ternura para "as ovelhas perdidas da casa de Israel" (Mt 10, 6), que nos nossos dias tem múltiplos rostos.

Aqui e agora, teremos de percorrer os caminhos desta nova humanidade, nas suas alegrias e tristezas. Não é fácil ser fiel à missão. Nos últimos documentos, a Igreja autodefine-se como mistério, comunhão e missão. Talvez tenhamos corrido apressadamente para a missão e pode acontecer que esta esteja a afastar-nos do mistério a acolher e da comunhão a vivenciar. Ninguém ignora a dimensão santificadora do ministério. Por si, pode moldar-nos mas não é difícil confundi-lo com uma técnica para realizar um conjunto de actividades.

Para que na azáfama das solicitações sejamos fiéis ao dom recebido necessitamos duma espiritualidade profunda, séria, consistentes, assumida como algo prioritário e que, num ambiente de egoísmo e individualismo, deverá ser marcada pelas exigências da comunhão. Só por meio de uma espiritualidade - acolhimento do mistério - da comunhão, seremos homens felizes na missão que nos foi confiada.

Para esta vivência duma espiritualidade sacerdotal forte muito podem contribuir os dons que o Espírito vai concedendo à Igreja. Estou a correr o risco de entrar num assunto polémico. Parece-me que, teoricamente, está ultrapassado. Penso, porém, que ainda existem muitos medos. Para que não fique numa opinião pessoal, sirvo-me das palavras do Papa Bento XVI, na referida Carta para a proclamação do Ano Sacerdotal.

No contexto da espiritualidade alimentada pela prática dos conselhos evangélicos, aproveito para dirigir aos sacerdotes, neste Ano a eles dedicado, um convite particular para saberem acolher a nova primavera que, em nossos dias, o Espírito está a suscitar na Igreja, através nomeadamente dos Movimentos Eclesiais e das novas Comunidades. «O Espírito é multiforme nos / seus dons. (...) Ele sopra onde quer. E fá-lo de maneira inesperada, em lugares imprevistos e segundo formas precedentemente inimagináveis (...); mas demonstra-nos também que Ele age em vista do único Corpo e na unidade do único Corpo». A propósito disto, vale a indicação do decreto Presbyterorum ordinis: «Sabendo discernir se os espíritos vêm de Deus, [os presbíteros] perscrutem com o sentido da fé, reconheçam com alegria e promovam com diligência os multiformes carismas dos leigos, tanto os mais modestos como os mais altos». Estes dons, que impelem não poucos para uma vida espiritual mais elevada, podem ser de proveito não só para os fiéis leigos mas também para os próprios ministros. Com efeito, da comunhão entre ministros ordenados e carismas pode brotar «um válido impulso para um renovado compromisso da Igreja no anúncio e no testemunho do Evangelho da esperança e da caridade em todos os recantos do mundo».

8. "Reaviva o dom que há em ti" (2 Tm 1, 6), assim exortava S. Paulo a Timóteo e, do mesmo modo, este Simpósio se dirige a cada um de nós. Reacender o dom de Deus que se encontra em nós, neste ano sacerdotal em que somos convidados a voltar à fonte, beber da água viva, repensar a nossa identidade diante de Cristo e depois testemunhar a todos os cristãos que o sacerdócio, sendo dom de Deus é gerador de alegria e fidelidade, é o grande objectivo deste Simpósio. Os resultados encontram-se nas mãos de cada um.

Fátima, 01 de Setembro de 2009

† Jorge Ortiga, Arcebispo Primaz e Presidente da C.E.P.

Tarefa permanente: reavivar o dom