Arquidiocese de Braga -
2 maio 2014
A MISSÃO DA IGREJA NA PREVENÇÃO, NA PRISÃO E NA REINSERÇÃO
Discurso na abertura do congresso sobre pastoral prisional, em Fátima.
"Não importa quão estreito seja o portão
e quão repleta de castigos seja a sentença
eu sou o dono do meu destino, eu sou o capitão da minha alma".
Este trecho do poema "Invictus", escrito pelo britânico William Ernest Henley, foi a tábua de salvação que serviu a Mandela para não naufragar nos dias sem esperança e nas noites sem misericórdia que passou como prisioneiro em Robben Island.
Nas cadeias há pessoas… e são gente: têm família, têm coração, sentimentos, sonhos; pessoas que têm uma consciência que também fala; há lá dentro mulheres que são mães, homens que são pais, jovens que têm cá fora o namorado ou o noivo e esperam por um sorriso que regresse, um gesto que se reencontre, uma mão que subitamente aperte a vida que deixou de ser, por momentos, calorosa, companheira, sorridente e alegre...
Os Estabelecimentos Prisionais são casas onde habitam pessoas: como nós; iguais a toda a gente; que foram crianças que brincaram felizes na sua infância; que tiveram um colo e riram e choraram ao lado de pessoas que amaram; foram crianças que sonharam outra coisa para o seu futuro.
No nosso País, o número de pessoas envolvidas em processos de execução de penas ou a cumprir medidas privativas de liberdade, ultrapassa as catorze mil! São pessoas como todas as outras, mais fragilizadas e sofredoras, que têm atrás de si um mundo de outras pessoas igualmente – ou mais – sofredoras também. Para nós, os Cristãos, são gente que nos revela a face de Cristo Sofredor; Ele, preso em cada preso! (cf. Mat. 25, 36).
A Igreja, fiel a esse programa evangélico, tem fomentado, desde os primeiros tempos, uma pastoral de presença, acompanhamento, ajuda, dedicação às Pessoas privadas de liberdade e às suas Famílias. Isto também tem acontecido em Portugal, onde esta presença sempre foi visível, entendida e promovida, com diversos modos de estar e de atuar, com diversos estilos de ação pastoral, sempre com os apoios das Dioceses, Ordens Religiosas, Capelães, Paróquias, Colaboradores, Voluntários, num esforço sincero e de indiscutível valor, para estar perto dos Reclusos e anunciar-lhes, com palavras e gestos, o Evangelho da Salvação e da Libertação (cf. Luc. 4, 21).
A Mensagem de João Paulo II, por ocasião da “Jornada do Jubileu dos Cárceres”, de 24 de Junho do ano 2000, constitui um “marco para um Plano de Pastoral Penitenciária”, e referência indispensável para elaborar um verdadeiro Plano de ação pastoral nas Prisões. A mensagem de João Paulo II referida, aponta para tre?s grandes sectores a ter em conta: prevenção, prisa?o e reinserção; e, em cada um destes sectores, convida a desenvolver as áreas: religiosa, social e juri?dica, cada uma delas com grandes linhas de ac?a?o, fortemente mobilizadoras de vontades. O Decreto-Lei n.º 252/2009 de 23 de Setembro, refere que a “privação da liberdade em estabelecimento prisional não impede o exercício da liberdade religiosa, nomeadamente do direito à asssitência religiosa e à prática dos actos de culto”. Dois aspectos – assistência religiosa e actos de culto – que não podem ser esquecidos.
I - Prevenção
A Igreja, com o anúncio do Evangelho, abre o coração para Deus e para o próximo e desperta as consciências. Com a força do seu anúncio, defende os verdadeiros direitos humanos e compromete-se com a justiça. O homem é, assim, o primeiro e fundamental caminho da Igreja (cfr. RH 14; ChL 36). Por isso, observava João Paulo II: "descobrir e ajudar a descobrir a dignidade inviolável de cada pessoa humana constitui uma tarefa essencial, diria mesmo, em certo sentido, a tarefa central e unificadora do serviço que a Igreja, e nela os fiéis leigos, é chamada a prestar à família dos homens" (ChL 37).
Em Jesus Cristo este amor de Deus pelos pobres ganha toda a sua densidade em dois momentos singulares: o "empobrecimento" de Jesus Cristo que, sendo Deus, se despojou da sua dignidade divina e se fez homem (cfr. Fl 2, 5-8); o "enriquecimento" dos pobres, que são dignificados na Segunda Pessoa da Trindade, conforme o relato de Mateus. Aí Jesus não diz: cada vez que fizestes [ou deixastes de fazer] isto a um dos meus irmãos mais pequeninos foi como se o tivésseis feito a Mim. Diz, sim: "foi a Mim que o fizestes" [ou deixastes de fazer] (cfr. Mt 25, 40.50). Teremos que ter a ousadia de ser capazes de "fazer de cada homem um próximo, e de cada próximo um irmão".
Prevenir o crime não é armadilhar avenidas e ruas, prédios e bairros com vigilância de vinte e quatro horas. A verdadeira e eficaz prevenção tem de ser feita na cabeça e no coração de cada pessoa. As Instituições de Solidariedade Social, Centros Sociais, Comunidades Religiosas, Centro Cívicos... Todas estas verdadeiras forças sociais terão de ser chamadas e maximamente apoiadas para uma intervenção de real trabalho de prevenção; pois, com os seus saberes e com o seu coração, muito se pode e deve fazer neste campo. Quanto à prevenção, temos todos muito a fazer. Nas nossas catequeses, com os nossos jovens, o estilo de vida, pô-los a pensar sobre as prisões. Nas paróquias, e não só naquelas onde há reclusos. De onde saem os reclusos? Das nossas famílias, das nossas comunidades, e para lá voltam.
A família vista, como o "porto seguro", ou seja, como garante de estabilidade no presente e para o futuro deve ter condições para educar e assumir as suas responsabilidades na transmissão de valores. É de suma importância uma boa ac?a?o educativa na família, na escola, na paróquia, atrave?s da catequese, das aulas do EMRC, iluminados pela fe?, com o intuito de instruir e guiar os jovens nas suas escolhas e prevenir comportamentos desviantes, ajudando-os a ter um juízo crítico sobre as opções que fazem para as suas vidas. A educação que os adolescentes e os jovens estão a receber na escola, na família, mas também nos media, está a esquecer os valores que afinal reputamos essenciais e que a ciência nos afirma como indissociáveis do ato de educar. Isto significa que há um desencontro entre a oferta e a procura no sistema educativo - entre aquilo de que o "mercado" precisa em formação dos seus cidadãos para a realização pessoal e para o desenvolvimento social e humano, e aquilo que a escola, a família e os media estão a investir nos processos de educação, formais e não formais.[1]
II – Na prisão
A nossa missão é sempre criar esperanças nos reclusos e também de exercer alguma influência discreta e serena no sistema, para que o tempo de reclusão seja um tempo de reflexão, um tempo de reabilitação da própria pessoa tendo em vista a sua reintegração social. Percebemos que uma grande parte das pessoas que passam pelas nossas prisões é composta por pobres, que provêem já de situações sociais complicadas.
Se é verdade que a Igreja tem estado atenta e presente nas Prisões, ao longo de toda a sua História, também é verdade que ela tem melhorado o seu modo de estar, para que sua presença se torne, sempre mais, um sinal visível do “amor preferencial pelos pobres”. Quem tem acompanhado os esforços realizados nos últimos anos, quer no plano internacional, quer mesmo entre nós, em Portugal, percebe que muito se tem andado e que muito caminho há ainda e sempre a percorrer, para se implementar uma verdadeira e eficaz Pastoral Penitenciária. Sentimos a urgência de que, em todas as Dioceses, se institua uma Comissão ou Secretariado Diocesano da Pastoral Penitenciária, naturalmente dependente do Departamento da Pastoral Social; que cada Paróquia ou conjunto de Paróquias possa ter um Serviço que reflita estas problemáticas e tente as melhores respostas; que em todos os Estabelecimentos Prisionais, grandes e pequenos, haja Grupos de Voluntários Católicos e/ou Colaboradores ligados ao Capelão, para que sejam uma voz forte e clara da presença da Igreja servidora, junto dos que sofrem.
Esta Pastoral é a ação da Igreja que pretende levar aos Homens e Mulheres, privados de liberdade, a Paz e a serenidade de Cristo Ressuscitado, oferecer a quem errou um caminho de reabilitação e de reinserção positiva e eficaz na Sociedade, e fazer todo o possível para prevenir a delinquência; dar a mão amiga aos Familiares e favorecer a aproximação da vítima com o agressor, em sentido de justiça e de perdão evangélico, como também está previsto na nossa Legislação.
Os Reclusos e as Prisões têm a ver com toda a Sociedade, que não pode ficar indiferente ou apenas a observar onde as coisas podem ir parar; muito menos numa posição de crítica destrutiva ou de permanente condenação daquilo que se faz ou não se faz. Não podemos contentar-nos em saber, das Prisões e dos Presos, apenas aquilo que a Comunicação Social divulga, a quando de um problema mais ou menos exótico, que aconteça com a População Prisional ou relacionado com o Sistema Penitenciário.
Durante o tempo de reclusão tem de haver um acompanhamento e uma solicitude da parte da Igreja e uma colaboração com o sistema prisional, com as direções das prisões, com os guardas, para juntos procurarmos o bem da pessoa humana e da sua dignidade e dos seus direitos, ajudá-la a não se sentirem sós e na marginalidade. Em ligação com o Estado, a Igreja terá que reforçar o seu papel, quer na assistência espiritual, quer na visita voluntária aos presos, de forma a assegurar que estes façam uma caminhada de recomposição interior e de reconciliação com a sociedade. Quanto mais o sentido da espiritualidade for desenvolvido na pessoa, mais ela se sentirá tranquila, pacificada, e uma pessoa pacificada só pode criar paz à sua volta. A Igreja deverá desenvolver o seu trabalho pastoral, juntos dos reclusos, dentro dos estabelecimentos prisionais para ajudar a apaziguar os reclusos e o ambiente na prisão, mas também para os recuperar em relação ao exterior. A presença da Igreja ajuda os reclusos a valorizarem a vida e o tempo, a recomporem-se interiormente, a refletirem na sua família, nas pessoas que prejudicaram e na sociedade, de modo a voltarem para o exterior capazes de lutar por um futuro melhor.
III - Reinserção
Além da prevenção e do trabalho no interior das prisões, existe a preocupação e o trabalho de reinserção social, para tentar combater a reincidência no crime que ainda é muito elevada. A questão do voluntariado em meio prisional é outro ponto muito importante, uma vez que assume na Pastoral da Igreja Católica uma dimensão extraordinariamente importante. Os três grandes campos de actuação dos capelães, dos colaboradores e do voluntariado são a intervenção religiosa, com ações formativas e de catequese, a jurídica, procurando a humanização do tratamento dos reclusos, e a social, através do contacto com a família, com os advogados, mas também da ajuda ao nível de coisas do dia-a-dia como a roupa ou o correio.
Há muitos reclusos que deixam a Prisão, sem projetos de vida ou garantias de reinserção. Ninguém sabe como toda esta corrida vai acabar, e as soluções propostas nem sempre vão direitas ao “assunto”; há quem se fique pelos bons princípios, nas boas reflexões, nas estatísticas, nas contas que somam e...seguem. E isto, enquanto alguns vão ficando pelo caminho, e cada vez mais distantes de parâmetros da mais justa e elementar dignidade. Não há nenhuma fórmula mágica que seja resposta definitiva: “A cada hora o mundo é o que fazemos dele. A história o que fizermos dela. E os valores. E os encontros. Impossível aceitar como Édipo que tudo está feito só porque descobrimos a fórmula que permite que tudo se faça”.[2] No entanto, esperar que a administração públicaa encontre sozinha a soluc?a?o e invista no setor, na?o e? a melhor alternativa. O Estado na?o podera? resolver esse problema que e? de toda a sociedade, sem a efetiva participação de todos. Se o Estado não pode deve criar mecanismos que promovam este trabalho a realizar por pessoas, instituições e, particularmente, pela Igreja. Deve a sociedade ao menos na?o olhar ex-presidia?rio pelo quadrante preconceituoso, etiquetado pelo seu passado, devendo inclusive, oferecer oportunidade para manter reinserido na sociedade, onde esse individuo tambe?m e? parte, oferecendo trabalho lícito, contribuindo assim, para uma verdadeira ressocialização e tudo isto é trabalho quotidiano duma pastoral ordinária nas comunidades.
A ação da Igreja deve, por isso, passar também pela reintegração dos reclusos. É fundamental termos a consciência de que um recluso não se insere na sociedade só pelo facto de vir bem preparado da cadeia. Pode até sair da prisão com um curso superior, mas se cá fora não houver uma mentalidade de acolhimento ele fica ainda pior, no desespero. Devia haver muito mais investimentos. Investimentos em pessoal e a nível financeiro, para que essas pessoas tenham uma primeira resposta que seja um abrigo, alojamento, alimentação, alguém que de repente e imediatamente os agarrasse no sentido de os ajudar, acolhendo-os para que possam ir fazendo a sua reinserção numa sociedade que lhes pertence. É necessário como diz Antonio Muñoz Molina defender uma cidadania consciente e uma revisão urgente do sistema em que vivemos. É preciso abrandar e adquirir a escala das coisas pequenas. Se não o fizermos, as próximas décadas estão condenadas. A nossa capacidade de fazer é muito superior à que acreditamos ser capazes. Falta-nos consciência da força que podemos ter enquanto cidadãos e cristãos e temos de aprender a mudar de paradigma. Uma das formas que temos para alterar alguma coisa é aprender a usar o que já existe para criar espaços e locais que acolham sem o estigma que marca para a vida e que, muitas vezes pela insensibilidade cristã, empurra, novamente, para as prisões. [3] Se o tempo da prisão deve ser aproveitado para favorecer talentos, a reintegração, num verdadeiro combate à exclusão social, acredito que importa abrir portas para o sucesso. A título de exemplo, sublinho o que poderá ser efectuado atreavés da arte[4]. Braga avançará brevemente com o projecto Alavanca. Muitos reclusos são autênticos artistas na pintura, na cerâmica, na cestaria, música e em outros ofícios. Basta um pouco de ajuda para que projectos inovadores aconteçam ou abrindo portas de empresas para que o talento garanta condições de vida para o futuro.
A comunidade cristã deverá assumir também um papel central na reinserção dos reclusos na sociedade. Se a comunidade cristã, enquanto tal, não se envolver de forma participativa e corresponsável nesta missão jamais se passará do patamar das "ações pontuais" para o testemunho de uma Igreja realmente comprometida com Jesus Cristo e, por isso mesmo, "perita em humanidade" (SRS 41), capaz de tornar visível o Evangelho e de construir na caridade o mundo novo da justiça e da santidade que é o Reino de Deus.
Termino com palavras do Pe. António Vieira, no Sermão da Terceira Quarta-Feira da Quaresma, pregado no ano de 1669, subordinou a este conceito - Quod debuimus facere, fecimus: “quem fez o que devia, devia o (13) que fez, “e ninguém espere paga de pagar o que deve. Se servi, se pelejei, se trabalhei, se venci, fiz o que devia ao rei, fiz o que devia à Pátria, fiz o que me devia a mim mesmo: e quem se desempenhou de tamanhas dívidas, não há-de esperar outra paga.
Fátima, 2 de maio de 2014.
† Jorge Ortiga, A. P.
[1] Entrevista no ioline a Lourenço Xavier de Carvalho sobre o estudo apresentado: http://www.ionline.pt/artigos/portugal/lourenco-xavier-carvalho-continuar-assim-corremos-perigo-formar-ladroes-competentes
[2]Silvina RODRIGUES LOPES (Alguns apontamentos sobre o ensaísmo de Eduardo Lourenço, in Maria Manuel BAPTISTA (coord.), Cartografia imaginária de Eduardo Lourenço – dos Críticos, Ver o Verso, Maia 2004, 37-42)
[3] Ana SOROMENHO, que (entrevista) Antonio MUÑOZ MOLINA, Temos de aprender a usar o que já existe, in Expresso. Revista, 21. 12. 2013, 86-92, escritor andaluz e professor de escrita criativa na NYU, e onde,entre 2004 e 2005, foi diretor do Instituto Cervantes.
[4] Isabel Nery, Políticos solidários, Visão n.º 1082, de 28 de Novembro a 4 de Dezembro, p. 48-49
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