Arquidiocese de Braga -
4 janeiro 2018
Os Pontos que Fazem Ver
Testemunho do seminarista cego José Tiago Varanda, no âmbito do Dia Mundial do Braille.
A vida, na multiplicidade das suas manifestações, é bela de ser contemplada! Por ser tão complexa e multiforme, a vida não se deixa contemplar apenas por um caminho; não há uma via única para admirar as maravilhas que, dentro e fora de nós, nos transportam para a verdadeira Vida. No entanto, numa cultura fortemente mediatizada, em que as imagens inundam o quotidiano de cada pessoa, pode pensar-se que a visão é o melhor meio de contemplação da vida que nos envolve. Mas seria bom tomarmos consciência de que a visão sensorial, aquela que nos vem dos olhos, não é a única visão que se pode ter da vida. Ver implica também outros recursos sensoriais, para além de uma espécie de um sexto sentido que nos faz ver a vida em profundidade.
É, pois, de um recurso sensorial que gostaria de falar, um recurso que nos vem do tacto: o Braille, escrita própria das pessoas cegas. Procurarei apresentar uma pequena resenha da origem histórica deste sistema de leitura e escrita, para depois expor um pouco da sua importância para a vida de quem é cego.
Em 1809, em Coupvray, uma pequena localidade próxima de Paris, nascia Louis Braille, a pessoa que viria a inventar o sistema de leitura e escrita para cegos que hoje designamos precisamente pelo seu nome. Aos três anos de idade, brincando na oficina de seu pai, ter-se-á ferido num dos olhos com uma das ferramentas. A infecção provocada pelo ferimento alastrou também para o outro olho, deixando-o totalmente cego.
Manifestando uma brilhante inteligência e uma singular habilidade manual, frequentou, desde os dez anos de idade, o Institut Royal des Jeunes Aveugles de Paris, fundado por Valentin Haüy nos finais do século XVIII. O sistema de leitura para cegos, a partir da gravação em alto relevo de letras impressas, que tinha sido criado pelo fundador daquele instituto, levantava grandes dificuldades, pois a necessidade de os dedos contornarem o desenho de cada letra tornava a leitura muito lenta. Em 1821, Louis Braille tomou conhecimento de um outro sistema de comunicação através de pontos em relevo com correspondências fonéticas, inventado por Charles Barbier, capitão no exército francês, para que os soldados pudessem comunicar através de mensagens codificadas mesmo sem luz e sem terem que falar. Dada a maior facilidade de leitura que o sistema através de pontos possibilitava, Braille dedicou-se então a simplificá-lo, pois ainda era algo complexo.
Surgiu assim, por volta de 1825, o sistema de leitura e de escrita para cegos que viria a impor-se, por ser mais simples e prático. De facto, os caracteres inventados por Braille revelaram-se mais acessíveis, pois possibilitavam que os dedos os captassem imediatamente, sem a necessidade de se contornarem os desenhos das letras. Isto possibilitou às pessoas cegas uma leitura mais fluida e agradável. Além disso, revelou-se um sistema de fácil aprendizagem, uma vez que se representam todos os sinais de escrita com pouco mais de 60 símbolos. O método deste sistema baseia-se numa célula constituída a partir de uma matriz de duas colunas e três linhas, pela qual se fazem as diversas combinações de pontos em relevo correspondentes a cada caracter.
Não obstante algumas resistências, nas primeiras décadas, à implementação do sistema Braille, este foi-se difundindo para outros países. Em Portugal, as primeiras impressões em Braille surgiram nos finais do século XIX. Hoje, o Braille é mundialmente conhecido, sendo um sistema de comunicação transversal a diferentes registos simbólicos de escrita de diferentes culturas. Por outro lado, ao nível da musicografia, por exemplo, todos os símbolos musicais em Braille estão convencionados internacionalmente. Tudo isto possibilita que os cegos, em todo o mundo, possam ter acesso a muito material bibliográfico a que, noutros tempos, não lhes era possível aceder, superando, inclusive, as barreiras da própria língua ou região.
Neste tempo em que a tecnologia tem um papel preponderante especialmente na vida das sociedades ocidentais, o uso e a produção de obras em Braille vai decrescendo significativamente. De facto, a maior facilidade de acesso a obras literárias em formato digital tem levado muitos a ler predominantemente a partir de sintetizadores de voz instalados em dispositivos tecnológicos. Hoje é possível instalar num telemóvel, num computador ou num tablet softwares que permitem a audição dos textos digitais por parte das pessoas cegas. Por isso, as novas tecnologias vieram dar passos muito significativos no acesso das pessoas cegas à informação, colocando-as, neste campo, praticamente em igualdade de circunstâncias com qualquer outro cidadão. Por outro lado, a produção de obras em Braille também não é fácil: é um trabalho que exige muitos e dispendiosos recursos materiais, prolongando-se no tempo mais do que a imprensa tipográfica. Isto dificulta não só a celeridade da disponibilização das obras, como também a permanente actualização dos acervos bibliográficos disponíveis ao público.
No entanto, se as difíceis condições de produção de obras em Braille e as atraentes vantagens das novas tecnologias poderiam fazer pensar que o fim do Braille estaria iminente, temos de reconhecer que, pelo menos no que respeita à leitura em Braille, há aspectos concretos que são insubstituíveis. Em termos mais pragmáticos, para uma pessoa cega, a leitura em Braille é a melhor forma de ela tomar conhecimento da estrutura de um texto escrito e da ortografia das palavras. Sem o Braille, a sua comunicação escrita poderia tornar-se muito deficitária.
Além disso, qual é a leitura em áudio que proporciona uma interiorização das palavras silenciosamente saboreadas? Para quem é cego, só o Braille pode proporcionar uma leitura sem ruído, num silêncio exterior que facilita uma interioridade meditativa capaz de acolher com profundidade cada palavra lida. Muito menos mecânica do que a leitura em áudio, a leitura em Braille, espontânea, faz-se ao ritmo pessoal de cada um, sem pressas e com as pausas que forem necessárias, proporcionando um gozo contemplativo que favorece uma sublime criatividade imaginativa a partir daquilo que se lê. A cadência dos próprios dedos, que vão atravessando as linhas pontilhadas de cada página, vai dando ao leitor cego a sensação de consistência do que se lê, pela materialidade do livro que se toca; a criatividade imaginativa já não é mera fantasia, mas percebe-se-lhe a substância pela materialidade simbólica das letras que se tocam.
O Braille é, pois, uma das melhores janelas que os cegos têm para ver o mundo; uma janela que lhes abre amplos horizontes de vida, que os integra na cultura, que os faz, especialmente, saborear a alegria da contemplação própria de quem, pela leitura, faz seu o mundo que lhe trazem as letras palpáveis de um texto em pontinhos.
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