Arquidiocese de Braga -
6 abril 2019
Nova Ágora: “Não há arame farpado que detenha o desespero humano"
DACS | Fotografias: Ana Marques Pinheiro
Terceira e última conferência do ciclo de 2019 da Nova Ágora colocou em debate a delicada e importante questão das migrações.
A Nova Ágora regressou na passada Sexta-Feira ao Espaço Vita, em Braga, para encerrar o ciclo de conferências de 2019 com o tema das migrações.
O público pôde contar com os "Olhares" de António Vitorino, director-geral da Organização Internacional para as Migrações, Pedro Calado, alto-comissário para as migrações, e José Luís Carneiro, secretário de Estado das Comunidades Portuguesas. A moderação ficou a cargo de Ana Paula Marques, professora da Universidade do Minho.
D. Jorge Ortiga: “Nenhum país resolverá o problema sozinho”
Foi com uma retrospectiva sobre a Nova Ágora que o Arcebispo Primaz abriu a noite no Espaço Vita, relembrando a abertura a "espaços culturais diferentes" sem nunca esquecer "a mensagem cristã", mas passando rapidamente ao tema em questão, as migrações.
Para D. Jorge Ortiga, este é um tema a que "ninguém pode ficar indiferente" e, referindo a adopção do Pacto Global para a Migração Segura, Ordenada e Regular, lembrou que "a migração faz parte da experiência humana ao longa da história" e também que ela é "uma fonte de prosperidade, inovação e desenvolvimento sustentável no mundo moderno e globalizado".
O prelado sublinhou depois os números das migrações, contando mais de 68 milhões de pessoas "em movimento por todo o mundo", com uma maioria dos vários milhares de mortes a acontecer na travessia do Mediterrâneo em direcção à Europa.
“O Papa, perante este fenómeno, desafia as comunidades cristãs a conjugarem, com ousadia e criatividade, quatro verbos que poderão servir também de reflexão: acolher, proteger, promover e integrar. Cada um destes verbos encerra um programa a dizer-nos que não basta fazer de conta que o problema não existe ou que a sua solução pertence a outros. Diz respeito a todos e a cada um”, afirmou.
O Arcebispo disse ainda que "não podemos deixar de chorar com todos aqueles que sofrem e vivem esta situação", principalmente por ser uma realidade "tão incoerente com a dignidade de todos os povos".
“Só uma verdadeira acção concertada dos governos da Europa – naquilo que diz respeito à Europa –, capaz de responder à crise migratória, poderá defender com humanismo os migrantes dos traficantes ou da morte no Mediterrâneo e criará, como algo imprescindível e prioritário, as condições para que possam permanecer nos seus países de origem, terminando com os conflitos bélicos. Acrescento ainda que nenhum país resolverá o problema sozinho. Só uma solução intercontinental para as migrações, onde a solidariedade entre os estados se torna efectiva e duradoura, resolverá este terrível problema que envergonha os países desenvolvidos”, declarou.
António Vitorino: “As percepções não andam de mão dada com a realidade”
O director-geral da Organização Internacional para as Migrações começou por explicar com mais detalhe a conjuntura migratória actual e enumerou as causas tradicionais – “a pobreza, a doença, a fuga dos conflitos” – às quais se acrescentam “motivos de mobilidade ligados aos desequilíbrios demográficos que existem à escala global, a muitos países do grande norte que estão em declínio populacional e a uma taxa de crescimento da população e de nascimentos em várias zonas do sul, mas sobretudo no continente africano, que bate todas as previsões que tinham sido feitas anteriormente.”
“Mas além dos desequilíbrios demográficos, contam cada vez mais, como motivos da mobilidade das pessoas as doenças, as epidemias e as alterações climáticas, traduzam-se elas na lenta degradação do ambiente e das condições de vida em muitas zonas do globo, sejam elas devido a acidentes naturais ou a desastres provocados pelo homem”, acrescentou.
António Vitorino alertou, depois, para percepções erradas que existem no assunto das migrações, principalmente a ideia de que "o grande movimento das pessoas é do sul para o norte". "Existe uma percepção daquilo a que muitos chamam uma "invasão", e essa "invasão" teria o sentido do sul para o norte. Ora bem, a realidade dos números mostra que as migrações sul-sul, isto é, as migrações que se verificam entre países em vias de desenvolvimento no sul global superam em número as migrações sul-norte", disse.
"Mas mais do que isso, mesmo se olharmos para o continente africano, que normalmente é a origem dos fluxos migratórios que se dirigem à Europa, a verdade é que 80% dos africanos que migram fazem-no dentro do continente africano e apenas 20% se dirigem a outras paragens".
Apontando o caminho a seguir, o antigo ministro da Defesa defendeu que "a construção de barreiras, de muros, de vedações de arame farpado não resolvem a questão da vontade das migrações, porque o Mediterrâneo é um exemplo acabado." Isto porque o número de pessoas que tentam atravessar o Mediterrâneo da Líbia para a Europa diminuiu cerca de 80% no último ano "e, contudo, a realidade mostra que o número de mortes em relação ao número de tentativas de travessia aumentou".
Pedro Calado: “Todos nós somos migrantes”
O alto-comissário para as migrações fez dos números as suas palavras e apresentou ao público presente no Espaço Vita as estatísticas que mostram os benefícios que a imigração traz a Portugal, nomeadamente através dos seus efeitos demográficos e económicos.
Antes disso, porém, Pedro Calado apresentou aquela que pensa ser uma das principais razões porque o tema é, em Portugal, politicamente e socialmente consensual e que, de acordo com o Eurobarómetro, faz do nosso país o único da União Europeia em que a imigração não é a principal preocupação dos cidadãos: a memória da "nossa experiência de sermos os outros".
Para tal evocou a erupção do vulcão dos Capelinhos, em 1957, na ilha do Faial, nos Açores, os bairros de lata dos portugueses em Campigny, nos arredores de Paris, nos anos sessenta, e o fenómeno dos retornados após a Revolução dos Cravos. "Se nós perdermos esta memória", disse, "creio que estaremos a perder tudo aquilo que nos trouxe até aqui neste domínio das migrações, nesta visão que continuamos a ter, humanista e positiva, das migrações, mas é um risco que vivemos".
Pedro Calado mostrou então, através de números compilados pelo Observatório das Migrações, o real impacto da imigração no país. As conclusões a tirar são simples: a imigração tem ajudado Portugal a combater o seu défice demográfico, tanto a curto prazo - através do número de entradas de pessoas no país - como a longo prazo - pelo facto da população imigrante estar em idade activa e fértil; e a imigração não rouba empregos nem "suga" subsídios, assumindo os empregos mais desqualificados, aumentando a criação de postos de trabalho e não afectando negativamente a sustentabilidade do sistema de segurança social.
O alto-comissário voltou a falar do vulcão dos Capelinhos para demonstrar a resolução do Senado dos EUA que, em 2008, comemorou o 50º aniversário da chegada dos dez mil portugueses dos Açores ao estado do Massachusetts e que agradece em nome dos Estados Unidos da América, "o contributo inegável que esta comunidade, hoje em dia muito maior, teve naquela zona".
"É nisso que eu acredito. Acredito que, antes de mais, todos nós somos migrantes, a única diferença foi o momento em que chegamos - uns já chegaram há mais tempo, outros estão agora a chegar - e, segundo, acredito que o tempo trata de garantir a plena integração e garantir, efectivamente, que a dada altura já somos todos unos, somos todos um só", disse.
José Luís Carneiro: “Sem condições de desenvolvimento, as causas das partidas manter-se-ão”
O secretário de Estado das Comunidades Portuguesas começou a sua intervenção defendendo a necessidade de "articular a políticas das migrações com as políticas do desenvolvimento", de acordo com os Objectivos de Desenvolvimento Sustentável até 2030, definidos pelas Nações Unidas.
José Luís Carneiro lembrou o alerta global deixado por Boutros Boutros-Ghali, secretário-geral das Nações Unidas, em 1992, numa carta em que "interpelou as sociedades no sentido de se perceber que, sem existirem verdadeiras condições de desenvolvimento nas terras de origem, as causas da partida manter-se-ão".
O responsável falou depois da numerosa diáspora portuguesa - cerca de 5,7 milhões de pessoas - afirmando que esta tem merecido, em Portugal, "um lugar de primeira prioridade" por parte do Presidente da República, do primeiro-ministro e do ministro dos Negócios Estrangeiros.
"Muitos dos imigrates em Portugal fazem aquilo que os portugueses fazem no estrangeiro, são empreendedores e forças dinâmicas de transformação das condições de vida dos países de acolhimento", afirmou, referindo que o contributo dos portugueses nos vários países que os acolhem, "nomeadamente ao nível dos sectores da distribuição", está por medir, mas que ele é "importantíssimo".
José Luís Carneiro terminou a sua intervenção remetendo o público de novo para os emigrantes portugueses em França e a imagem dos bairros de lata de Campigny. Afirmando que, entre 1955 e 1975, mais de 700 mil portugueses partiram em direcção à França, o secretário de Estado lembrou que os poderes locais foram "decisivos" para a sua integração, contando posteriormente com a ajuda de legislação nacional promovida por François Mitterrand.
"Isto dá-nos noção da importância de uma sociedade que os soube acolher, que os soube integrar, e que permitiu que muitos daqueles que viveram naquelas condições degradantes se tornassem homens e mulheres exemplares, hoje enaltecidos pelas autoridades francesas e homenageados pela sua capacidade para empreender e para colocarem a sua sensibilidade e a sua inteligência ao serviço da sociedade francesa", sublinhou.
Para o secretário de Estado, este "exemplo que os portugueses nos deram no passado" é em tudo semelhante aos exemplos dados por "todos os outros os cidadãos que aqui acolhemos diariamente, nas nossas comunidades locais".
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