Arquidiocese de Braga -
22 dezembro 2020
Um Natal com tempo
Discurso na Festa de Natal do Clero
A pandemia está a proporcionar muitas lições. Importa que as saibamos aproveitar. Dizemos que nada ficará igual. Permitamos que deixe marcas positivas, capazes de inculcar novos hábitos ou de confirmar atitudes e opções.
Com as restrições que nos são impostas, verificamos que dispomos de mais tempo na nossa vida. Outrora era frequente referir que as interpelações pastorais nos sufocavam. As agendas impunham-nos um ritmo acelerado numa azáfama permanente. A vida não era reflectida. Era um suceder de actividades que geravam muito cansaço. Hoje, pelo contrário, em muitos momentos cansamo-nos por não ter que fazer.
Nesta situação, reconhecendo que temos mais tempo, permiti que diga: é urgente tempo para ter tempo.
– Ter tempo para reestruturar a nossa vida para com Deus. Não somos meros tarefeiros. Somos consagrados e a vida espiritual tem as suas exigências. Não basta serem celebrados os mistérios para os outros. Necessitamos de uma relação vital com Deus, com momentos de oração pessoal, serenidade para a liturgia das horas, espaço para devoções pessoais, nomeadamente o rosário e a reconciliação. Deus na nossa vida precisa de tempo. Não é facultativo. Estrutura e condiciona a vida pessoal e o ministério.
– Ter tempo para um ministério de evangelização serena e alegre onde se reconhece que se vive para o povo que nos foi confiado, pensando na qualidade do que lhe oferecemos como ovelhas a alimentar, cuidar e acompanhar. A evangelização necessita de preparação, de modo a evitar a rotina e adquirir capacidade para entusiasmar o povo para uma efectiva corresponsabilidade. O mundo, para quem vivemos, solicita muita criatividade para que a fidelidade se torne atractiva e convincente.
– Ter tempo para crescer na comunhão com todo o povo a quem servimos. Não pregamos o amor, vivemos o amor com todos. Construir comunidade é a tarefa principal do ministério e, por isso, importa dedicar tempo a amarmo-nos reciprocamente através de uma comunhão espiritual e material. Somos comunidade onde tudo deve circular e onde os bens materiais que usamos são expressão de uma economia de comunhão transparente, responsável, que nunca pode ser descurada ou interpretada superficialmente. Cuidar das coisas pequenas garante que somos fiéis nas grandes.
– Ter tempo para cuidar de nós como pessoas que necessitam de equilíbrio psíquico, algo que alcança com hábitos de descanso regular e cuidado atento à alimentação. A saúde é um bem precioso que solicita atenção. O trabalho pastoral depende de um grande equilíbrio, necessário para uma doação espontânea e incondicional. A vida regrada dá qualidade ao ministério e garante verdadeira realização pessoal.
– Ter tempo para reflectir, pensar, estudar significa responsabilidade na condução do povo de Deus. Outrora bastava a repetição de actividades, uma comunicação monocórdica da doutrina. Hoje as exigências são muitas e os desafios interpelam quem quer viver conscientemente. A formação não está terminada. Precisamos de um estudo com os outros, nos diversos momentos que a pastoral oferece, mas ninguém nos substitui de um trabalho intelectual que terá de ser quotidiano.
– Ter tempo para cuidar da harmonia da vida pessoal e comunitária. Deus salva o mundo através da beleza que tem muitas exigências concretas no modo de viver e de cuidar da comunidade. Não é residual esta preocupação com o estético e o belo. Não precisamos de riquezas para mostrar a sublimidade de Deus. Bastam coisas pequenas mas com o cuidado de uma permanente atenção e confronto com aquilo que é essencial. Pequenos cuidados com aquilo que vestimos e usamos na vida pessoal e nos dinamismos da vida pastoral mostram o valor da mensagem que trazemos em nós.
– Ter tempo par criar redes de intercâmbio e de partilha de vida, de ideias. No amor tudo deve circular. Enriquecemo-nos recebendo e contribuindo para o bem total do corpo eclesial quando não reservamos o que em nós acontece. Amar é comunicar, aproveitando todos os meios que a modernidade nos oferece. Não somos ilhas e não caminhamos por estradas paralelas. Tudo se entrecruza e teremos de nos interessar por tudo quanto serve para colocar o Evangelho no coração da sociedade hodierna. Os meios digitais são o novo areópago para a Igreja.
A pandemia oferece-nos mais tempo. Não pode ser algo circunstancial. Será graça se formos capazes de aproveitar para reestruturar o nosso tempo dando-lhe organicidade e mostrando a importância que tantas coisas devem ter. Importa organizar-se para estar bem e servir melhor. Saibamos extrair esta lição, revendo o nosso tempo e as prioridades que pautam a nossa vida.
Resumindo, que a pandemia nos dê tempo para ter tempo para Deus, para o ministério, para a comunhão, para o estudo, para a saúde, para cuidar da harmonia, para a comunicação. São sete expressões, quais cores do arco-íris que nos mostram a única luz de um amor incondicional a Deus e ao próximo. Que o Natal nos dê tempo para estar com o amor de Deus. Ele fará com que a caridade, a viver intensamente pela comunidade eclesial, se manifeste no cuidado a ter com realidades que nunca podem ser desconsideradas mas que, muitas vezes, poderão estar a ser esquecidas.
† Jorge Ortiga
Arcebispo Primaz
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Discurso no Encontro de Natal do Clero
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