Arquidiocese de Braga -
26 maio 2021
Cardeal belga diz que a Igreja do futuro será mais humilde
DACS
O cardeal belga Jozef De Kezel está convencido de que ainda há um futuro brilhante para o cristianismo, mesmo em culturas seculares como a Europa.
O arcebispo de Malines-Brussel, que fará 74 anos no próximo mês de Junho, explica as razões dessa convicção num livro recém-lançado chamado “Foi & Religion dans une Société Moderne” (Fé 2 Religião numa Sociedade Moderna).
O cardeal De Kesel acaba de voltar ao trabalho após passar vários meses em tratamentos para o cancro. Falou com Christophe Henning, da La Croix, na residência do arcebispo, na cidade de Mechelen (Malines).
Deixou o cargo por alguns meses quando descobriu que tinha cancro. Como está a sua saúde? Fiz três cirurgias, em Agosto e Dezembro de 2020 e novamente há algumas semanas. Hoje estou em recuperação. Sempre tive confiança, mas é desafiante, e ainda hoje a quimioterapia me causa uma fadiga permanente. Coincidentemente, o meu cancro foi descoberto ao mesmo tempo que a epidemia de Covid-19. Nunca tinha pensado em cancro e a nossa sociedade moderna também não imaginou tal pandemia. (…) Todos fomos confrontados com a nossa fragilidade... Isso vai impressionar-me sempre.
A sua fé foi posta à prova?
Todos os dias, recito a Liturgia das Horas. Gradualmente, descobri que as palavras dos Salmos eram as minhas próprias palavras. O meu lamento, a minha angústia, a minha gratidão... Não foi uma decisão, não disse: “Vou investir em mim através da oração”. Isso foi-me dado. Com a doença, o Senhor convidou-me a fazer um desvio. Não se sai de uma provação como esta da mesma forma que entrou. É a história do Povo de Deus: ao sair do Egipto, havia um caminho mais curto para a Terra Santa, mas o Senhor fez um desvio para deixá-los descobrir algumas coisas muito importantes para o futuro.
A pandemia também tem consequências para a Igreja?
Talvez também precisemos de fazer um desvio. Por exemplo, os cristãos têm lutado com a ideia de não se poderem reunir para celebrar durante a pandemia. Entendo isso, e a Eucaristia é obviamente muito importante. Mas não existem outras maneiras? Ouvir a palavra de Deus, que é um verdadeiro alimento, por exemplo.
O catolicismo ocidental vive uma crise profunda. A Igreja está ameaçada, está de saída?
Estou absolutamente convencido de que não é esse o caso. Estamos em crise, mas a provação também pode ser um momento de kairós. Na Igreja, como na sociedade, permanece no nosso inconsciente colectivo a ideia de que o cristianismo só pode ser ele mesmo quando a sociedade é cristã. Isso não é verdade. Algumas pessoas pensam que a secularização é o inimigo número um, a causa de todas as nossas dificuldades; isso não é verdade. Não é a Igreja que está em declínio, é a sociedade que mudou. Diria mesmo que a modernidade é outra cultura. Isto não é isento de riscos: tal como as religiões, a secularização pode desviar-se, radicalizar-se. O secularismo, quando se torna laicismo, é uma espécie de substituição da religião, pois impõe uma mentalidade única.
A fé não foi devolvida à esfera íntima e pessoal?
Oponho-me totalmente à privatização da fé: temos algo a dizer nesta cultura, como cristãos e cidadãos responsáveis. Fiz uma viagem ao Iraque, a Erbil, e o Patriarca Louis Sako explicou-me: “Precisamos de um regime secular aqui, não religioso. Num regime religioso, somos cidadãos de segunda ou terceira classe…”. E ainda disse: "Que parem de nos tratar como uma minoria, nós somos iraquianos, cidadãos e somos cristãos. A cidadania vem antes da religião”. Eu acrescentaria que é por causa da minha fé que sou, e tento ser, um cidadão responsável.
O que é que os cristãos podem acrescentar ao mundo?
Em primeiro lugar, anunciar o Evangelho, isto é, estarem presentes no mundo e anunciarem a Palavra de Deus. Esta é a razão de ser da Igreja. A cristianização é outra coisa; é o projecto de uma sociedade que se torna cristã novamente. Isso não é possível e não é desejável, absolutamente. Numa sociedade secularizada, nenhuma religião tem o monopólio, e há apenas uma solução, que é a tolerância.
Mas como é que podemos proclamar o Evangelho numa sociedade pluralista e secularizada?
A Igreja só pode significar para o mundo exterior o que vive no interior. Devemos ter comunidades autênticas que vivam pela palavra de Deus, que celebrem a liturgia e que trabalhem por um mundo mais humano e justo. O cristão que diz viver o Evangelho sozinho está enganado: precisamos do outro. Caso contrário, como é que nos podemos tornar irmãos e irmãs?
Como é que podemos lidar com estruturas eclesiais cansadas e debilitadas?
Como será a Igreja daqui a um século? Não sei. Não sabemos o que vai permanecer, nem o que vai nascer! Precisamos da instituição, mas provavelmente não de todas as instituições que temos hoje, nem talvez de outras que ainda não existem. A Igreja será mais modesta e humilde, mas não será em minoria, nem na França e nem na Bélgica, de qualquer maneira. Quando metade das crianças ainda estão a ser baptizadas, não é uma minoria: sociologicamente, isso não faz sentido.
A intervenção numa sociedade laica às vezes não leva a que a Igreja seja um sinal de contradição?
Os valores centrais da cultura secularizada são a razão, a liberdade e o progresso. Há abusos quando a liberdade se torna absoluta e passa a ser a ideologia que tudo domina. Nos debates éticos, por exemplo, a eutanásia ou o aborto são ampliados, porque supostamente são um progresso. E todos fazem o que querem. Juntamente com outras pessoas, os bispos e católicos sempre alertaram a sociedade, mas o “progresso” banaliza essas questões. É permitir o aborto até à 18ª semana um progresso? O aborto é um acto médico comum? O aborto é sempre um fracasso e não é por a lei permiti-lo que não haverá sofrimento.
Neste mundo descristianizado, como reconhecemos os cristãos?
Às vezes não os reconhecemos... Existem diferentes graus de pertença à Igreja. Claro, há sempre um grupo central que vem regularmente à missa e mantém a Igreja viva. Mas reduzir a fé a esta definição nunca foi a posição da Igreja. Algumas pessoas vêm de vez em quando, para o Natal ou a Páscoa, para uma celebração familiar... Devemos respeitá-las e não dizer: “Vemo-nos na próxima semana?”. Corremos o risco de fazer proselitismo quando o anúncio do Evangelho se faz sem respeito pelo outro, com a única preocupação de recrutar, o que já aconteceu por vezes com certas comunidades novas. É a amizade que evangeliza. O encontro tem sentido em si mesmo: não é uma táctica missionária. Gostaria que as pessoas que entrassem em contacto com a Igreja fossem acolhidas, respeitadas e ouvidas, sem julgamento. Não esqueçamos que existe o que eu posso fazer e o que Deus faz: posso testemunhar, conhecer e ser o que sou. Mas não posso dar fé a outro. O Senhor faz isso. O Espírito Santo está em acção e não depende da expansão da Igreja.
Pequena e humilde, a Igreja também é universal. Como cardeal, como vê a Igreja de Roma?
O que não consigo entender é que às vezes haja uma oposição muito dura ao Papa. Não vamos voltar atrás. Hoje, ele convida-nos à sinodalidade, isto é, a viver em fraternidade. É um processo de discernimento – o Papa é realmente um jesuíta! – debatermos juntos, tirar tempo, discernir. E descobrir o que o Senhor nos pede.
Entrevista de Christophe Henning, publicada no La Croix International a 25 de Maio de 2021.
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