Arquidiocese de Braga -

8 junho 2021

Enoc, a mulher que cuida dos filhos do mundo: "Poder? Não, apenas uma missão"

Fotografia DR

DACS com Corriere della Sera

"O Dom e o Discernimento" é o livro escrito pelo teólogo Occhetta e por Mariella Enoc, presidente do Bambino Gesù. Um diálogo "entre um Jesuíta e uma gestora", a partir do qual emergem os problemas éticos inerentes à gestão do grande hospital pediátrico l

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“Porque sofrem as crianças?”, perguntou uma enfermeira ao Papa. “Não tenho resposta. Nem mesmo Jesus respondeu com palavras, mas mostrou-nos a via para dar sentido também a esta experiência humana”. Francesco Occhetta, teólogo, jesuíta e professor da Universidade Gregoriana, relembra este episódio – ocorrido durante uma audiência em 2016 concedida pelo Papa aos funcionários do Bambino Gesù – na sua longa conversa com Mariella Enoc, a combativa presidente do hospital pediátrico do Vaticano. “Uma leoa”, assim a definiu Francisco. O Pontífice não exagera, até porque já teve provas do seu carácter.

“O Dom e o Discernimento” é o título do livro de Occhetta e Enoc. Mariella Enoc fala sobre a sua vida como administradora e como católica praticante. Dois papéis que não estão em contradição. “Na minha experiência, vi pessoalmente como a fé sem obras é algo morto e como as obras sem fé são estéreis”. Mesmo um pequeno gesto pode ser terapêutico.

No encontro com a dor e o sofrimento dos outros, em particular das crianças, mas também dos seus pais e familiares, está o “olhar profundo” de uma missão vivida como “antídoto para qualquer deriva desumana e utilitarista”. Não é só uma profissão exercida com aquela severidade e rigor na gestão que, infelizmente, muitas vezes faltou aos serviços de saúde católicos, que Enoc enumera, a par de muitas qualidades, limites e defeitos. A providência divina, infelizmente, não restaura os balanços. E ela viu-se, em vários e dramáticos momentos da sua vida como gestora de saúde, a reparar as consequências.

Sem discernimento, mesmo um esplêndido “dom partilhado” como certamente é o hospital Bambino Gesù, excelência mundial no cuidado pediátrico, mas também um dos centros de investigação mais avançados, especialmente em doenças raras, corre o risco de desvanecer. Isso não acontece graças ao trabalho de médicos e pessoal de saúde. Há quem o defina como o “hospital dos filhos do mundo”.

Tantos. Curados também graças às doações. Alcançados em toda a parte. Como Waafa, uma menina síria que teve 70% do seu corpo queimado e “cujas amigas não olhavam mais para ela porque era feia”. Levada para Itália, passou por diversas intervenções. Mas agora “maquilha-se, olha-se ao espelho”. Tem doze anos. Como Ervina e Prefina, as gémeas siamesas da África Central unidas pela cabeça e separadas através de uma difícil cirurgia que durou 18 horas. O primeiro caso no mundo. Um dia, o Papa sinalizou um caso a Enoc com estas palavras: “leia, chore, decida”. Ela não chorou, decidiu. Após a abertura do Jubileu de 2015 em Bangui, Francisco pediu-lhe que construísse um hospital pediátrico na República Centro-Africana. Ela viajou, decidiu-se e fez ainda mais. As doações que o Papa tinha recebido, administradas com profissionalismo, produziram mais do que o bem previsto. “Começou a cortar o salame em fatias – disse-lhe o Papa um dia a respeito do seu trabalho não desprovido de contestações internas também no Vaticano –, vá até ao fim”.

Enoc é um exemplo daquele laicado católico que ela própria considera um pouco subestimado pelas hierarquias. E menciona um episódio. Quando interveio durante uma palestra, muito aplaudida, no primeiro congresso dos catequistas, também recebeu advertências de cima, temendo que quisesse liderar um novo movimento. “Também me cortaram das fotografias”, conta. Importante na formação da presidente do Bambino Gesù foi Anna Maria Canopi, freira de clausura em Orta, na região de Novara, a primeira mulher a escrever as meditações para a Via Sacra com João Paulo II.

“As mulheres representam uma voz antiga e sempre nova e o novo sempre causa medo. Uma atitude defensiva que impede o Vaticano de colocar as mulheres em cargos de responsabilidade. Isto também é válido para os leigos. Quando surgem problemas, a Igreja da instituição defende-se e premeia aqueles que são obedientes, acriticamente, à hierarquia, mas entre os leigos não faltam aqueles que o fazem por interesse pessoal”, diz Enoc. E o poder? O que é para Mariella Enoc? “Para mim é o exercício do serviço. É apenas uma missão”. Aquela que solicita a todo o pessoal sanitário uma nova aliança terapêutica entre o médico e o paciente. Paciente, não cliente. Juntamente com uma grande atenção à inovação e à pesquisa. “A ciência é uma das formas mais elevadas de amor, é uma forma de crescer na procura de Deus, como ensinava Santo Inácio”.

 

Artigo de Ferruccio de Bortoli, publicado no Corriere Della Sera.