Arquidiocese de Braga -

24 junho 2021

Homilia na Solenidade de São João Baptista 2021

Fotografia

Homilia proferida por D. Nuno Almeida, Bispo Auxiliar de Braga, no Adro de São João, por ocasião da Solenidade de São João Baptista em 2021.

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1. O espanto do nascimento milagroso poisou sobre a vizinhança de Isabel e Zacarias (cf. Lc 1, 57-66.80). A escolha surpreendente do nome (Yohannan, João) revelou que o pai, Zacarias, olhava o filho como precioso dom de Deus. 

A opção de vida de João acordou muitos corações, preparou o caminho do Messias e apontou-o como Cordeiro de Deus (Jo 1, 29). A fidelidade à verdade afirmou-o perante fariseus (Mt 3, 7-11) e Herodes (Lc 3, 1-20). E diante dos que desejavam elevá-lo salientou a sua condição humilde de voz, deixando o centro e o palco à Palavra de Deus (Lc 3, 15-18; Mc 1, 7-8). Deste despojamento nos dá testemunho Paulo na leitura dos Atos dos Apóstolos que escutámos (cf. At 13, 22-26).

De João Batista disse Jesus que não era uma cana agitada, nem um príncipe famoso, mas um profeta maior que todos os outros e, até, o maior entre os nascidos de mulher (Lc 724-28)!

A importância reconhecida a João Batista revela-se, por exemplo, no facto de, ao contrário dos demais santos, celebrarmos o dia do seu nascimento e o da sua morte, ou do seu martírio pela verdade e pela justiça.

Como não havemos, pois, de nos deter perante S. João Batista e perante a sua fidelidade corajosa, o seu desprendimento e até a frugalidade da sua vida? 

2. É muito significativa a passagem de Isaías que escutámos na Primeira Leitura (Is 49, 1-6) ao colocar na boca do servo de YHWH: “Eu dizia a mim mesmo: ’Cansei-me inutilmente, em vão e por nada gastei as minhas forças’ ” (Is 49, 4). 

O servo de YHWH devia restabelecer a justiça, abrir ‘os olhos aos cegos’, ‘libertar os prisioneiros’, não devia desanimar. Porém, a dureza e desumanidade do exílio em Babilónia faz crescer, no profeta de ter trabalhado em vão, de ter desperdiçado as próprias forças ‘inutilmente’, de ter vivido um grande ‘vazio’. 

O canto do servo, porém, não termina no desencorajamento, pois são luminosas as palavras de YHWH: “Farei de ti a luz das nações, para que a minha salvação chegue até aos confins da terra”.  (Is 49, 6). 

Os profetas continuam o seu canto apesar do fracasso, pois conseguem compreender que o que parecia derrota era o dom da maior liberdade. Não era o xeque-mate da existência, mas era o início da verdadeira incarnação das palavras que tinham anunciado: “Cantai, ó céus! Exulta de alegria, ó terra! Prorrompei em exclamações, ó montes!” (Is 49, 13).

3. O mais recente livro do Papa Francisco, tem o sugestivo título: Sonhemos Juntos. O caminho para um futuro melhor [Papa Francisco (À conversa com Austen Ivereigh), Sonhemos Juntos. O caminho para um futuro melhor, Lisboa, Planeta, 2020]. Nesta obra, o Papa recorda-nos que a pandemia veio acelerar e dar visibilidade a tantas mudanças que já estavam em ato. Partilha connosco o seu pensamento iluminador da hora atual e desafia-nos, neste tempo tão especial a ver, a escolhe e agir. 

3.1. Um tempo para ver

Um estudo recente da Universidade Católica confirma aquilo que, no dia a dia, já podíamos constatar: a pandemia agravou as desigualdades. Em Portugal, atirou 400 mil portugueses para baixo do limiar da pobreza. Além disso, a pandemia não impediu a concentração de riqueza nas mãos de elites cada vez mais restritas. 

Num contexto de crescente desigualdade, também Banco Mundial estima que o número de pobres no mundo aumente sem precedentes, atingindo um número de 115 milhões de novos pobres forçados a viver com menos de 1,90 dólares por dia. 

Mas as desigualdades estão a crescer em várias frentes. A pandemia tornou-se o catalisador de muitas dinâmicas regressivas, agravando as diferenças existentes e revelando a persistência e visibilidade das desigualdades. Isto aplica-se a certas categorias já expostas, como os idosos, os trabalhadores pobres, precários e as minorias étnicas; mas ainda mais para outras categorias, como os sem-abrigo, os presos e os portadores de deficiência que, em alguns dos países mais afetados pela epidemia e menos preparados para lidar com ela, foram excluídos dos cuidados intensivos, ou os filhos de famílias com menos recursos culturais e disponibilidade que tiveram grandes dificuldades em acompanhar as atividades educativas à distância.

As diferenças de género também aumentaram entre as dinâmicas regressivas, para a distinta desvantagem das mulheres. Alarmantes são, também, os números relativos à violência doméstica que quase duplicam em todo o mundo. Das 13.931 vítimas de crime apoiadas pela APAV (Associação Portuguesa de Apoio à Vítima) em 2020, 75, 4% referem-se a crimes de violência doméstica (cf. Relatório da APAV 2020). 

Estes longos meses de pandemia mostraram-nos que as desigualdades de classe, étnicas e profissionais, longe de se nivelarem, se aprofundaram de facto. Um denominador comum cruza estes desafios transversalmente: uma grande perplexidade e incerteza. Há desorientação, solidão e há uma procura e sede de sentido.  

Precisamos de pessoas que saibam dar uma mão, isto é, ajudar a olhar para cima e para quem está ao lado. É preciso dar esperança, nutrir o enredo da sociedade civil de uma espessura de que é pobre, e que é essencial: a dimensão vertical da existência.  E tudo isto para que todos ousemos sair da concha e colocar-nos ao serviço do bem comum.

4.2. Um tempo para escolher

Se há uma lição que aprendemos neste tempo de crise é a de que somos interdependentes e que os relacionamentos ou laços humanos são o bem mais precioso e decisivo que temos. 

São incisivas as palavras de Chiara Lubich, quando afirma que é preciso “ser o Amor para encontrar o fio de ouro que liga todos os seres”. O mesmo será dizer: o cuidado do outro, da natureza e das coisas, antes de ser um dever, uma atividade, um programa político, é um modo de ser que nos dá um coração novo e olhos novos, uma maneira diferente de ver a realidade. É decisiva uma renovada visão do ser humano: do eu individualista e tendencialmente fratricida ao eu inclusivo e hospitaleiro; de um modo de viver concentrados em si mesmos ao abrir o coração e a mente ao outro; do eu monótono e altissonante a um eu sinfónico.

É por tudo isto que o Papa Francisco fala abundantemente sua encíclica Fratelli tutti de "amizade social", que é base do tipo de amor que nos empurra para além de todas as fronteiras: interpessoais, sociais, raciais, ideológicas, políticas e religiosas. 

É hora de todos nos questionarmos: O que nos humaniza e o que nos desumaniza? E como crentes sobre o que nos filializa e o que nos torna deuses de nós mesmos? O que nos fraterniza e o que nos enrosca em nós mesmos e só nos nossos interesses?

4.3. Um tempo para agir

A crise que vivemos ensina-nos que é necessário fazer permanentemente “desinfeção” do egoísmo e de todas as formas de exclusão.

Combater as desigualdades e promover a cultura do bem comum é o nosso primeiro dever como cidadãos e como crentes. Para além das ações institucionais - importantes, necessárias e tão meritórias das Instituições de Solidariedade, dos Serviços Públicos e Privados – neste tempo de pandemia redescobrimos a importância das pequenas ações, que cada um, cada família, cada pequeno grupo de um movimento, a associação do nosso bairro, a nossa paróquia … podem realizar! 

Tornar o ser humano mais humano, ou seja, mais filho e mais irmão: foi a missão de João Batista e é a missão dos profetas de todos os tempos. Jesus Cristo ofereceu a Sua vida para fazer de nós filhos amados e verdadeiramente irmãos. Esta dimensão profética faz parte da missão das igrejas, faz parte da pastoral das dioceses, das paróquias, dos movimentos. Obriga a nossa Arquidiocese a estabelecer prioridades, procurando ser igreja “sinodal e samaritana”: que “vê”, “cuida” e “acompanha” samaritanamente quem precisa. Trata-se de concretizar a opção preferencial pelos excluídos (cf. Mt 25, 40) típica da Doutrina Social da Igreja, procurando sempre reconhecer os diferentes rostos da exclusão.

A pandemia acelerou uma mudança de época que já estava em andamento. Como será possível, no meio da incerteza, semear esperança e alegria? Antes de mais, não ceder à lógica do mundo egoísta e violento que matou João Batista, mas cuidar do humano. Não mundanos, mas mais, muito mais humanos! Tudo isto nos ensina João Batista, desafiando-nos a crescer, a fomentar, a promover, juntos e por todos os meios, a “humanitude”! 

5. Precisamos da alegria da festa! Mas não tem hoje, no século XXI, grande importância distinguir entre sagrado e profano, pagão e cristão. Importa sim estarmos vigilantes, especialmente em tempo de incerteza, para que as festas populares não nos tornem mundanos e desumanos. Em tempo de pandemia, urge que as festas nos filializem (sentirmo-nos de verdade filhos muito amados de Deus), nos fraternizem (olhamos para quem está ao nosso lado e para todos com um olhar verdadeiramente fraterno) e nos humanizem, ou seja, nos melhorem e movam a cuidar, com respeito e amor, uns dos outros, a começar pelos excluídos.

Que São João Baptista, padroeiro destas festas concelhias, nos dê força e coragem para que a Arquidiocese de Braga continue, real e intimamente, solidária com o bom povo desta região com a sua história multisecular que teremos de respeitar e esperar que todos a respeitem.

 “Senhor, que enviaste S. João Batista a preparar o vosso povo para a vinda do Messias, concedei à vossa família o dom da alegria espiritual e guiai o coração dos fiéis no caminho da salvação e da paz”. 

+Nuno Almeida, Bispo Auxiliar de Braga