Arquidiocese de Braga -

7 setembro 2021

Pode a Igreja Católica sobreviver num país secularizado como a França?

Fotografia Solène Artaud

DACS com La Croix International

À medida que os bispos de França começam as suas visitas "ad limina" a Roma esta semana, o “La Croix” falou com o principal prelado do país e com um importante historiador para fazer um levantamento dos desafios e do futuro da Igreja.

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Os bispos católicos da França começaram a chegar a Roma esta semana para iniciarem as visitas ad limina que decorrem uma vez a cada cinco anos com autoridades do Vaticano.

Durante a permanência na Cidade Eterna, também terão a oportunidade de se encontrar com o Papa Francisco.

Os bispos franceses irão apresentar pesados ​​arquivos que narram um declínio na prática da fé, uma falta de vocações sacerdotais, o fracasso da Igreja em vencer debates sobre Bioética e, claro, a crise dos abusos sexuais, que se cristalizará no início de Outubro em torno do relatório da Comissão Independente sobre Abuso Sexual na Igreja (CIASE).

Com a Igreja em tal estado, alguém se pergunta se o catolicismo ainda tem futuro na França? Arnaud Bevilacqua e Christophe Henning, do “La Croix”, sentaram-se com o Arcebispo Eric de Moulins-Beaufort, Presidente da Conferência Episcopal Francesa (CEF), e o historiador Guillaume Cuchet para analisarem os pontos fortes e fracos da Igreja na França e delinearem os desenvolvimentos futuros.

 

“O catolicismo ainda tem futuro na França?”, pergunta Guillaume Cuchet no seu novo livro. Arcebispo, como vê isso enquanto presidente da CEF?

Arcebispo Eric de Moulins-Beaufort: Durante muito tempo, os católicos franceses viram-se a si mesmos como a maioria, como a totalidade, embora ser cristão signifique ser escolhido e chamado, um a um. A influência, a luz a ser transportada e a acção que deve ser realizada não são proporcionais ao número. A lógica do povo de Israel é a do “pequeno remanescente”, que foi testado, refinado e permanece verdadeiro em nome de todos os outros. O nosso desafio é viver como o Remanescente de Deus ao mesmo tempo que herdamos um património considerável inscrito na nossa paisagem e na nossa cultura.

Guillaume Cuchet: O catolicismo francês está a passar por uma mudança espectacular de formato, que não é a primeira na sua história e que ainda não acabou, mas que coloca toda uma série de novos problemas, ad intra (na sua autoimagem) e ad extra (nas suas relações com a sociedade).

 

O Papa expressou recentemente a sua preocupação com o declínio na participação da missa dominical, dizendo que a Covid19 o acelerou. Qual é a situação na França?

Guillaume Cuchet: Actualmente, apenas 2% dos franceses vão à missa todos os Domingos. Na década de 1950, a taxa média era de 25%, com variação de 0 a 100 no campo, sem equivalente em outras partes do mundo. A prática da fé, aliás, já não tem exactamente o mesmo significado cultural ou social. A Igreja já não tem meios para cobrir todo o território. A unidade básica do sistema já não é a cidade, mas sim a sede de concelho, ou até o distrito: praticar a fé tornou-se complicado para muitos. E a Covid-19 não ajudou em nada.

Arcebispo Eric de Moulins-Beaufort: É um pouco cedo para medir os efeitos da pandemia. Vários fiéis idosos que têm dificuldade em ouvir ou ver descobriram que participam melhor na missa através da televisão. Outros, de todas as idades, descobriram como a missa lhes é essencial. Poderíamos ter fornecido meios mais concretos para uma prática activa em casa, mesmo em frente a um ecrã. Quanto ao declínio da prática religiosa, é claro que nem todos podem viajar igualmente, todos os Domingos, pelos quilómetros necessários.

 

É difícil haver cem ordenações a cada ano. Estamos a caminhar para uma Igreja sem padres?

Arcebispo Eric de Moulins-Beaufort: Devemos dar graças pelas poucas vocações sacerdotais, cada uma é um milagre. São o dom que Deus nos dá para que possamos seguir em frente. No Cristianismo há flexibilidade suficiente para podermos viver numa organização diferente e num papel renovado dos sacerdotes em relação ao que conhecemos. Deus está a levar-nos a viver dimensões da vida da Igreja às quais ainda tentamos resistir.

Guilherme Cuchet: Não devemos esquecer que, no início da década de 1960, três quartos dos padres franceses vinham de seminários menores, ou seja, a sua vocação havia sido inicialmente discernida na infância através de um diálogo tripartido entre eles, a mãe e o pároco, o que hoje parece bastante estranho!

D. Eric de Moulins-Beaufort: Descobri padres dos seminários menores quando cheguei a Reim. Isso deu-lhes uma vida muito bonita, diferente das vocações de hoje. Estamos a sair de um mundo onde ser sacerdote era uma possibilidade entre outras – e não a mais desvalorizada – enquanto que hoje um jovem só pensa em entrar no seminário depois de ter recebido uma graça muito forte de Deus.

 

Dada a diminuição de meios, onde é que a Igreja ainda pode estar presente?

Arcebispo Eric de Moulins-Beaufort: Em primeiro lugar, não vamos abandonar os lugares onde ainda estamos presentes. Em segundo lugar, porque não podemos estar presentes em todos os lugares, o tempo todo, devemos estar presentes em todos os lugares pelo menos durante algum tempo. Além disso, a Igreja não está presente apenas através de padres e instituições, mas também através das pessoas. Como podemos acompanhar e apoiar aqueles que, onde quer que estejam, procuram viver a partir de e em Cristo? Os leigos que são formados, nutridos e apoiados são capazes de compromissos e acções de fé em nome da sua fé.

Guillaume Cuchet: Para a Igreja ainda existem lugares de contacto massivo com a sociedade. Por exemplo, a educação católica, através da qual 40% das crianças passam, incluindo as que saem e voltam. Ou os funerais religiosos, que ainda envolvem 70% dos mortos, porque a morte é a última coisa que deixamos de lado nesta área, e porque as pessoas que morrem hoje muitas vezes ainda receberam uma educação religiosa. Tendo sido baptizados e enterrados em Igreja, “fecham o ciclo”. Mas o que irá acontecer depois deles?

Arcebispo Eric de Moulins-Beaufort: Embora as pessoas se habituem a ter um leigo a presidir às orações fúnebres, os padres ainda precisam ser confrontados com a dor das pessoas e acompanhá-las. Isso faz parte do nosso ministério. Nós, sacerdotes, não podemos ficar separados do sofrimento e da dor dos outros. Servimos o Crucificado que é a Ressurreição e a Vida.

Guillaume Cuchet: Como historiador, posso ver que o acompanhamento durante o luto é uma oportunidade para restabelecer contacto. Se há uma área onde o Cristianismo deveria ter algo a dizer aos contemporâneos, é a morte. Mas as condições de mortalidade mudaram muito. A sua negação, que é uma espécie de reflexo natural do espírito humano, é reforçada. As gerações são eliminadas umas após as outras, quase mecanicamente após os 60 anos, o que é uma novidade.

 

A Igreja também está exposta na sociedade, mesmo desacreditada: ainda tem voz credível em praça pública?

D. Eric de Moulins-Beaufort: Há quem diga que os bispos não falam o suficiente. No entanto, na França, as questões Bioéticas, por exemplo, ainda estão a ser debatidas, o que não é o caso nos países à nossa volta. Temos que nos impor frente ao que pode parecer um rolo compressor para a sociedade. A história bíblica está cheia de profetas e o destino do profeta é que nem sempre sejam ouvidos. Mas o grito do profeta sustenta aqueles que tentam viver à luz de Cristo.

Guillaume Cuchet: A Igreja está a ser ouvida, mas é escutada? Depende do assunto. Ainda é preciso estar absolutamente certa de que tem algo específico e realmente interessante a dizer sobre todas as pessoas.

Arcebispo Eric de Moulins-Beaufort: Hoje, o nosso desafio é este: numa sociedade que se preocupa em ampliar sempre o campo das possibilidades, temos o papel ingrato de dizer o que é ou não bom. Mas não podemos deixar isso por aí: o coração do Cristianismo não é dizer o que é proibido, mas anunciar a cada pessoa que a sua história pessoal com Deus nunca termina, independentemente do que ela tenha feito.

 

A Comissão Independente sobre Abuso Sexual na Igreja (CIASE) prepara-se para apresentar o seu relatório no início de Outubro. Este é um passo importante na luta contra a pedocriminalidade na Igreja...

D. Eric de Moulins-Beaufort: A crise dos abusos é um choque imenso e uma grande tristeza que nos atingiu profundamente. Vivíamos com a ideia de que, apesar de tudo, éramos boas pessoas. Certamente que havia padres temperamentais, narcisistas, preguiçosos... mas o abuso é indescritível. A Igreja falhou no passado em lidar com isso como deveria, já que falhou, colectivamente, em olhar para a realidade, nomeadamente para a dor sofrida pelas vítimas. Devemos agora ter consciência da fragilidade que é sempre possível e estar atentos ao tipo de relação que o sacerdócio cria entre o sacerdote e os fiéis, um relacionamento que pode facilmente extraviar-se.

 

Depois da crise dos abusos, que imagem é que a Igreja ainda pode ter?

Guillaume Cuchet: O trabalho de dizer a verdade é absolutamente necessário. Em primeiro lugar pelas vítimas, claro, mas também porque essas revelações ocorrem numa sociedade onde muitas pessoas têm apenas um conhecimento externo do clero, ou nenhum conhecimento, de modo que o choque não é equilibrado ou compensado por imagens mais positivas e representativas que resultam de uma longa familiaridade. Em tal contexto, a máscara de ferro que a crise colocou no rosto da Igreja é devastadora.

 

Agora falamos dos “sem”, aquelas pessoas que não se reconhecem em nenhuma religião. A Igreja ainda pode alcançá-las?

Guillaume Cuchet: A ascensão dos “sem” ou “desafiliados” entre os jovens é uma grande mudança. É algo inédito nos anais antropológicos da humanidade. No entanto, a necessidade de sentido, consolo e ritualização, que estava na base da antiga necessidade de religião, não desapareceu, como mostra o interesse dos nossos contemporâneos pela “espiritualidade”, que opõem prontamente à “religião”, como o bem ao mal. O Catolicismo é um dos actores dessa nova cena. Terá que provar o seu valor acrescentado em relação às espiritualidades circundantes. Arcebispo Eric de Moulins-Beaufort: Pessoas sem religião recorrem a todos os tipos de moralidade, incluindo o Epicurismo, o Estoicismo, ou mesmo a Spinoza, que se tornou num “pai” do pensamento contemporâneo. Como é que alguém vive a espiritualidade num mundo moldado pelo culto do lazer, pela publicidade e pelo esmagamento de imagens que visam tornar-nos em consumidores? Este é um dos desafios antropológicos das gerações vindouras: o ser humano é capaz de consciência interior, mas nem a televisão, nem as redes sociais, nem a publicidade podem conduzi-lo até lá.

 

A França é, uma vez mais, um território de missão?

Guillaume Cuchet: Estou impressionado com o facto de que, embora apenas 2% das pessoas neste país praticarem, 50% dos franceses ainda dizem em várias investigações que são católicos e três quartos consideram a França como um país de “cultura cristã”. Há, portanto, reservas importantes do catolicismo, mas estão a diminuir rapidamente. A Igreja já não tem os meios para o antigo serviço público de transcendência. Agora cabe a cada um de nós assumir as nossas responsabilidades. Porque, em última análise, é uma questão da nossa história, e não apenas do clero. O risco é que a Igreja se torne exclusivamente uma pequena elite de uns quantos altamente motivados. Para os sociólogos, a característica das igrejas, ao contrário das seitas, é a de acomodar posições espirituais muito variadas que permitem a todos ter uma história, mesmo que signifique percorrer o caminho da fé se ela ainda não tiver sido encontradad, sem impedir que renasça na próxima geração. Embora este possa não ser o único horizonte do Igreja, o catolicismo faria bem em contribuir para a reintrodução desse sentido de permanência, de tradição, dos vivos e dos mortos, tão ameaçado na nossa sociedade.

 

Artigo de Arnaud Bevilacqua e Christophe Henning, publicado no La Croix International a 6 de Setembro de 2021.