Arquidiocese de Braga -

1 setembro 2022

O desaparecimento de Gorbachev: um visionário humanista

Fotografia DR

DACS com Vatican News

Um retrato do presidente soviético nas páginas do L’Osservatore Romano que também traça os encontros com João Paulo II. “Um político – lê-se – animado por um idealismo humanista que inspirou as suas escolhas”.

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Mikhail Sergeevič Gorbachev – que morreu ontem aos 91 anos – foi o protagonista de absoluta importância nos processos políticos globais numa passagem histórica decisiva, a do fim da Guerra Fria. Segundo o seu biógrafo, William Taubman, foi “um visionário que mudou o seu país e o mundo”. Um visionário romântico.

A opção pelo diálogo e pela persuasão como ferramentas de política caracterizou a sua acção, em sucessos e fracassos. Gorbachev pensava que a perestroika deveria levar a uma nova ordem global baseada na cooperação e na não-violência.

Em Roma, a 30 de Novembro de 1989, durante a sua visita histórica, Gorbachev fez um famoso discurso no Capitólio que constituiu uma declaração oficial sobre o carácter humanista da perestroika, “o nosso «Renascimento»”. Dois elementos do longo e complexo raciocínio destacaram-se entre os outros. A “casa comum europeia” era o horizonte do novo paradigma de segurança europeia, que, a partir da perestroika soviética, deveria ter conduzido à nova ordem mundial. E depois houve o reconhecimento de que os valores morais defendidos pelas religiões apoiavam a causa da renovação da União Soviética.

A surpreendente relação que amadureceu entre o secretário-geral do Partido Comunista da União Soviética e João Paulo II também deve ser colocada no quadro dessas aspirações ideais e políticas. Uma relação não tida como certa, que de facto nos primeiros anos da perestroika lutou para arrancar, devido ao peso de uma história difícil, que abrigava prudência e desconfiança mútua. A política de reforma de Gorbachev e o “novo pensamento” nas relações internacionais, no entanto, abriram uma lacuna de interesse mútuo.

O encontro entre Gorbachev e João Paulo II, no Vaticano, a 1 de Dezembro de 1989, representou um evento inédito, que ocorreu numa Roma permeada por um clima de grande fermento e participação, na intuição de se estar a testemunhar um evento de grande significado. Um Papa e um líder soviético nunca se tinham conhecido.

Esse encontro foi o resultado de uma viagem, da qual uma etapa de grande importância, também pelo impacto que teve em Gorbachev, foi a conversa entre ele e o Cardeal Casaroli, durante a visita a Moscovo de uma importante delegação católica de João Paulo II para participar, em Junho de 1988, nas celebrações do milénio da conversão da Rus’ de Kiev ao cristianismo bizantino.

A longa e cordial conversa foi um diálogo franco. O líder soviético não escondeu o facto de ser um orgulhoso defensor da “escolha socialista” do povo soviético, mas sublinhou a convergência com a Santa Sé, especialmente no que dizia respeito ao novo pensamento da perestroika no campo das relações internacionais. A renovação da política religiosa e o compromisso com a liberdade de consciência e religião constituíram o outro terreno privilegiado de encontro.

Esta foi uma novidade substancial, porque até então os representantes soviéticos tinham-se recusado sistematicamente a abordar questões relativas à condição das comunidades religiosas na União Soviética com os seus interlocutores do Vaticano. Gorbachev sublinhou que, embora as visões do mundo fossem diferentes – não deixou de se declarar ateu –, o objectivo de “humanizar a vida do homem em sociedade” era comum.

A conversa com o cardeal deixou uma forte impressão no líder soviético. Ao seu principal assessor de política externa, que notou o carácter “filosófico” do diálogo entre os dois, Gorbachev instruiu a não enviar a acta da conversa aos membros do Politburo, como era costume, porque “seria incompreensível para eles “.

A conversa com João Paulo II em Roma foi longa e densa. Gorbachev explicou ao Papa o significado da perestroika e concentrou-se no tema da liberdade de consciência. Devia respeitar-se o universo interior dos crentes, especialmente os ortodoxos: “quantos deles de facto foram aniquilados!”. E confirmou o compromisso com a implementação de uma lei sobre liberdade de consciência, que seria aprovada a 1 de Outubro de 1990. O diálogo com a Santa Sé desempenhou um papel decisivo para uma nova declinação do conceito de liberdade de consciência no contexto soviético, já não complementar à luta anti-religiosa, mas cada vez mais associado à liberdade de religião.

Gorbachev foi um homem soviético, formado no universo cultural e ideológico do regime comunista, que chegou a um idealismo humanista que procurou combinar com a herança ideológica do socialismo. Era um político não sem tensões espirituais. Relembrou, em conversas que tive com ele em 2001, uma entrevista que a sua esposa Raissa Maksimovna teve com o Metropolita Ortodoxo Pitirim. O prelado ortodoxo dissera-lhe que em tempos de dificuldade ela deveria rezar, embora Raissa viesse de uma vida de comunista convicta e ateia.

Quando a sua esposa morreu, Gorbachev foi contactado por um telefonema de outro bispo ortodoxo que lhe sugeriu que fizesse um funeral religioso a Raissa. Então, relatou o que aconteceu: “Fiquei calado muito tempo. O Metropolita perguntou-me se eu ainda estava em linha e se me estava a sentir bem. Eu disse-lhe que estava a pensar. Pensei nela, nas crenças dela, lembrei-me da conversa dela com Pitirim e disse que sim. Durante o funeral, encontrei pela primeira vez intuições que eu chamaria de intuições de fé. Sim, esta é a primeira e por enquanto a única vez que as minhas crenças lógicas como humanista foram questionadas pela intuição de outra coisa”.

São palavras que testemunham nada mais do que as profundas questões de uma personalidade histórica, líder soviético, comunista, partidário do socialismo, e também um político animado por um idealismo humanista que inspirou as suas escolhas.

Artigo de Adriano Roccucci, publicado em Vatican News a 31 de Agosto de 2022.