Arquidiocese de Braga -

28 setembro 2022

A Igreja em África e as mulheres vítimas de violência doméstica

Fotografia Guy Aimé Eblotié/LCA

DACS com La Croix International

Tendo em conta a alta taxa de feminicídio e a oposição católica ao divórcio, a Igreja está a fazer o suficiente para proteger as mulheres dos abusos conjugais?

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“Se tivesse ficado, teria morrido”, disse Sylvie (nome fictício), uma católica de 32 anos, mãe de três filhos que deixou o seu marido violento e alcoólico há dois anos.

Como ela, muitas mulheres no vasto continente africano são vítimas de violência doméstica, às vezes com um desfecho fatal.

“O marido de uma mulher que ajudei era extremamente violento”, disse um padre do Burkina Faso.

“Era viciado em álcool e batia-lhe. Acabei por pedir a a essa mulher de fé que deixasse o lar conjugal para a própria sobrevivência e dos filhos”, lembrou.

Foi uma exortação que infelizmente não impediu um resultado fatal.

“Infelizmente, a separação não foi suficiente: um dia, quando ela voltava para o novo apartamento que tinha alugado, ele espancou-a até à morte”, disse o padre.

Em África, muitas paróquias oferecem assistência pastoral às vítimas de violência doméstica, seja com a ajuda de padres, religiosas ou casais.

Esses companheiros de pastoral usam vários métodos, como a mediação, o recurso às leis consuetudinárias e, às vezes, o recurso à justiça civil.

 

“Uma razão legítima para a separação”

Sylvia Apata, advogada da Costa do Marfim especializada em direitos das mulheres, disse que houve 416 feminicídios só na cidade de Abidjan entre 2019 e 2020.

Afirmou que o acompanhamento oferecido pelas paróquias nem sempre vai suficientemente longe.

“O número de feminicídios é assustador e a responsabilidade é de toda a sociedade, incluindo da Igreja, que não incentiva as vítimas a salvarem as suas vidas com o divórcio”, denunciou.

O padre Louis Philippe Amako, padre marfinense doutorado em Teologia Pastoral, contestou essa acusação.

“Às mulheres vítimas de violência conjugal cujas vidas estão ameaçadas, a Igreja aconselha a separação dos corpos”, insistiu.

“A prioridade, neste caso, é a preservação da vida humana ao invés de manter o casamento a todo custo”, explicou.

De facto, isso está até estipulado no Código de Direito Canónico.

“Se um dos cônjuges provocar grave perigo da alma ou do corpo para o outro ou para os filhos, ou de algum modo tornar a vida comum demasiado dura, proporciona ao outro causa legítima de separação”, afirma o cânone 1153.

Essa possibilidade de separação é suficientemente reconhecida pelas pessoas da Igreja que ajudam as vítimas de violência doméstica?

É uma pergunta que Irmã de Santo André Josée Ngalula faz há muito tempo. A primeira mulher africana a ser nomeada para a Comissão Teológica Internacional tem ajudado mulheres em tais situações há mais de duas décadas.

“A dificuldade é saber se os nossos padres e conselheiros matrimoniais em África estão a aproveitar suficientemente essa abertura do Direito da Igreja, que não exige que as vítimas de violência conjugal se deixem espancar, às vezes até à morte”, afirmou.

 

Divórcio, um fracasso da mulher

O Papa Francisco aborda essas situações dramáticas na Amoris laetitia, a sua exortação apostólica de 2016 que se seguiu às duas assembleias (2014 e 2015) que o Sínodo dos Bispos dedicou ao casamento e à família.

“Nalguns casos, a consideração da própria dignidade e do bem dos filhos exige pôr um limite firme às pretensões excessivas do outro, a uma grande injustiça, à violência ou a uma falta de respeito que se tornou crónica. É preciso reconhecer que há casos em que a separação é inevitável”, escreve o Papa.

“Por vezes, pode tornar-se até moralmente necessária, quando se trata de defender o cônjuge mais frágil, ou os filhos pequenos, das feridas mais graves causadas pela prepotência e a violência, pela humilhação e a exploração, pela alienação e a indiferença”, diz (AL, 241).

Com essas palavras, o Papa afirma que a separação pode ser não apenas possível, mas “necessária”.

Apesar desse reconhecimento, o acompanhamento ainda pode ser espinhoso diante desse sujeito “complexo” com situações “multiformes”, segundo a Irmã Ngalula.

“Às vezes, a vítima de violência conjugal decide por conta própria voltar para casa alguns dias ou semanas após a separação”, ressaltou.

Sylvie (nome fictício) tentou explicar esse fenómeno.

“Quando uma pessoa se casa, há um certo reconhecimento social que é difícil de abandonar devido à pressão social sobre as mulheres divorciadas”, disse, acrescentando que acabou por deixar o marido.

Mas disse que resolver sair definitivamente é ainda mais difícil porque “o divórcio é considerado um fracasso, especialmente para as mulheres”.

A irmã Josée Ngalula destacou outra armadilha relacionada com isto.

“A dificuldade com a separação legal para proteger o cônjuge agredido é que tem implicações financeiras. Diante deste obstáculo, alguns ficam sob o mesmo tecto, às vezes arriscando a vida”, disse.

Para as mulheres católicas, há também a questão do acesso aos sacramentos, proibido a quem se divorcia e volta a casar, mesmo que o primeiro marido tenha sido violento.

“Deixei a Igreja Católica para me juntar a uma igreja evangélica quando, dois anos depois de me divorciar do meu marido violento, me casei novamente e percebi que não tinha mais direito à comunhão e confissão”, explicou Charlotte (nome fictício), uma mulher de 38 anos da República Democrática do Congo. Disse que a experiência a deixou a sentir-se excluída.

 

Muitos não estão familiarizados com a Amoris laetitia

“Na Igreja Católica, se uma mulher deixa o marido, está condenada a ficar sozinha pelo resto da vida se quiser continuar a receber os sacramentos”, disse Emy (nome fictício).

“Essa foi uma das coisas que me fez hesitar em divorciar-me e casar novamente”, admitiu a mulher de 40 anos. No entanto, acabou por se divorciar do seu marido violento e casou novamente.

Mas o padre Amako disse que a resposta para todas estas situações não é assim tão clara. Apontou que a Amoris laetitia insiste no facto de que “o próprio Evangelho nos diz para não julgar ou condenar”.

O padre disse que o Papa “pede aos pastores que saibam analisar os casos que surgem para permitir ou não permitir que os indivíduos participem na comunhão”.

“A Amoris laetitia lança alguma luz sobre a conduta a ser seguida pelos agentes pastorais, mas não estou certo de que padres e leigos estejam muito familiarizados com ela”, disse um pároco da Costa do Marfim que quis permanecer anónimo.

O sacerdote afirmou que as conferências episcopais nacionais em África precisam de “levar um pouco mais a sério a questão da violência conjugal e a dos divorciados recasados”, especialmente porque essas pessoas estão “massivamente envolvidas nas paróquias”.

Já é altura de os bispos darem “indicações pastorais mais claras”, disse o padre.

Artigo de Lucie Sarr, publicado no La Croix International a 28 de Setembro de 2022.