Arquidiocese de Braga -

18 julho 2024

A Eucaristia: fonte, centro e ápice da vida cristã

Fotografia XIII Encontro Internacional das Equipas Nossa Senhora

Conferência do Cardeal José Tolentino de Mendonça aos participantes do XIII Encontro Internacional das Equipas Nossa Senhora, em Turim, na Itália

Por que é tão importante a nossa maneira de pensar e viver a Eucaristia? A resposta que podemos dar, mesmo humilde e incompleta, continua a ser aquela que os mártires de Abissínia selaram com o seu próprio sangue no século IV, quando se opuseram às prescrições do imperador Diocleciano explicando que, se não se reunissem para celebrar a Eucaristia, eles simplesmente não poderiam ter existido. “Sine dominico non possumus”. Isto é: sem a celebração do mistério pascal tornada acessível na Ceia do Senhor, é impossível formular a hipótese da sobrevivência e do florescimento da existência cristã.

É precisamente isto que vos recorda o Padre Henri Caffarel, casais, que faz precisamente com que a compreensão do sentido do vosso casamento desça da consciência do impacto que o sacramento da Eucaristia tem nas vossas vidas. Para compreender plenamente o casamento cristão, precisamos partir da Eucaristia, que fornece a sua arquitetura e serve como fonte e modelo eficaz. Estas são as palavras do Padre Caffarel: “Marido e mulher, vós que comeis a carne de Cristo, que bebeis o seu sangue, que viveis na vossa alma e no vosso corpo a vida de Cristo, que permaneceis Nele e Ele em vós, como Vocês não poderiam se amar com um amor diferente do dos outros homens, com um amor ressuscitado? Vocês podem se olhar, compartilhar suas dores e alegrias, se doar de todo o coração, de todo o corpo, ajudando-se ao longo da vida, sem ter a percepção de que estão vivenciando um grande mistério?” O “mistério maior” do matrimônio exige, portanto, ser entendido em continuidade com o mistério eucarístico, porque os esposos vivem na alma e no corpo “da vida de Cristo”, permanecem em Cristo, e Cristo neles. Por esta razão, os casais cristãos são chamados a reconhecer que não podem viver sem a Eucaristia, como sublinhou o Papa Francisco na Exortação Apostólica Amoris Laetitia, onde afirma que “o alimento da Eucaristia é força e estímulo para viver todos os dias a aliança conjugal” (nº 318). Quem poderia enfrentar a jornada sem a força que a alimentação lhe dá? Quem poderia avançar no seu caminho se não tivesse o impulso e o estímulo que constituem o motor da própria marcha? Quando, em maio passado, o Santo Padre recebeu os líderes das Equipes de Notre-Dame, disse palavras muito claras: “Hoje se pensa que o sucesso de um casamento depende apenas da força de vontade das pessoas. Não é assim. Se assim fosse, seria um fardo, um jugo colocado sobre os ombros de duas pobres criaturas. O casamento, por outro lado, é um ‘passo tríplice’, em que a presença de Cristo entre os esposos torna possível o caminho, e o jugo se transforma num jogo de olhares: olhar entre os dois esposos, olhar entre os cônjuges e Cristo”.

Se pensarmos nesta circulação de olhares, compreenderemos como a Eucaristia é uma experiência de amor real e próxima daquilo que vivemos. Assim mergulharemos profundamente neste sacramento que o Concílio Vaticano II afirma ser “fonte e ápice de toda a vida cristã” (LG 11), e o descreve como o lugar onde “contém todo o bem espiritual da Igreja, isto é, o próprio Cristo, a nossa Páscoa, [...] o pão vivo que [...] dá vida” (PO 5). 

Participantes do mistério de Cristo

Na Última Ceia, Jesus antecipa a sua Páscoa iminente, pedindo aos seus discípulos que a leiam e vivam como sacrifício da aliança. A aliança é o próprio Jesus (Lc 22,20; 1Cor 11,24). Nas suas palavras e nos seus gestos há uma intensidade messiânica que transforma a morte anunciada numa verdadeira oferenda, numa fonte de vida, e que sela um apelo inequívoco à comunhão com ele.

Certamente podemos perguntar-nos como é possível partilhar um acontecimento tão radicalmente pessoal, tão ardentemente incomunicável como a morte. “A morte é uma flor que só desabrocha uma vez” – recordem os conhecidos versos de Paul Celan. Mas o que se propõe aos discípulos no mistério da Eucaristia é que estejam dispostos a partilhar essa experiência de amor. E como garante o apóstolo Paulo, “se morremos com Cristo, temos fé que também viveremos com ele” (Rm 6,8). Assim, na doação de si mesmo, o próprio Cristo sempre nos revitaliza, nos recria e nos reconstrói.

Na Eucaristia abre- se-nos a possibilidade de participar misticamente naquilo que Cristo é. Jesus tornou-se homem para que o homem, através da sua morte e ressurreição, pudesse participar daquilo que Cristo é. E isto é percebido mais claramente “na fração do pão”, como testemunham os discípulos de Emaús. A Eucaristia permite-nos finalmente compreender: é a instância hermenêutica por excelência. Emaús nos ensina que nossos olhos estão fechados até chegarmos à “partição do pão”. Esta descoberta do significado soteriológico da figura de Cristo representa, para cada discípulo de Jesus, o ponto de partida e o horizonte de uma existência renovada. A Eucaristia torna-se para nós um lugar para desfrutar da salvação. Aquela transformação decisiva do Ser Humano, a que aspiravam os rituais da antiga aliança, sem poder garanti-la ou realizá-la de uma vez por todas, é agora assegurada pelo sacrifício integral da vida de Cristo, oferecido “uma vez por todas” (Hb 10,10). Jesus ofereceu-se ao Pai, com um ato de amor único, por um destinatário diferente de si mesmo: os seus irmãos. A vida de Jesus torna-se sementeira de existências que aprendem a transcender-se e a considerar-se como dom, como amor interativo feito de gratuidade e oblação. Modelada na existência de Jesus, a vida cristã é assim chamada a aprofundar-se e a ampliar-se. Não permanecemos os mesmos. Em cada Eucaristia somos desafiados a sair de nós mesmos e a procurar o alimento que nos satisfaz em Cristo.

É assim que, fundada em Cristo, seu princípio e fundamento perene, a Igreja não se considera dependente dele apenas esporadicamente ou ligada a ele sociologicamente, como numa relação externa. A Igreja vem de Cristo de forma absolutamente forte, decidida e íntima. A Eucaristia demonstra que é tirada do lado aberto de Cristo (cf. Jo 19,34), tal como o Criador tirou Eva do lado do Adão adormecido; e a sua natureza baseia-se no mistério da pessoa de Jesus Cristo e na sua memória salvífica. Em cada Eucaristia a comunidade proclama: “Por Cristo, com Cristo, em Cristo”. É assim que a Igreja vive: vive pelo e para o seu Senhor. Ela é chamada em todos os momentos a voltar-se para Cristo, a converter- se a Ele de todo o coração. A vida totalmente doada por Jesus torna-se a extraordinária possibilidade de vida para a Igreja e, através dela, para o mundo. E esta afirmação aplica-se tanto à Igreja como um todo, como corpo místico de Cristo, como a cada Igreja doméstica - a Igreja que vós, queridos esposos, representais.

“Tomai e comei todos”

“Tomai e comei todos: este é o meu Corpo oferecido em sacrifício por vós”. Talvez fosse importante meditar sobre o significado antropológico destas palavras. Porque ouvimos muitas vezes, mesmo entre os cristãos, que a Eucaristia é um ritual difícil, demasiado repetitivo, com o qual lutamos para estabelecer uma relação permanente e afetiva. Cultivamos a fome de muitas coisas secundárias e depois deixamos às vezes para trás a fome, a necessidade da Eucaristia. Procuremos, por exemplo, meditar sobre o verbo “comer” e como ele sempre nos acompanhou. Tão antiga, tão necessária, tão presente, tão rica de significado para as nossas vidas. Inauguramos a relação com o mundo com a boca. Foi a primeira forma de comunicação, a primeira forma de inclusão nesta história e também a primeira forma de amor. Vamos pensar no verbo “comer” e no quanto aprendemos sobre o que esse verbo representa ao longo de nossas vidas. Pensamos na quantidade e qualidade das refeições que comemos nas nossas vidas e como, sem elas, a nossa vida não seria o que é, ou simplesmente não seria. Na família sabemos bem disso. Porque existem dimensões fundamentais da vida, da vida biológica, mas também da vida espiritual, da vida como projecto de existência, que de facto nos chegam graças ao verbo “comer”.

Comer não é apenas engolir. Comer é capacidade de incorporar, capacidade de ruminar e metabolizar o mundo, de fazer uma nova síntese, de construir-se. Não se trata apenas de engolir pedaços da realidade externa que passam para o nosso mundo interno, é também um processo de transformação. E para nós, humanos, o verbo “comer” também tem uma característica particular: mesmo quando o fazemos sozinhos, comer é sempre um ato de relacionamento, um ato social, se quisermos. A refeição é uma ação comunitária porque no nosso horizonte pressupõe sempre o outro. Na realidade sentamos à mesa porque nos alimentamos uns dos outros, porque precisamos internalizar a presença um do outro, a sua palavra, o seu rosto, o seu carinho. E esta coreografia silenciosa torna-se para nós um verdadeiro alimento sem o qual não existiríamos.

Quando Jesus disse “a minha carne é verdadeiramente comida e o meu sangue é verdadeiramente bebida” (Jo 6,55), ele sabia bem que com o seu gesto de amor estava prestes a tornar-se alimento de vida para os seus discípulos. Quando afirma “quem come a minha carne e bebe o meu sangue tem a vida eterna e eu o ressuscitarei no último dia”, Jesus lança um desafio. Ele está nos convidando: “Coma a Vida que eu sou. Alimente-se da Vida divina que eu represento, incorpore minha Vida, minha Carne e meu Sangue”.

Formados e gerados pela Eucaristia
 

Reunimo-nos à volta da mesa eucarística para nos alimentarmos de Cristo. É por isso que a Igreja nasce e renasce em torno do altar e os cristãos não podem viver sem a Eucaristia. “Este pão é o que desce do céu. Ele não é como o que os pais comeram e pereceram; quem come este pão viverá eternamente” (Jo 6,58).

Dizer que pão é pão... é uma coisa trivial. Jesus vai além, lembrando que o pão é um dom, um dom de si mesmo, uma entrega de si mesmo, um desejo de que o outro viva. O pão não foi inventado só porque alguém estava com fome e encontrou uma solução temporária para o seu problema, não! O pão foi inventado por alguém que queria que os outros vivessem. O verdadeiro alimento que nutre é indissociável do desejo que o outro vive, do desejo que você é, de poder existir plenamente! E Jesus diz isso não apenas em referência ao pão material, mas referindo-se ao seu próprio Corpo.

Este é o testemunho que Cristo nos dá até ao fim dos tempos. E se ele quis que a sua memória fosse celebrada na repetição da sua Última Ceia e na memória das suas palavras, é para que possamos ter uma medida e um modelo para nos relacionarmos. Em cada Eucaristia reunimo-nos para celebrar o dom sacrificial que Jesus faz de si mesmo, a transformação da vida em alimento, da própria carne em alimento. A questão é se então, à semelhança de Jesus e do que ele fez por nós, a nossa vida também se torna alimento para os outros.

À mesa Jesus nos dá a grande prova de amor, mas também a grande lição. A Eucaristia é uma lição. Uma lição real e persistente. Vamos à Eucaristia para aprender com Jesus como fazê-lo, e todos precisamos amadurecer para fazer dos nossos dias, do nosso ter e do nosso conhecimento um dom que nutre. Porque sabemos que o pão pode endurecer no alforje. Ele pode morrer sem ter cumprido sua missão. Se o pão não for colocado na mesa e servido, perde-se. O pão que não é oferecido imediatamente torna-se rapidamente um desperdício. E até a nossa vida pode ser perdida. Por isso, a palavra do Evangelho é: quem quiser ganhar a vida deve dar-se, deve entregar-se (Cf. Mt 16,25). Não é automático. Podemos viver uma vida inteira sem que nosso corpo sirva de alimento para alguém. Podemos viver no egoísmo, subjugados por aquela ditadura da indiferença de que fala o Papa Francisco, afundados numa zona de conforto que torna a nossa vida impermeável. Ninguém vem ao nosso encontro porque vivemos numa cápsula, protegendo-nos de tudo e de todos. Quando nos comportamos assim, nossa vida não se torna alimento para ninguém. E, finalmente, experimentamos um distanciamento total de Jesus, semelhante ao dos escribas que se perguntavam: “Como pode este homem dar-nos a sua carne a comer?” (Jo 6,52). E nós, sabemos ou não como podemos dar de comer a nossa própria carne?

Todas as vidas caem na imagem diária de partir e dividir o pão. Porque a vida é algo semeado, crescido, amadurecido, colhido, triturado, amassado: é como o pão. Porque não nos limitamos a saborear e consumir o mundo: percebemos dentro de nós que por sua vez o mundo, o tempo, também nos consome, nos desgasta, nos devora. Por boas ou más razões, ninguém permanece inteiro. Somos massa que quebra, miolo que esfarela, espessura que diminui, alimento que se distribui. A questão está em saber com que consciência, com que sentido vivemos este ciclo inevitável. Todos nós nos consumimos, é verdade. Mas em quais negócios nos envolvemos? Todos nós sentimos que a vida está se partindo e se dividindo. Mas como fazer deste facto trágico uma forma de afirmação fecunda e plena da própria vida? Para nós, cristãos, a Eucaristia é o lugar vital para decidir o que fazer da vida. Porque todas as vidas são pão, sim, mas nem todas são “eucaristificadas”, isto é, configuradas em Cristo e assumidas, no seu seguimento, como oferta radical de si mesmo, como dom, dom vivo, como serviço de incondicionalidade. amor. Todas as vidas conhecem um fim, mas nem todas chegam ao fim do nascimento daquela condição crística que carregam dentro de si. No seu encontro com o movimento, o Papa Francisco evocou a história de um casal que conheceu: «Certa vez, numa Audiência Geral, havia um casal, casado há 60 anos, ela tinha 18 anos quando se casou e ele tinha 21. Eles tinham, portanto, 78 e 81 anos. E eu perguntei: “E agora vocês continuam se amando?”. E eles se entreolharam e depois vieram até mim, com lágrimas nos olhos: “Ainda nos amamos!”. São coisas como estas que a Eucaristia nos fala quando nos recorda o pedido de Jesus: “Fazei isto em memória de mim” (1 Cor 11,24).

A Eucaristia é fonte, centro e ápice da nossa vida. Se você pensar bem, um cristão não tem outro programa além deste. Não foi à toa que os primeiros teólogos do cristianismo insistiram: “Os cristãos que vão à Eucaristia tornam-se eucaristizados”. Ou seja, assumem a missão de se tornarem presenças eucarísticas no mundo. Na verdade, podemos dizer que cada um de nós é consequência desta refeição. Somos construídos e gerados pela Eucaristia. Porque é a partir da persistência deste gesto, deste acontecimento, desta memória (que não é só memória do passado, mas é presente e futuro), é a partir da perseverança nesta anamnese de Jesus que somos verdadeiramente gerados e recriados no Espírito de Jesus A nossa vida deve dialogar com a dupla mesa eucarística, feita do Verbo e do Corpo e Sangue do Senhor. Para quem quer ver, nunca deixa de nos abrir um horizonte e um futuro. A mesa da Eucaristia faz-nos ser antecipadamente o que ainda não somos. Faz-nos saborear a plenitude que procuramos. Esta cantina é uma máquina de fazer irmãos. É uma máquina de dissolver desigualdades, uma arte de comunhão onde se superam muros, assimetrias, distâncias. São Paulo escreve aos Coríntios: “Nós, embora muitos, somos um só corpo, visto que todos participamos desse único pão” (1 Cor 10,17).

Assim como não poderíamos compreender nada sobre a mesa se a reduzíssemos a uma realidade física, também não compreenderíamos a profundidade vital da Eucaristia se a considerássemos apenas como uma realidade ritual. Assim como a mesa é a personificação do cuidado fundamental da existência, a Eucaristia também o é. Ambos, cada um à sua maneira, expressam uma resposta positiva às necessidades mais básicas da vida e também àquelas que o nosso coração sedento de amor expressa. Na Eucaristia entendemos que somos amados. O evangelista João explica-o com estas palavras: “Tendo amado os seus que estavam no mundo, amou-os até o fim” (Jo 13, 1). Com efeito, podemos ouvir aqui retumbantes, dirigidos a nós: “Quero que sejas”, “Quero que te sintas ouvido”, “Quero que te encante com os sabores”, “Quero plenitude para ti”. E, como escreve São Paulo, saibais compreender “qual é a largura e o comprimento e a altura e a profundidade, e conhecer o amor de Cristo que excede todo conhecimento” (Ef 3,18-19). Na Eucaristia cada um de nós é chamado a sentir-se muito amado: o Mestre e Senhor lava os nossos pés, e com que cuidado os lava! Ele cura as nossas feridas e com que amor as cura! Com que preocupação e esperança o Bom Samaritano que é Jesus nos põe em caminho! “Ainda hoje, como Bom Samaritano, ele se aproxima de cada homem ferido no corpo e no espírito e derrama sobre as suas feridas o óleo da consolação e o vinho da esperança». Por isso, justamente ouvimos em cada celebração eucarística: «Bem-aventurados os convidados à Ceia do Senhor”.

“Compreendeis o que voz fiz?”

É sabido que o Evangelho de João opta por contar o episódio do lava-pés da Última Ceia. “Jesus, sabendo que o Pai tudo pusera em suas mãos e que ele viera de Deus e a Deus voltava, levanta-se da mesa, depõe o manto e, tomando uma toalha, cinge-se com ela. Depois põe água numa bacia e começa a lavar os pés dos discípulos e a enxugá-los com a toalha com que estava cingido” (Jo 13,3-5). Ele é o Mestre, mas, ao lavar os pés, assume a forma de servo. Jesus dá testemunho de uma religião de serviço, de amor, de disponibilidade para ser o último, de capacidade de dar a vida e da maneira mais concreta, da maneira mais difícil, da maneira que mais nos dói, que é rastejante. no chão lavando os pés uns dos outros, beijando os pés uns dos outros, oferecendo-se para serem os últimos na vida, uns aos outros, capacitando os outros e dando-lhes vida. E a pergunta que faz aos Doze é a mesma que nos faz hoje: “Compreendeis o que vos fiz?” (Jo 13,12).

É uma linguagem grosseira, a da Eucaristia, quando nos ordena comer a carne e beber o sangue de Jesus, mas o pior que nos pode acontecer é aprisionar a Eucaristia numa espécie de ritual mágico que não conhecemos como compreender, sem chaves para interpretar o que está acontecendo diante de nossos olhos. É necessário que nós, cristãos, compreendamos bem a Eucaristia: “Este pão não é só pão, é o meu corpo que ofereço por ti; e este vinho não é só vinho, este vinho é a minha vida que quero dar por ti” . «Você entende o que eu fiz por você?». Jesus quer que entendamos.

E o que significa compreender a Eucaristia? É compreender o que significa uma vida dada. Significa compreender que cada um de nós é chamado a dar a vida, a dizer com os nossos gestos, com a nossa presença, com o nosso compromisso quotidiano de amor: “O que vivo não é apenas uma coisa, uma quantidade de tempo, um facto; Eu digo que não são apenas palavras. Esta é a minha vida, uma vida que dou em imitação de Jesus”. No altar, juntamente com a oferta que Cristo faz de si mesmo, colocamos a nossa oferta e comprometemo-nos a ser alimento uns para os outros.

É maravilhoso que Jesus tenha escolhido a refeição como o grande sacramento da sua presença entre nós, até ao fim dos tempos. Uma mesa aberta onde o pão é oferecido a todos e onde o vinho, que é o seu sangue, é derramado por todos. Será que um cristão que não sai daqui para correr riscos, para transformar, para tentar algo diferente, para tornar o mundo diferente e melhor, terá compreendido a Eucaristia? Poderia uma espiritualidade feita de manutenção e rotina ser considerada verdadeira devoção eucarística? A Eucaristia pede mais de cada um de nós. Pede-nos para sermos... para nos tornarmos o que somos. Ele nos pede para ousar, para acreditar. Antes da Páscoa, Jesus diz algo de grande importância. Ele diz: “Desejei ardentemente comer esta Páscoa convosco” (Lc 22,15). Comida tem a ver com desejo. E qual é o nosso desejo? Ou seja, qual é a nossa fome? O que é que queremos? O que tiramos daqui? A Eucaristia não serve para nos deixar confortáveis numa poltrona: faz-nos usar sandálias de peregrino. A Eucaristia é para mulheres e homens que vão empenhar-se no mundo, inflamados pela caridade de Deus, com a audácia de construir modelos alternativos, levando no coração a expectativa de “novos céus e nova terra, onde habitará a justiça” (2Pd 3,13). Padre Léon- Dufour S.J. recordou a este respeito que a Eucaristia não é uma fuga da realidade, nem um interlúdio para nos fecharmos numa bolha, indiferentes ao sofrimento do mundo. Ele disse com razão: “A massa está essencialmente protestando”. O mistério da Eucaristia é gerador. Isso levanta a realidade. Dota- nos da capacidade de reconfigurar, de refazer, de reinventar, de encher até a borda as jarras vazias com “bom vinho”, como nas bodas de Caná. Falando às Equipes de Notre-Dame em 2003, o Papa São João Paulo II confiou aos participantes este pensamento incisivo: “As diferentes fases da liturgia eucarística convidam os cônjuges a viver a sua vida conjugal e familiar seguindo o exemplo de Cristo, que dê aos homens por amor. Encontrarão neste sacramento a audácia necessária para a aceitação, o perdão, o diálogo e a comunhão dos corações. Será também uma ajuda valiosa para enfrentar as dificuldades inevitáveis de qualquer vida familiar. Que os membros das Equipas sejam as primeiras testemunhas da graça que traz a participação regular na vida sacramental e na Missa dominical”.

Que Maria, que antecipou o destino eucarístico de Jesus nas bodas de Caná, nos acompanhe e nos ajude a moldar a nossa existência em torno da Eucaristia.

Card. José Tolentino de Mendonça