Arquidiocese de Braga -
5 agosto 2024
Voluntários alertam para insegurança da população de Cabo Delgado
DM - Luísa Teresa Ribeiro
Casal esteve seis meses em missão da Arquidiocese de Braga em Moçambique
A população de Cabo Delgado vive em permanente insegurança perante os ataques dos insurgentes islâmicos registados nos últimos sete anos naquela província do Norte de Moçambique.
O alerta é lançado por Ana Gomes e Hugo Borges, que estiveram no terreno durante seis meses, no âmbito do projeto “Salama!”, que desde 2016 envia voluntários para Santa Cecília de Ocua, em Pemba, considerada a 552.ª paróquia da Arquidiocese de Braga.
O casal de São Cristóvão (Cabeçudos), arciprestado de Vila Nova de Famalicão, sentiu na pele o conflito, ao ter de fugir perante o ataque iminente à aldeia de Mahipa, onde fica a sede da paróquia.
“Pelas 10h, o enfermeiro do posto de saúde veio, muito sobressaltado, dizer-nos que era para fugir porque vinham aí os terroristas. Ficámos na dúvida. Seriam boatos? Seria realidade? Sabíamos que andavam por perto. Dizem-nos as boas práticas que, em caso de dúvida, a segurança vem em primeiro lugar, por isso saímos”, relata Hugo Borges.
O pior cenário acabou por se confirmar. “Três a quatro horas depois de termos saído, chegou o exército ruandês, que tomou a casa e a missão, para proteger o espaço. E, posteriormente, passadas mais duas horas, relatam-nos confrontos, ligam-nos a dizer ‘eles estão aí, eles estão aí’. Ouvem-se tiros ao fundo. Esse é um momento em que ficámos a pensar que aquela população está, de facto, completamente desprotegida”, conta.
O voluntário mostra preocupação pelas ameaças que esta população indefesa e sem meios de transporte enfrenta. “Nós tivemos condições para sair. Ligámos o carro e arrancámos. E, estando ali numa zona em que passa a Estrada Nacional N.º 1, rapidamente conseguimos ficar em segurança a uma distância relativamente grande. Mas aquela população não tem meios de transporte, tem que sair a pé”, alerta.
Na sequência deste ataque, estima-se que tenham fugido entre 60 a 100 mil pessoas para a vila ao lado, Namapa, já na província vizinha de Nampula, deslocados que se viram sem meios de subsistência. A fuga aconteceu “numa altura do ano em que tendencialmente já há alguma dificuldade de alimentos”, porque era a época em que “as culturas estavam a começar a produzir, em que se estava a começar a conseguir tirar alguma coisa dos campos, das machambas”, explica.
“As pessoas já estavam a passar fome, porque estavam à espera das colheitas. Em circunstâncias normais, já se via as pessoas a emagrecerem, notava-se visivelmente nas suas caras. Com a entrada dos insurgentes terroristas, em fevereiro, agravou-se essa situação humanitária”, diz.
As pessoas saem dos locais onde têm as suas produções e passam a estar concentradas numa terra sem condições para as receber. “Em qualquer lugar do mundo, 60 mil pessoas é muita gente. Até em Braga, se chegassem 60 mil pessoas em dois dias, provavelmente, também seria um desastre humanitário, mesmo com a abundância que existe», equaciona. No terreno, seguem-se relatos de dificuldades. O apoio do Programa Mundial da Alimentação das Nações Unidas e de outras organizações revela-se «sempre insuficiente” para fazer face “à desgraça humanitária”. Os números indicam que a média de idades é muito baixa, sendo sensivelmente metade do grupo composta por crianças e adolescentes.
Os deslocados começam, então, a ponderar o regresso a casa, apesar de não terem garantias de segurança. “As pessoas começam a questionar-se. A pergunta é: vou morrer aqui devagarinho com a minha família à fome ou vou regressar e pode ser que corra bem, que não haja mais nenhum ataque? Começam a regressar os homens e depois, vendo alguma acalmia, regressam as famílias”, explica.
Só que, entretanto, surge uma nova ameaça e uma nova fuga. “Eles não têm muitas coisas em casa. Quando temem pela vida, fogem e não levam nada. É desta forma que o povo vive, com muita insegurança”, alerta.
O casal nota que, fruto da história do país, a população “ainda está demasiado habituada à guerra”, desde o tempo da guerra colonial. “A maior parte das pessoas com quem lá contactámos ou esteve na guerra ou sofreu consequências da guerra civil entre as diversas forças moçambicanas. Agora surge este conflito, que eles conhecem, mas não percebem muito bem a razão de existir. A reação é de pânico, e fogem”, constata.
Os voluntários advertem que “estamos perante um conflito com sete anos, numa zona esquecida”, uma vez que a visibilidade das guerras mais antigas fica sempre para um plano inferior em relação às mais recentes.
Na sua perspetiva, é preciso que a comunidade internacional saiba que esta é uma zona com muitos recursos naturais – com destaque para o gás natural na zona de Rovuma –, explorados por empresas europeias e americanas. A ânsia de exploração dos recursos promove conflitos e leva à miséria da população, advertem.
“O que aqui são mínimos, lá são luxos”
Uma “experiência muito rica”, marcada por “uma realidade completamente diferente” daquela que se vive em Portugal, é a forma como Ana Gomes e Hugo Borges definem o período em que foram voluntários no projeto “Salama!”.
Ana Gomes, técnica superior de diagnóstico e terapêutica, e Hugo Borges, enfermeiro, contam que a vontade de participarem nesta experiência missionária foi aumentando à medida que aprofundavam o conhecimento sobre o projeto do Centro Missionário da Arquidiocese de Braga em Santa Cecília de Ocua.
“Devagarinho, foi crescendo a vontade de fazer parte deste projeto. Como trabalhávamos, inicialmente, não era uma opção conseguirmos ir para o terreno”, conta Ana Gomes.
Entretanto, o casal reorganizou a vida familiar e obteve uma licença sem vencimento no Centro Hospitalar de Médio Ave, agora Unidade Local de Saúde do Médio Ave, em Vila Nova de Famalicão, onde ambos trabalham, tendo partido em setembro do ano passado. O plano era ficar durante um ano, mas os conflitos que afetam a província de Cabo Delgado obrigaram ao regresso após seis meses de missão.
Hugo Gomes explica que a experiência foi «muito rica», vivida numa realidade diferente da bracarense. “O que aqui achamos que são mínimos, dos quais não abdicamos, lá são luxos. E depois, se analisarmos o contexto do mundo todo, de facto, são luxos, coisas supérfluas”, afirma.
A forma diferente de encarar o tempo também é flagrante. “O tempo lá passa mais devagar. Aqui andamos sempre a correr e nunca temos tempo para nada, quando aqui temos vidas mais longas do que em Moçambique. Lá vemos que, na simplicidade, há outra calma”, diz.
Para além da vertente pastoral, o casal participou num projeto para manter as raparigas na escola, através da ajuda no pagamento das propinas, do material escolar, da mochila e do uniforme às meninas do secundário. “Muitas vezes, as raparigas são as primeiras a não irem para a escola, quando há custos associados. Assim, assegurar que elas estudam, é uma forma de prevenir casamentos e gravidezes precoces e, simultaneamente, um fator de mudança que as proteja e que as acorde para um mundo diferente”, sublinha a voluntária.
Os missionários também estiveram envolvidos num projeto social de aleitamento e nutrição para bebés até um ano de idade. Para além do fornecimento de leite adaptado, esta iniciativa visa melhorar nutricionalmente com produtos locais as papinhas para bebés, tradicionalmente feitas apenas à base de farinha de milho.
Ana Gomes assume que esta experiência “despertou a vontade de missão, seja pastoral ou humanitária”. “Se assumidamente já tínhamos este bichinho do voluntariado internacional, ainda ficámos a gostar e a querer mais. Será sempre uma questão a analisar e a ver as oportunidades que surgem”, completa Hugo Borges.
Sete missionários em formação
Sete pessoas estão em formação para participar no projeto “Salama!”, de cooperação missionária entre a Arquidiocese de Braga e Pemba, em Moçambique, num total de 12 voluntários que estão em fase de preparação.
O número é avançado pela coordenadora do Centro Missionário da Arquidiocese de Braga, Sara Poças, que adianta que a expetativa é que o grupo possa partir em missão quando concluir a formação e haja condições de segurança no terreno, depois do recrudescimento do conflito armado que se verificou este ano.
Os voluntários vão juntar-se ao padre Manuel Faria na paróquia de Santa Cecília de Ocua.
No sentido dar a conhecer este projeto, o Centro Missionário da Arquidiocese de Braga e o Serviço de Educação Moral e Religiosa Católica conceberam a exposição itinerante “Salama! Salama! Traduções e tradições da Missão de Ocua, Pemba, Moçambique, em vermelho-alegria, vermelho-cor, vermelho-festa, vermelho-sangue, vermelho-vida”, que tem percorrido as escolas secundárias de Braga.
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