Arquidiocese de Braga -

25 outubro 2021

A sombra do Pai pelo olhar de uma mãe

Fotografia

Departamento Arquidiocesano da Pastoral Familiar

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Ao ler a carta apostólica Patris corde do Papa Francisco, deparamo-nos, em certo ponto, com uma citação de um romance sobre a vida de São José, A sombra do Pai, do escritor polonês Jan Dobraczynski. Quando a carta foi publicada, no dia 8 de dezembro de 2020, eu estava para acabar de ler o romance pela primeira vez. Tinha descoberto havia pouco tempo o livro, publicado em 1977 e reimpresso em italiano mais de vinte vezes. Achei curioso o Papa tê-lo citado num texto do magistério. Desde então, em menos de um ano, já o reli mais duas vezes. Há algo de extraordinário no livro, uma mensagem que chega com insistência ao coração e que me toca como mulher, esposa e mãe.

A sombra do Pai, com efeito, não é só a história de uma paternidade, mas antes disso é a história de um grande amor, o de José e Maria, apaixonados, noivos, e mais tarde esposos. “A grandeza de São José consiste no facto de ter sido o esposo de Maria...” escreve o Papa Francisco na Patris corde. A espera do primeiro encontro, o estupor e a certeza de re-conhecer-se ao primeiro olhar, a alegria de abandonar-se num amor do qual não eram autores, porque a fonte daquele amor era Deus. Qual felizes não estavam de participar do desígnio salvífico divino, criando a família de que Jesus precisava para vir ao mundo e crescer “em sabedoria, estatura e graça”. Tinham um amor esponsal, verdadeiro, profundo, totalmente confiante no Altíssimo, antes mesmo de se encontrarem. Um amor como pode ser o amor entre cada homem e mulher, que vislumbram a sua própria história no horizonte de uma vocação cujo protagonista é Deus. Um amor que não se pode buscar e perseguir de maneira frenética, mas que se faz esperar: “Estou esperando...”, sussurrou José, respondendo a Zacarias que lhe perguntava por que, naquela idade, ainda não se tinha casado. O que esperava, não o sabia exatamente, mas desejava aquela espera, porque compreendia que, no fundo, era para algo que lhe transformaria a vida.

Dois apaixonados, José e Maria, que disseram sim a um chamado do Pai a viverem totalmente confiantes. Não uma ideia romântica do amor, mas a consciência de serem convidados a realizar um projeto do qual cada um é um instrumento único e maravilhoso; porque quando a Graça age numa pessoa, ou em duas pessoas, expande-se como uma mancha de óleo e tem um alcance universal. Gera vida e muda a vida. Assim como acontece conosco, esposos. Como é belo ouvir os filhos perguntarem se o amor entre a mamãe e o papai nasceu à primeira vista! Na minha experiência, a resposta é sim, se a primeira vista significa re-conhecer no outro aquele que o Senhor pensou “para mim”, para realizar o seu plano de salvação. Quando encontramos a Cristo, não podemos perceber esse encontro senão como uma revelação: Cristo reserva-nos sempre algo, um caminho que tem uma única meta — a vida eterna — ao longo do qual não deseja nada além de despejar rios da sua graça. O casamento, para nós, esposos, é este caminho. Repleto de alegria, mas também de incompreensões, de momentos de desconforto e de dúvida: “A sua barca — pensava José após o encontro com Maria — não tinha tocado a margem, mas [...] tinha deixado o ancoradouro e velejava para longe, rumo a uma aventura desconhecida”. No entanto, em nós, esposos, permanece a certeza da beleza deste caminho — junto daquele cônjuge tão diferente do como o imaginávamos — porque antes de tudo ouve um verdadeiro re-conhecimento.

 A história narrada por Dobraczynski lembra-nos que, para seguir o caminho, precisamos combinar dois ingredientes: saber pedir com confiança, mas também aprender a entrever o que não salta aos olhos. Quantas vezes não acontece, na vida quotidiana, de encontrarmos consolações, vestígios de uma promessa de Amor? Cientes, no fundo do coração, que nem sempre é necessário pedir, e que tudo deve ser entregue ao Doador de tudo. Nas nossas famílias, “o milagre se esconde com frequência na quotidianidade”, e o Espírito sugere-nos que o ordinário é, muitas vezes, na verdade, extraordinário. Penso em quanto é belo sentir as mãozinhas rechonchudas dos filhos que nos acariciam o rosto (como fazia o pequenino Jesus com José) e sentir no coração que é uma carícia de Deus; ou aceitar que um adolescente fique fechado no quarto por horas, à procura de si na solidão, tal como o jovem Jesus se retirava em lugares isolados para rezar ao pai, escondido de José e Maria. Quanto é difícil fazer em família este tipo de discernimento quando somos chamados a calar, partilhar, escutar, deixar espaços sadios de liberdade.

É o nosso esforço de caminhar em direção à vida eterna, por vezes sobrecarregado de circunstâncias graves e pesadas, continuamente cravejado de contínuas dificuldades menores. Mas José aceita o peso, como Maria, que lhe recorda que “é preciso fazer de tudo”, pois só então “Ele tomará as coisas em mãos”. Ambos acolhem dia após dia o projeto de salvação, como nós, esposos, somos convidados a acolher o projeto ao qual dissemos “sim”: para nós, para os nossos filhos, e por todos aqueles que serão rorejados com o orvalho da nossa vida familiar.

Há uma outra passagem que Maria e José nos ensinam a cumprir: ambos acolheram a promessa que o Espírito Santo havia feito ao outro. José acolhe o dom do Espírito que crescia no ventre da esposa; Maria acolhe a promessa feita em sonho a José.

Neste dom do Espírito a todos os dois, cria-se a unidade dos dois na dimensão esponsal, e recria-se o esquema trinitário: tu e eu, em Cristo; nós e Cristo. É este dinamismo que pode iluminar a nós, esposos, na vida comum: no meu cônjuge, o Espírito revela-se e é sinal para mim também do amor de Deus por nós. Sabemos bem que às vezes o que se revela através do cônjuge não é exatamente o que queríamos para nós: mas no sacramento, os esposos tornam-se um para o outro caminho para o Céu. Um caminho por vezes inesperado e incômodo, mas esse caminho, se acolhido, pode-nos ensinar a amarmo-nos com mais grandeza, mais generosidade. Como fez Maria, quando José lhe pediu para levantar-se, recolher o pouco que possuíam, carregar Jesus nos braços e enfrentar uma viagem longa e perigosa a pé para o Egito. Porque o que nos deve guiar, neste caso, é a consciência que no centro do nosso casamento está Cristo. Quando vejo o meu marido em oração, sei que é aquela relação que alimenta o nosso amor quotidiano. E quando conseguimos rezar juntos, Cristo está presente entre nós, sacramento vivo da nossa vida concreta de cada dia.

Parafraseando a Patris corde, a cada vez que nos encontramos na condição de amar, devemo-nos lembrar que o nosso amor é “sinal” que remete a um Amor mais alto. Nós todos estamos sempre na condição de José, inclusive como esposos: sombra do único Pai celeste. Marido e mulher, para cuidarem um do outro e cuidar dos filhos que nos são confiados. Cuidar deles para o Pai, para a vida eterna nEle. Mas cada qual é também como Maria, leva no seu ventre Jesus para dá-lo ao mundo, como fruto do nosso estar em relação com o Espírito Santo. A nossa vocação cristã — ensina o grande santo russo Serafim de Sarov — é adquirir o Espírito Santo para refletir a sua luz, para derramar o amor de Deus nas relações que vivemos.

Ser a sombra do Pai significa, pois, cuidar o outro que te foi confiado, até que chegue o momento de retirar-se: “As sombras desaparecem quando surge o sol...”. Porque a sombra se dissipa quando vem surgindo a luz do Espírito num filho que acompanhamos em direção à liberdade da vida em Cristo. Que grande dom, observar um filho quase adulto que começa a fazer escolhas, totalmente confiante no Pai! A minha maternidade me compeliria a intervir, sugerir, orientar, mas chega um tempo em que devo fazer dissipar-se a minha sombra protetora e colocar-me junto do meu marido, que o apoia nas suas decisões, encorajando-o e “lançando-o” no mundo. Enquanto esposa e mãe, tenho de “deixar-lhe a parte do pai”, assim, juntos, podemos observá-lo andar, em silêncio, gratos. Gratos porque, não por mérito nosso, mas por graça do Altíssimo, vemos o Espírito agir na nossa família. Pensar de outra forma significa ceder às lisonjas do Inimigo, que nos faz acreditar que tudo depende só de nós: uma grande tentação do nosso tempo, que é causa de tantas crises conjugais, mesmo entre os cristãos mais devotos.

Por isso, reler a história de amor entre José e Maria narrada por Dobraczynski pode ser de grande ajuda para penetrar mais a fundo no mistério do amor esponsal e descobrir juntos, com humildade e simplicidade, como age Cristo na nossa vida quotidiana.

GABRIELLA GAMBINO (L'Osservatore romano, 19 de outubro de 2021)