Arquidiocese de Braga -
20 abril 2017
Tio Nosso que estais nos céus
CMAB
Pe. Jorge Vilaça, Comunidade Salama! Cooperação Missionária Braga-Pemba
1. As palavras são fonte de mal entendidos, dizia a (im)pertinente raposa de Saint-Exupery. A linguagem sobre Deus costuma ser boa contribuinte para esse fontenário se considerarmos que uma boa parte dessa linguagem é analógica: o Deus revelado por Jesus Cristo “é bom” por comparação à experiência humana da bondade. Mas, sabemo-lo, a bondade de Deus terá de ser algo infinitamente maior que a bondade humana. Esta é tão facilmente falseável...!
2. As palavras ficam definitivamente complexas se considerarmos as implicações psicológicas da linguagem sobre Deus: a imagem que formulamos de Deus, pelo menos na infância, é também fruto da relação que mantemos com os nossos pais. Neste sentido, muitas “deserções” da Igreja Católica são consequência da catequese infantilizada e da relação conflitual com as figuras de autoridade, sejam elas as figuras parentais ou as figuras religiosas. Ao contrário, muitas vinculações religiosas parecem ser compensações, mais ou menos conscientes, de afectos feridos. Nada de novo. Vem por aí mal ao mundo? Frequentemente sim, tirando saúde e mirrando projectos de vida. Algumas vezes, contudo, reconheço: há compensações religiosas que são ainda o último recurso de sobrevivência...
3. Alguns exemplos discutíveis da linguagem religiosa. A) Teologicamente, Maria não é esposa de Deus. Certo. Mas, na prática dos fiéis, não é ela habitualmente o rosto materno, o feminino de Deus? B) Teologicamente, Deus-Pai não é “o masculino” de Deus. Mas, na prática, quantos conseguem fazer a desvinculação da figura humana paterna? C) Teologicamente, Deus é omnipotente e omnipresente. Certo. Mas, na prática, quantos conseguem entender que essa não é uma ditatorial forma de ser?
4. Na aldeia e na cultura (matrilinear) em que vivo, o “pai” é um desconhecido. Não porque seja “incógnito” (até porque dá o apelido à criança) mas porque é absolutamente insignificante a sua função no crescimento da criança. O “pai” é simplesmente um instrumento de geração. Nada mais. Ou melhor, quando é alguma coisa mais, acresce ao sentido negativo (o que abandona, o que bebe...). A figura de referência é o tio materno. É ao irmão da mãe que compete tomar decisões, proteger, educar... Como se ensina a rezar o Pai Nosso a pessoas que não têm efectivamente a experiência de serem filhas de um pai? Como se ensina que Deus é Pai a alguém que foi vítima de violência paterna?
5. É certo que precisamos de palavras e de imagens para mediar o sagrado. É certo que a maturidade da fé pode ajudar a ultrapassar ambiguidades da linguagem. Mas não deixo de sentir: desde que morreu o meu pai, a oração do Pai Nosso tem outro sentido.
Artigo publicado no Suplemento Igreja Viva de 20 de abril de 2017.
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