Arquidiocese de Braga -
20 julho 2017
Ex-Combatentes e (sobre)vivências
CMAB
Pe. Jorge Vilaça, Equipa Missionária Salama! Cooperação Missionária Braga-Pemba
“Velhice não é idade: é um cansaço. Quando ficamos velhos, todas as pessoas parecem iguais” (Mia Couto, Jesusalém, 25)
1. Tenho uma grande admiração pela camaradagem existente entre os ex-combatentes nas ex-colónias portuguesas. Por diversas vezes e em diferentes posições, tenho tido o privilégio de participar nos seus convívios. São momentos que me fazem pensar: homens de idade madura, muitos com lágrimas nos olhos, abraçando-se como irmãos. Recordo como contam, interrupta e repetidamente, as histórias das suas sobrevivências, dos camaradas falecidos, dos aerogramas que chegavam com novidades da “metrópole”, das piadas de caserna, do frango à cafreal em dias maiores e das latas de ração de combate, dos embarques como se fossem despedidas para sempre e desembarques como se de uma nova vida se tratasse, dos medos e da fé à prova de bala... E os nomes próprios? Chamam-se com nomes de código, cargos que exerceram, virtudes ou defeitos que possuíam, terras de que eram provenientes. Ainda que alguns mantenham o rigor da postura militar ou evidenciem a violência das cicatrizes no corpo e na alma, na sua grande maioria são pessoas com a alma aberta, que, mesmo questionando a justeza de tal guerra, continuam orgulhosos do seu Batalhão e da Pátria que serviram. Colocaram amor à Pátria para compensar um serviço militar que não escolheram.
2. É comum a uma boa parte dos participantes dos convívios de ex-combatentes em que participei a saudade do país que os albergou durante aquela guerra: Moçambique, Angola, Guiné-Bissau... Comentam alguns: “Gostava de lá regressar, mas tenho receio de como nos receberiam”. Há uns anos vi alguns ex-militares portugueses a aterrarem no aeroporto de Pemba (antiga cidade de Porto Amélia), Moçambique. Desciam do avião e choravam... Não sei se o faziam por saudade, por reconciliação com o passado ou por simples choque com as expectativas. Gostava somente de deixar clarificada uma verdade, talvez inconveniente: o povo simples, moçambicano, fala com orgulho do “tempo dos portugueses”. Genericamente dito, o povo é bem mais sensato que os dirigentes políticos e religiosos.
3. As situações de perigo e de medo, vividas e ultrapassadas em comum, transformam vidas de um modo impressionante. Não quer dizer que seja sempre para melhor; mas são absolutamente re-criadoras. Expõem a nossa fragilidade, os nossos limites e fraquezas. Instintivamente “amarramo-nos” aos que temos connosco, muitas vezes aproximando-nos: cuida-se e deixa-se ser cuidado, mútua e afectivamente. Conhecemos verdadeiramente o nosso “eu” e deixamos que esse seja visto e conhecido pelo outro. É nestes momentos que se pode “ressuscitar” interiormente, que se pode re-criar a vida e onde podem nascer ou fortalecer-se laços de amizade, tornando-se frequentemente mais verdadeiros e vitalícios. São várias as histórias daqueles que sentiram que, no regresso a casa, lhes foi dada uma outra vida. (Quem não conhece, por exemplo, famílias mais unidas e fortalecidas afectivamente devido a um processo de doença?)
4. Desde a Paróquia de Ocua, Pemba-Moçambique, um abraço para os antigos combatentes, particularmente para aqueles que exerceram o serviço militar no Norte de Moçambique. Nomes como Porto Amélia, Mueda, Chai, Macomia, Mocímboa da Praia devem soar a alguma coisa. Sei que há saudades desta terra... Já agora, espero que alguma vez a história (e os actuais dirigentes de Portugal) vos reconheçam devidamente e, sobretudo, assistam àqueles que sofrem ainda as dores da guerra. Não chega dar o vosso nome a uma praça ou uma compensação financeira anual de valor quase ridículo. Não deixem que isso chegue. A vossa primeira vida vale muito mais, creio.
Artigo publicado no Suplemento Igreja Viva de 20 de julho de 2017.
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