Arquidiocese de Braga -

1 março 2018

Um raio de sol chamado Clementina

Fotografia Filipa Correia

DACS

Filipa Correia | Departamento Arquidiocesano para a Comunicação Social (DACS) em Pemba, Moçambique

De sorriso aberto, sincero, puro. Assim nos recebeu Clementina, na Casa de Acolhimento da Fundação Sementes de Esperança, que a voluntária Laura idealizou (e fez acontecer!) há mais de 20 anos. A casa, situada em Pemba, Moçambique, acolhe crianças em situação de risco. Clementina é uma delas. O “Salama!” que nos dirigiu assim que nos viu – um “Olá, tudo bem?!”, em Língua Macua – veio acompanhado de um abraço a condizer. A comunicação foi não-verbal, devido à barreira linguística. Mas entre sorrisos e abraços dissemos muito. Com o seu vestido de cor laranja, a menina de cerca de 10 anos, portadora de deficiência, brilhava como um sol. E que coisas bonitas nos contou! Mesmo sem saber.

Violet, uma doce voluntária espanhola de 23 anos, que colabora com o centro, contou-nos, depois, a história daquela criança-amor…

A mãe de Clementina era portadora de deficiência. Foi, por isso (infelizmente os mitos e crenças em volta da deficiência tornam esta associação quase certa), rejeitada pela comunidade. Vivia numa casa isolada no meio do mato. Certo dia, um homem que passava lá perto aproximou-se. Encontrou-a como sempre esteve: sozinha, vulnerável, desprotegida. Violou-a. Passados nove meses, nasceu Clementina, também ela com deficiência. Durante alguns anos, mãe e filha viveram naquela casa, contando apenas com a companhia uma da outra. Até que um dia, a mãe de Clementina morreu. Ela, ali ficou. Ninguém sabe como sobreviveu, ainda tão pequena, sozinha. Mais tarde, alguém que passava na zona, estranhando o odor, entrou na casa. Encontrou Clementina e a mãe já cadáver. A menina foi então encaminhada para a Casa de Acolhimento.

Ouvida a história, fiquei incrédula. Um misto de dor, tristeza e revolta invadiu-me. A vida pode, de facto, ser de uma dureza tal que nem os nossos pesadelos mais cruéis se atrevem a recriar. E este pesadelo aconteceu. Ali esteve, diante dos meus olhos, o fruto dele. Fiquei ainda mais perplexa ao recordar a doce e alegre Clementina, a quem a vida poderia ter tornado tão dura e fria. Senti-me bem pequenina ante aquele raio de sol cheio de luz. A vida mostrou-lhe a sua pior face. Ela mostrou-lhe o perdão, a alegria, o amor. Deu-lhe uma nova oportunidade. Como poucos seriam capazes de dar após crueldade bem menor. Permitiu-se, a si mesma, uma segunda oportunidade. Sem raiva ou amarguras. Sem rancor ou ressentimento. Perdoou, de verdade. Libertou-se. Deixou que o seu coração se abrisse a todo o amor que estaria para vir. Foi grata por todo o bem que ainda não havia recebido. Hoje, a vida é o reflexo do seu sorriso, leve, honesto, descomprometido. Hoje, na Casa de Acolhimento, Clementina encontra um conjunto de braços estendidos que afagam os seus, um amor que não esbarra nas cicatrizes do passado. Partindo da tragédia, Clementina criou uma nova história… E esta vem carregada de amor. Sem dizer nada, Clementina ensinou-me que o perdão vem com o mais belo raio de sol. Sem dizer nada, contou-me tanto!

Artigo publicado no Suplemento Igreja Viva de 01 de março de 2018.


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