Arquidiocese de Braga -
19 outubro 2018
«Aprender a conjugar o verbo “aceitar”»
CMAB
Sofia Vilar, voluntária missionária que integrou a segunda Equipa Missionária do Projeto Salama! conta como foi viver na Paróquia de Santa Cecília de Ocua, na Diocese de Pemba, Moçambique
Qual foi a receção da comunidade à vossa chegada?
Fomos muito bem recebidos. Havia muita curiosidade e muito afecto por nós já.
Em que incidiu, em termos concretos, o teu trabalho?
Além do Programa Pastoral, fazíamos tudo o que era necessário. Fomos enfermeiros, médicos, professores, melhores amigos, “mãe” e “pai” quando foi preciso.
As minhas principais ocupações eram a Saúde, o Programa de Apoio ao Aleitamento (PAA), a Tesouraria, a Comissão da Mulher (CM), a Comunicação, o processo de orçamentação das obras e a Cozinha. A Cozinha e a Saúde partilhadas, sempre que possível, com o mano António.
Quanto ao PAA, o meu trabalho passou por criar o regulamento, o projeto para o candidatarmos a um fundo, selecionar as famílias que devíamos acompanhar, ensinar a preparar o leite de suplemento tendo atenção a todas as normas de higiene, seguir semanalmente os bebés e ceder as latas de leite.
O acompanhamento diário dos jovens também ocupava um bom período dos nossos dias.
Este contacto mais individualizado permitiu-nos fazer laços importantes, apercebermo-nos das condições de vida das famílias e ajudar algumas delas mais particularmente.
Agora que tento resumir, vejo que o nosso trabalho foi tudo menos linear e enunciável, porque a sua vertente mais importante se focava no contacto com as pessoas, e isso não se traduz em projetos ou horas laborais, mas em resultados que demorarão o seu tempo a surgir.
O que é que faz mais falta em Ocua?
Formação. O que traria consigo uma melhoria óbvia de condições de vida, cuidados de higiene, cuidados de saúde...
O que mudou em Ocua com a presença contínua de uma equipa como a de Braga?
Para começar, o acompanhamento na fé.
Depois, foi possível reabrir o Posto de Saúde, que agora tem um enfermeiro de segunda a sexta.
O nosso trabalho permitiu que a comunidade se fosse aproximando de nós. O apoio escolar que dávamos era muito importante para um grupo de meninos que nos pedia ajuda sem reservas.
Ainda, a presença de uma mulher com a minha idade, escolarizada, com vida profissional, sem marido, que pensa pela própria cabeça, que tem uma voz, serviu de exemplo, principalmente para as meninas mais novas, de que podem ter um percurso diferente do que lhes parece destinado. As reuniões da CM procuravam passar esta mensagem: a mulher é o pilar da casa, da família e da economia – é imprescindível que ganhe consciência do seu valor e lugar e que não pode submeter-se, nunca, à violência.
E acho que as nossas partilhas enriqueceram tanto as pessoas a quem pudemos falar do nosso país e família, de outros países, culturas e realidades, como nos enriqueceu a nós, que aprendemos macua, tradições, histórias locais e recebemos doses imensuráveis de amor.
O apoio do PAA é fulcral para que vários bebés possam sobreviver. Pode parecer extremista, mas este é o verbo certo: sobreviver.
Sinto que foi assim que fomos evangelizando, dando Deus às pessoas. Porque acredito que Deus está na nossa relação com o outro, como Ele próprio nos diz (Mt 18:20).
Há uma história que traduz bem o que estou a dizer. No final de uma das eucaristias, comecei a brincar com as crianças e apercebi-me de um volume estranho na barriga de uma das meninas, a Sofia. Liguei à minha irmã, que é médica, e pedi ajuda. Era uma hérnia umbilical com uns 12 cm de exposição. Chamei a família, expliquei o que se estava a passar e marquei um dia para irmos ao hospital. A família da Sofia ficou muito tocada com a preocupação, com o acompanhamento que demos a todo o processo e, claramente, percebeu O que estávamos a entregar. A Sofia era muçulmana, mas desde esse dia passou a ir à eucaristia de Domingo. Ficámos cúmplices e acredito que, mesmo agora que regressei, a Sofia continue a confiar em Deus. Não consigo lembrar-me de nada mais bonito e transformador que isto.
O nosso primeiro papel era de testemunho e formação, portanto, pode até ser uma revolução mais silenciosa, mas está a acontecer. Acredito mesmo que é a educar uma geração, que educará outra, que educará outra e outra, que se muda o mundo!
O teu olhar sobre a vida mudou depois desta missão?
É claro que sim. Num ano mudaria sempre.
Cada um tem o seu percurso e eu sinto que o meu estava desenhado por aqui, pelo que já levava alguma consciência e algumas ferramentas. Mas, é óbvio, tudo muda dentro de nós.
Estes 13 meses foram muito importantes para aprender a conjugar o verbo “aceitar”. Mas aceitar não é tornarmo-nos conformistas. É aprender a discernir o que podemos mudar do que não está nas nossas mãos.
Quando percebes que “ser, dar e receber amor” basta... é libertador!
Costumo dizer que fomos muitas vezes instrumento de Deus para operar milagres. E não o digo com soberba. Vi-os a acontecer e estarei sempre muito grata por isso.
E é impossível que não saias de uma experiência destas a conhecer-te melhor.
Então, sim, o meu olhar sobre a vida mudou. Relativizo. Aceito. Amo com menos medo. E estou muito grata – a Deus, à vida, à missão e às pessoas que sabem que foram pilares durante todo este tempo.
Artigo publicado no Jornal Diário do Minho de 19 de outubro de 2018.
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