Arquidiocese de Braga -
21 outubro 2021
"É nossa função acolher, com caridade, aqueles que nos chegam"
DACS
O ano 2020/21 foi complicado para a equipa missionária 'Salama!', com apenas um elemento, Andreia Araújo, a estar na paróquia de Santa Cecília de Ocua – Fátima Castro e o Padre Manuel Faria apenas se conseguiram juntar em agosto passado. Agora, com a equi
[Igreja Viva] Apesar de a equipa missionária ‘Salama!’ já estar formada há um ano, só desde Agosto é que o Pe. Faria e a Fátima se juntaram à Andreia. Como é que tem sido a experiência?
[Fátima Castro] Não nego que trouxe, na bagagem, a vontade de mudar o mundo! Mas cedo percebi que seria só a mim que o mundo mudava com as imensas histórias de vida que carrega o povo macua. Começaram por me mudar os inúmeros missionários que encontrei à chegada e que, tal como nós, provinham dos quatro cantos do mundo para a Diocese de Pemba. Neles vi verdadeiros testemunhos de entrega, serviço, e aqueles rasgos de santidade que tanto nos fala o Papa Francisco! Mudaram-me as primeiras visitas às comunidades - Santo António de Nacoja e Santa Madalena de Maringue - onde encontrei um povo que esperava, há mais de um ano, a nossa chegada. Naqueles dias recordei a alegria daquele reencontro de Pedro com Cristo, após a ressurreição! Mudou-me o papá Iugo Sumail, deslocado de Mocímboa da Praia desde Novembro de 2020 e que, num estado frágil de saúde, nos pediu ajuda para alimentar os seus cinco netos, órfãos de pais, ambos vítimas dos ataques do norte de Cabo Delgado. Naquela família encontrei Deus, que ouviu as minhas preces, quando lhe pedia para me enviar para os mais frágeis e abandonados, independentemente da cor ou religião! E as mamãs do projecto de aleitamento que, semana após semana, carregam os filhos às costas e vêm à missão pedir leite?! Nelas vejo a figura maternal de Maria que, contra todas as intempéries da vida, colocam os filhos no topo de todas as suas preocupações e percorrem quilómetros, com os pés descalços, procurando as sombras da terra quente. São os jovens da paróquia, o Juma, Custódio, Celestino, Tânia, Neima, Bichara, Isménia…. Que me mudam com a força do acreditar que os sonhos podem ser vividos e que, com persistência, ainda é possível contrariar o futuro incerto que os espera. E, por fim, é no sorriso da Dina, da Athia, da Filomena, Lázaro, Nelson, Velasco… e tantas outras crianças que todos os dias nos batem à porta, que encontro o sentido da minha presença aqui.
[Igreja Viva] Encontraram aquilo que esperavam em Santa Cecília de Ocua?
[Pe. Manuel Faria] Fui muito bem recebido, juntamente com a Fátima, pela “irmã” Andreia, pelo Frei António Champoco, e pelo CPP da paróquia de Ocua. A comunidade paroquial está espalhada em aldeias bem longínquas, que ainda esperam pela nossa visita. Para chegar a esses locais mais distantes, só há estrada até 10 km da aldeia principal. Depois disso, só através de picada [caminhos em terra]. Há também uma grande dificuldade nas comunicações, pois o português é 2.ª língua no norte de Moçambique, que tem a sua própria língua e cultura Macua. A língua predominante é o Macua e fazemos muitos esforços para aprendê-la. Consegui já falar umas poucas palavras deste idioma que possui diversas variações e dialetos. Na missa procuro rezar em Macua as partes fixas, o Evangelho eu leio em português e depois alguém traduz para Macua, assim como a homilia. Tudo é bem diferente, numa nova linguagem e cultura a aprender. Se em Portugal encontro na Igreja uma maioria de idosos e poucas crianças, aqui na paróquia de Ocua tenho sempre uma Igreja cheia de crianças, crianças que evangelizam outras crianças e famílias com a sua alegria em cada celebração. Logo no primeiro encontro pastoral de sacerdotes diocesanos, uns 15 sacerdotes, verifiquei que não têm meios adequados para enfrentar as exigências pastorais dos dias de hoje. Falta de transporte, alimentação, vestuário adequado para as celebrações, míngua de recursos para a formação pastoral nas suas comunidades. Mas sempre aparece um saco de milho ou uma galinha, que ajuda a superar dificuldades maiores na economia paroquial. Vejo que a cooperação pastoral e missionária entre Igrejas continua a ter plena validade e muita necessidade, nestas Igrejas particulares de África, onde a evangelização exige um novo impulso e vigor, dada a pobreza de meios e de pessoal. É difícil todos os dias trabalhar com muita falta de meios. Apenas se vive de mercados informais com muita pobreza para acesso a bens essenciais, isto faz-nos pôr a mão na consciência, como diz o rapper moçambicano Azagaia: “Ai de nós, que comemos guisado e assado enquanto alguns comem mandioca crua”.
[Fátima Castro] Chegamos num tempo em que o país atravessava a terceira vaga da pandemia e muitos dos serviços, incluindo os cultos, estavam fechados. Os pés pediam caminho e as restrições impostas pelo governo obrigavam a abrandar o passo, ou mesmo parar. No entanto, estar parado também pode ser caminho, quando descobrimos “vacani, vacani…” [“pouco a pouco”] que, “afinali” a sabedoria está… Onde há paciência! E a sabedoria passa também por, numa primeira fase, cuidar do olhar. As casas, feitas de matope, canas de bambu e capim; a terra vermelha, árida e sem água; os enormes embondeiros que ladeiam a casa da missão; o caminho de mangueiras que convida a entrar e o indiscritível pôr-do-sol bem como a noite onde o céu é coberto por uma imensidão de estrelas fazem de Ocua um fiel retrato da imaginação de África. Contudo, o mais importante são as pessoas! As imensas crianças que deambulavam pela aldeia, os papás e mamãs que saúdam, individualmente e sempre com um sorriso no rosto, seguido de um “Salama, kaiki erotho?” [Bom dia, como está o teu corpo?]; as mãos que recebem e doam sempre a par e estendidas acompanhadas com um inclinar da cabeça… fazem-me sentir tão pequenina! Resta-me continuar a amealhar histórias de gente que luta todos os dias para sobreviver às doenças, fome, solidão, pobreza e injustiças que tantos padecem!
[Igreja Viva] Como é um dia vosso na Paróquia de Ocua?
[Pe. Manuel Faria] Acordar com o sol a entrar pela janela, pelas 5 da manhã. E recolher a casa ao anoitecer, pelas 17h, o mais tardar. Como não há eletricidade nas aldeias da missão, andar de noite seria muito perigoso. O dia começa sempre com a oração da Igreja universal. Esta vida em comunidade, com espírito missionário, oferece a todos os leigos e sacerdotes a oportunidade de participar dos principais momentos de oração da Igreja: Laudes (manhã), celebração da Eucaristia, Vésperas (tarde) e Completas ou oração do Rosário (noite). Durante a longa manhã, somos uma verdadeira Igreja em saída, ao encontro das crianças, dos doentes, das famílias que pedem a nossa ajuda. As nossas tardes têm momentos de encontros com os catecúmenos adultos à segunda-feira, para acolherem a experiência cristã, prepararem os ritos dos 3 anos do catecumenado, e as celebrações da paróquia à quinta-feira e ao domingo. As tardes de sexta-feira são para preparação do Crisma. Os sábados de tarde são muito animados. Uma multidão de crianças e jovens nas catequeses, encontros de jovens, de acólitos, ensaios do grupo coral, animadores da Palavra nas celebrações sem sacerdote a organizarem os encontros dominicais. Em cada semana a quarta-feira é dia da Comunidade “Salama” reunir, avaliar, programar, escutar e restaurar o seu ardor missionário. O domingo é o culminar alegre e festivo da semana, com visitas as imensas comunidades e Igrejas da paroquia (98 comunidades), que preenchem e “animam” toda a nossa vida missionária.
[Igreja Viva] Que trabalho é que têm levado a cabo na comunidade?
[Andreia Araújo] Ao longo deste ano pastoral, e devido à pandemia, sofremos algumas restrições que nos impediram de realizar as actividades pastorais habituais. Continuamos a dar apoio paroquial às 98 comunidades cristãs, e no momento em que tivemos um alívio das restrições, conseguimos celebrar eucaristias em todas as zonas da nossa paróquia, que abrangem localidades até aproximadamente 100 km de Ocua. No final do ano pastoral foi também possível reabrir a catequese e iniciar os trabalhos relacionados com a Assembleia Nacional Pastoral. Ainda assim, conseguimos manter os projectos sociais existentes. O apoio ao aleitamento pretende auxiliar recém-mães com dificuldades de amamentação, ou bebés órfãos, a complementar ou suprir a sua alimentação, aproveitando para dar formação às mães sobre a higiene na amamentação e cuidados de saúde. Outro projecto é a machamba, que envolve a exploração do terreno agrícola da paróquia, permitindo às pessoas da comunidade ter um meio de sustento. Temos também um projecto de apoio ao desenvolvimento educativo das jovens raparigas da comunidade, com o âmbito principal de fornecer as ferramentas necessárias para que as jovens consigam prosseguir os seus estudos na escola secundária, do 8º ao 12º ano. Conseguimos também iniciar o projecto de nutrição de crianças, que tem como principal objectivo dar formação às recém-mães sobre como tornar a nutrição dos seus bebés mais nutritiva, dentro do contexto e dos produtos sazonais existentes, por forma, a garantir que conseguem continuar a nutrir adequadamente os seus filhos. Todo este trabalho foi dinamizado da melhor forma possível, dadas as directrizes de saúde do país, e com o desafio adicional da presença apenas de um elemento da equipa localmente pela impossibilidade de a restante equipa obter os respectivos vistos, devido à pandemia.
[Igreja Viva] Como é que se tem vivido a pandemia e o ambiente de conflito na região de Pemba?
[Fátima Castro] As restrições em vigor para combater a pandemia de Covid-19 continuam a ser, gradualmente, aliviadas no país. Entre as medidas de abrandamento das restrições, decretadas no fim do mês de setembro, está a reabertura dos lugares de culto. A Igreja, em Portugal como em Moçambique, assume um papel fundamental no combate à pandemia. Enquanto equipa missionária temos o dever de informar e alertar as comunidades para a importância do uso da máscara e a lavagem frequente das mãos. As celebrações, sempre que possível e devido ao número de fiéis, vão-se realizando no exterior das igrejas procurando, embora com muitas dificuldades, manter a distância de segurança. Em relação ao conflito que se vive na província de Cabo Delgado o ambiente está, aparentemente, mais tranquilo. Contudo, os deslocados continuam a chegar à cidade de Pemba e vão-se espalhando pelas várias paróquias a sul de Cabo Delgado, nomeadamente a paróquia onde se situa a missão. Habitualmente dirigem-se para casa de familiares ou então alojam-se nos dois campos de reassentamento da paróquia: um na comunidade de Nacivare e outro em Ocua Posto. Muitos estão já a construir casas, sinal de que estão também a reconstruir as suas vidas. Enquanto paróquia é nossa função acolher, com caridade, aqueles que nos chegam promovendo a boa convivência entre deslocados e locais sem deixarmos de estar atentos às necessidades de todos. Sobre a instabilidade geral que se vive nesta região continuamos serenos… Sem deixarmos de estar vigilantes.
[Igreja Viva] Andreia, vai renovar com o projecto Salama mais um ano. O que a levou a tomar essa decisão?
[Andreia Araújo] Tenho muitas razões para renovar por mais um ano, entre as quais o facto de este ano ter sido um ano muito desafiante devido à pandemia e pelas circunstâncias não terem permitido estar em equipa em Ocua. Sinto que ainda há muitos objectivos a cumprir e, com a equipa reforçada e o alívio das restrições, vou poder nconcentrar-me em áreas de intervenção mais específicas.
[Igreja Viva] Pe. Faria, como é o trabalho pastoral num ambiente tão diferente do habitual numa paróquia da Arquidiocese?
[Pe. Manuel Faria] Chegamos a este lugar remoto do mundo desconhecido, bem para lá do fim do mundo, onde a religião se vive como nas primitivas comunidades cristãs, onde endereçamos cartas e fazemos visitas para confirmar na fé as 98 comunidades cristãs, umas muito jovens como Santa Madalena de Maringue, que nasceu em 2015, outras melhor organizadas como Santo António de Nacoja nascida em tempos coloniais. Este é um povo de Deus, que chega até nós de pés descalços, mãos calejadas, corpos de crianças esfomeadas, jovens que pedem ajuda para poder estudar, idosos que sofrem porque aqui não há reformas, e então no final da vida “comem o pão que o diabo amassou”! Só a fé e o amor de Deus os pode salvar desta vida difícil. A cultura africana é baseada na oralidade e nos ritos. Vimos apontar caminhos de Deus, mas aqui Deus nunca foi estranho ao povo africano, e aqui ninguém é ateu. Vimos mais aprender, do que ensinar! Mais que converter, converter-nos ao amor de Deus, para que se veja em nós a Igreja Samaritana que apregoamos, mas não concretizamos! A missão pastoral de continuar a inculturação do Evangelho é tarefa delicada, “sempre com o testemunho, às vezes com palavras”, com a força do amor, da magia da fé que move montanhas, e o ardor missionário que seduz pelo testemunho, que enfeitiça todos e cada um, a buscar caminhos de paz e justiça e harmonia entre os povos, seduzidos pela força da Palavra encarnada no meio de nós, que gera irmãos de uma única família de filhos de Deus!
[Igreja Viva] Fátima, esta missão tem-na ajudado a crescer na fé?
[Fátima Castro] Sim, ajuda-me não só a crescer na fé mas a fortalecê-la. E é fortalecida na ora- ção pessoal e sacramental, quer na vida da pequena comunidade ‘Salama!’ quer na vida da paróquia. A fé, vivida em comunidade, sempre criou em mim um sentido de gratidão e de encanto. O Papa Francisco começa a mensagem para o Dia Mundial das Missões a dizer que, “quando experimentamos a força do amor de Deus, quando reconhecemos a sua presença de Pai na nossa vida pessoal e comunitária, não podemos deixar de anunciar e partilhar o que vimos e ouvimos.” Na medida em que missão é, e sempre foi, de todos e para todos, é pela fé que me deixo evangelizar pelos que encontro. Só assim, também eu posso depois partir ao encontro!
Entrevista publicada no Suplemento Igreja Viva de 21 de outubro de 2021.
Download de Ficheiros
IV_2021_10_21_net.pdf
Partilhar