Arquidiocese de Braga -

4 novembro 2021

Onde há amor nascem gestos

Fotografia Ecclesia

Departamento para as Missões

Pe. Adelino Ascenso, superior-geral da Sociedade Missionária da Boa Nova

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1. O episódio é comum a muitas das grandes cidades e, normalmente, sentimos que se tornou quase trivial, pelo que não nos debruçamos sobre o assunto e não refletimos no perigo que isso representa, nomeadamente no sentido da nossa perda de sensibilidade no que se refere à situação do outro. Era um homem de meia idade. Estava prostrado, de bruços, no passeio de pedra. Hora de grande movimento, as pessoas corriam apressadas e nervosas, em diversas direções, como linhas que se cruzavam sem se tocar. Eu observava aquela agitação e imaginava cada um e cada uma envolvidos numa bolha transparente e protetora do contacto com o exterior. Não havia olhos para o vulto estendido na calçada. Algumas pessoas franziam o sobrolho, saltavam para o lado, de forma a não lhe pisarem a cabeça, e seguiam o seu caminho, talvez com um ligeiro peso no coração por não terem parado, já que aquele corpo era um pranto estridente, uma acusação clamorosa e um apelo à fraternidade solidária. Mas também esse peso se dissolveria com ligeireza, sob a influência de justificações racionais, já que a ausência do rosto do sofredor não nos interpela nem comove.

2. «Globalização da indiferença» foi a expressão que borbotou como lava dos meus abismos mais profundos. A indiferença é uma manhosa cilada na qual todos tropeçamos, escorregamos e, porventura, tombamos; ela ilude-nos de tal forma que chegamos a ignorar a nossa identidade de fios entrelaçados de uma rede humana, responsáveis uns pelos outros; ela apaga na nossa mente a convicção de que o sofrimento nos deve fazer vizinhos. E ali estava eu, colado ao chão, pensando que uma barreira tem de ser transposta, para que não seja eu a considerar que tenho «próximos» a quem ajudar, o que poderia ser sinal de sobranceria, «mas que me sinto chamado a tornar-me eu um próximo dos outros» (FT 81), em transformação interior. 

3. Outra cidade me atraía. Depois de me ter despedido da família que fizera do alpendre da entrada de uma igreja a sua casa, protegendo-se da chuva e do vento, dirigi-me ao bairro onde se encontrava a instituição de acolhimento a indigentes que nada possuíam e cujo fio de vida estava a aproximar-se do seu termo. Também ali havia um vulto caído, mas este estava ladeado por três pessoas que lhe ligavam as feridas e lhe transmitiam um punhado de ternura e uma migalha de presença; estes eram movidos pelo «motor da missão», em entrega amorosa, já que onde há amor, aí nascem gestos concretos, pois nos põe em movimento. E irrompeu, do meu peito, um afago do calor humano daquele samaritano que se aproximou do ferido e lhe ligou as feridas, deitando nelas o azeite da santificação e o vinho da alegria (cf. Lc 10,34).

4. Inclinar o próprio coração à escuta do pulsar do coração do outro exige um humilde esvaziar-se de preconceitos, de temores e de egoísmos. Só assim se poderá realizar o encontro íntimo, universal e pungente. Tudo começa com a experiência vivencial, com a deslocação, com a «saída», tocando as feridas abertas na carne da pessoa concreta. Nenhum encontro nos pode deixar indiferentes; se ficarmos indiferentes, não se terá verdadeiramente realizado o encontro: a corda das nossas relações não estará devidamente afinada. Para tal afinação, exige-se ver o que está para além e por detrás do vulto do irmão. Olhar com afeição, pois «fomos criados para a plenitude, que só se alcança no amor» (FT 68). Escutemos o nosso coração e vibremos com o coração do outro, para que, nessa sintonia de corações, valorizemos o humano na sua inteireza e, assim, possamos encontrar-nos com o divino e sermos «missão» genuína.

Artigo publicado no Suplemento Igreja Viva de 04 de novembro de 2021.


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