Arquidiocese de Braga -
1 dezembro 2021
Mais do que um projeto de vida... um projeto de amor!

Família Carmelita
Fátima Castro, leiga missionária na Missão de Ocua, Moçambique
Quando me perguntam o que é “ser missionária”, respondo sempre com um sorriso: “é emprestar as mãos e o coração a Jesus”. O caminho começa quando entendemos que a vocação é iniciativa de Deus, dom do Pai, Filho e Espírito Santo. Só assim acontece esta trilogia missionária do dar-receber-retribuir.
Nesta dinâmica de vocação/missão, a pergunta que se me impunha, numa estrutura de diálogo com Deus, era “qual a vontade de Deus para mim?”. O discernimento passa sempre, em primeiro lugar, por um processo de escuta. Se não nos dispusermos a ouvir, e a admitirmos que Deus nos pode chamar, uma coisa é certa: nada acontece. Descobrimos a vontade de Deus, quando nos dispomos interiormente a aderir ao que for melhor para nós e que nos aponta àquele caminho que nos conduzirá à paz e à felicidade. Assim fiz. Rezei a minha vida com a certeza de que Deus não deixaria de Se manifestar na hora certa, que é a Sua hora – a hora da graça. Até chegar “essa hora”, a mim, restava-me cultivar a paciência e a perseverança desejando apenas a Sua vontade. Desejar encontrar a vontade de Deus, escrita no céu, tapada por uma nuvem, na esperança de que um dia, o vento sopre e eu possa ler “o teu caminho é...”, ou então esperar para ouvir uma voz do além que nos diga claramente “segue por aí…” parece-me uma utopia. A vocação é, simultaneamente, opção e chamamento. Aquilo que “Eu Sou” e aquilo que “Eu Quero” é expressão da vontade de Deus em mim.
Recordo-me do Papa Francisco, na oração Urbi et Orbi, em 2020, quando repetia as palavras de Jesus: «Por que sois tão medrosos? Ainda não tendes fé?» Nesta dinâmica da fé, incentivava-nos a convidar “Jesus a subir para o barco da nossa vida” e a confiar-Lhe os nossos medos, “para que Ele os vença." E quando vencemos esses medos, o Espírito Santo - animador de toda vocação e o companheiro de caminho - habilita-nos para o «testemunho» de, não só guardar Jesus no coração, mas a anunciá-Lo como vida do mundo.
Foi com essa vontade de O anunciar que fui enviada, em nome da Arquidiocese de Braga, para o serviço da Diocese de Pemba, na Paróquia de Santa Cecília de Ocua, província de Cabo Delgado – Moçambique. Integro o projeto “Salama!” – criado no âmbito de um acordo de cooperação missionária entre as duas dioceses - e que tem como principal objetivo a dinamização de toda a pastoral de Santa Cecília de Ocua, paróquia extraterritorial da Arquidiocese de Braga. Paralelamente, e para além de dar continuidade aos projetos sociais já existentes, sem esquecer a formação de âmbito pastoral na qual também fazia formação em Portugal e, sendo eu da área da educação, estarei mais direcionada para a reativação da escolinha da Missão Católica de Ocua e para a promoção de outros projetos que levem à autonomia e à capacitação das pessoas.
A paróquia, composta por 17 zonas, subdivide-se em 98 comunidades e dista da cidade de Pemba cerca de 200km. A comunidade mais longe da sede da missão, Savanuni, dista cerca de 100 quilómetros em terra batida e picadas. O impacto, para quem chega, na saúde, na educação, na vida social e comunitária, é muito grande… Mas o Espírito Santo e o amor de Deus também é. A paróquia está situada numa zona marcadamente rural onde a eletricidade ainda não chegou e a água só é encontrada nos poços comunitários. Ao poço da missão chegam-nos mais de cinquenta mamãs todos os dias. O meio de subsistência deste povo passa pelo trabalho nas machambas (hortas) onde, em tempos “abastados” conseguem cultivar mandioca, milho, feijão e gergelim que lhes servirá como único sustento para o ano.
O Papa Francisco começa a mensagem para o Dia Mundial das Missões deste ano dizendo que “quando experimentamos a força do amor de Deus, quando reconhecemos a sua presença de Pai na nossa vida pessoal e comunitária, não podemos deixar de anunciar e partilhar o que vimos e ouvimos.” Há tanto ainda para ver nesta terra… e tanto para ouvir o que este povo tem para dizer! Em cada amanhecer não me permito demitir daquilo que me fez colocar os pés ao caminho: o amor! Não procuro construir a minha história, em Moçambique, com histórias extraordinárias, mas sim, com histórias de gente que luta todos os dias para sobreviver a tamanho sofrimento, solidão, pobreza e injustiças de que já tantos padeciam!
Como a história do papá Iugo Sumail. Chegou à missão alegando problemas de saúde. Como o posto de saúde estava encerrado, porque era feriado em Moçambique, dissemos-lhe para vir ter connosco no dia seguinte e que o acompanharíamos. No decorrer da conversa disse que era deslocado de Mocímboa da Praia, local onde decorreram os ataques levados a cabo pelo Estado Islâmico e que hoje continua a ser uma vila abandonada, destruída e sem as mínimas condições de habitabilidade. Fugiu, em agosto de 2020, depois da aldeia onde morava sofrer o último ataque. “Já poucos restavam na aldeia e não podíamos continuar lá”, disse com o olhar focado num horizonte como se a memória o levasse até à sua terra natal. Esteve escondido, nomato, cerca de um mês juntamente com a esposa, a filha e cinco netos. “Vivíamos com muitas dificuldades. Não tínhamos comida, onde dormir e nem sabão.” afirmou, sublinhando que desconhecia o paradeiro da restante família. A filha, que estava em período de gestação, acabaria por falecer de cólera. Temendo o mesmo desfecho para os netos, colocou pés ao caminho e percorreram, depois de passarem por Moeda e por Pemba, quase 400km até chegar a Ocua. Têm mais seis filhos, que residiam nas zonas dos ataques, e que até hoje desconhecem o paradeiro. Contou-me esta história enquanto caminhávamos até à casa, (des)coberta com capim, e que lhes foi cedida “por caridade”, disse. Preocupava-o as chuvas (que estão prestes a chegar) e a alimentação das crianças. O que recebiam do PMA - Programa Mundial de Alimentação - não estava a ser suficiente e, como estava doente, tinha dificuldade em ajudar os “novos” vizinhos nas suas machambas. Perguntei a idade das crianças à avó. Não sabia. Aqui elas nascem no “naquele ano em que choveu muito” ou “no tempo em que os cajueiros deram muitas castanhas”. O tempo deles não obedece ao nosso calendário. O pouco que consegui fazer por esta família pareceu-lhes tanto… e foi tão pouco!
Deixo-me, todos os dias, evangelizar pelos que encontro. Para que depois também eu possa partir ao encontro, despida dos pre(conceitos) de um mundo ocidentalizado e, marcadamente, consumista. Um mundo que não nos deixa parar para ver os detalhes. Como por exemplo o olhar. Marca-me o olhar de tantas crianças que, com os pés descalços e a roupa em farrapos, vestem todos os dias o seu melhor sorriso! Talvez porque, creio eu, desconhecem ainda o futuro tão doloroso que as espera. O olhar dos adolescentes é diferente… Aqui começaram a acentuar-se as diferenças culturais e de género. Muitas meninas adolescentes já carregam as crianças às costas! Na minha ingenuidade (ou talvez porque assim queria acreditar) ainda pergunto a muitas se são seus irmãos aqueles bebés que carregam. Mas não… São crianças a terem crianças! Depois temos o olhar dos mais velhos. Um olhar profundo que expressa, tantas vezes, um grito silenciado pelas dificuldades enfrentadas. O olhar dos mais velhos, os papás e mamãs, é um olhar de sofrimento. De dor. De incerteza.
Muitos destes papás e mamãs batem à porta da missão dizendo, “mana, vim saudar”. É com esta expressão que muitos chegam até nós. Muitas vezes segue-se um silêncio incompreensível para nós, os ocidentais, que estamos tão acostumados a preencher o tempo com palavras. Mas para eles é diferente! Este “vim saudar”, às vezes é apenas isso, uma saudação (e muitos fazem quilómetros a pé para nos vir saudar!) mas outras vezes a saudação traz consigo outras perguntas que são difíceis de compreender na lógica humana! Como aquele papá que chegou à missão com uma bebé de seis meses ao colo. Começou com essa expressão e um olhar cabisbaixo. Perguntei algumas vezes o que precisava e se o podia ajudar. Não respondeu e assumi que não me compreendia. A língua oficial em Moçambique é o Português mas a província de Cabo Delgado divide-se em dois grandes povos que, consequentemente, formam o seu dialeto: a norte os macondes e a sul os macuas. Na paróquia o dialeto é maioritariamente macua – embora os deslocados sejam macondes - e este varia de comunidade para comunidade, qual torre de Babel. Voltando ao papá. Quando pedi ao guarda da missão para me traduzir, o papá disse-lhe que não precisava porque falava português. “Vim deixar a minha filha” – disse-me com a voz trémula e lágrima no olho. Contou que a esposa estava doente desde que a bebé nasceu e que, os restantes filhos, eram homens. Por isso não podiam cuidar dela. “E é uma rapariga” disse ele, algumas vezes. Em Moçambique, as meninas não têm os mesmos direitos. O valor da vida é diferente como se a vida não fosse toda igual e os direitos não fossem os mesmos! Aquele pai fez quilómetros para vir deixar a sua filha… Os olhos dele nunca saíram do chão e nunca encontraram os meus! O silêncio quer dizer tanto! Dissemos que o poderíamos ajudar sim, mas não dessa forma. Que ele era o papá dela e que precisava de cuidar. Que toda a família se deveria unir para cuidar dela. “Dela” porque esta menina ainda não tinha nome.
Há tantos rostos assim. Procuro amar, cada um deles, na medida em que o amor exige compreensão, paciência e muita caridade no coração. Só assim me abro a este Deus, que conhece melhor do que ninguém o coração dos seus filhos e que me mostra diariamente – através destes rostos sem nome – que se continua a cumprir, em mim, a Sua vontade.
Artigo publicado na revista Família Carmelita de Dezembro 2021.
Download de Ficheiros
Familia Carmelita dezembro 21.pdf
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