Arquidiocese de Braga -

25 dezembro 2021

Há outro mundo

Fotografia Avelino Lima

Homilia na Solenidade de Natal.

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Na história da Salvação, Isaías aparece como o profeta que anuncia, em jubilosa esperança, os tempos messiânicos. Colocava os seus seguidores a olhar para o futuro como uma época libertadora e realizadora dos sonhos. Um mundo novo havia de vir.

Num determinado momento da sua pregação exclamava: “Sentinela, em que altura vai a noite”. Desejava-se que a noite passasse e que emergisse uma aurora de concórdia e paz que oferecesse bem-estar material e espiritual.

Também hoje desejamos ansiosamente que a noite avance e apareça a manhã de uma vida normal roubada pelo vírus. Parece-nos ver a luz ao fundo do túnel mas não estamos livres de uma responsabilidade activa.

Com tudo o que o vírus deixou, continuo a acreditar que algo terá de mudar não só nos comportamentos exteriores como nos interiores. Se há regras a cumprir, há também opções a assumir, sintetizadas na certeza de uma interdependência que salva a todos ou condena a todos. Tiremos lições da noite. Proponho para este Natal que semeemos estrelas, na simbologia que podem encerrar. Podem ser pequenas. Se forem muitas gerarão certeza no caminhar e esperança no viver.

As estrelas que sugiro correspondem a compromissos do Programa Pastoral. O vírus semeou muita doença. A nossa sociedade, como tal, está doente. O Natal não permite pessimismos, mas a luz de Belém obriga a ser realista. A doença é de todos, é material, social, económica, sanitária, política. Antes de mais é de ausência de um humanismo integral onde os valores começam a ser esquecidos. 

Tenhamos coragem de olharmos para as feridas. Em Natal, paremos e falemos delas. Não nos apeguemos ao negativo mas reconheçamos que são precisos antídotos que podem mudar o rumo das coisas. Por pequenas estrelas que sejamos, a noite vence unindo-as.

Começo pela estrela da fraternidade. O mundo continua fragmentado e os povos perseguem a sua história de tristeza, desgaste, cansaço. Fraternidade continua a ser palavra de dicionário pouco usada. Precisamos de compaixão visível perante os inúmeros males que nos afligem. “Viver indiferente à dor não é uma opção possível, não podemos deixar ninguém caído nas margens da vida”. Teimamos em percorrer caminhos paralelos ou opostos. 

Não ousamos congregar e unir e ver a Humanidade como causa única onde os problemas terão de ser resolvidos por todos. É fácil polarizar a sociedade e entrincheirar-se nos seus critérios e possíveis razões para o progresso. Unidos devemos experimentar a fraternidade e torná-la estrela que os outros possam ver. 

Precisamos, também, da estrela da comunidade. Temos de pensar e agir em comunidade mas estamos a magoar-nos frequentemente, particularmente com a indiferença e as palavras inoportunas que magoam e ofendem. Teremos de nos aproximar para acabar com o anonimato e conseguir oferecer equilíbrio e serenidade. Não somos ilhas ignorando a existência alheia, as necessidades e as legítimas aspirações de quem está ao nosso lado como pessoas individualmente ou instituições de serviços sociais. É fácil encontrar nas comunidades divisões, insensibilidade, anonimato, falta de comunicação e de transparência.

As situações são muitas mais e mais variadas. O remédio que nos é proposto é o acolhimento. “Quando se acolhe com todo o coração a pessoa diferente, permite-se-lhe continuar a ser ela própria, ao mesmo tempo que se lhe dá possibilidade de um novo desenvolvimento” (F.T. 134). Se o acolhimento exigir rectificação de processos criaremos a fraternidade a tornar-se luz na reconciliação e reacerto de processos.

Urge a estrela do cuidar da casa comum. As notícias são dramáticas e os apelos são constantes e não podemos adiar mais. Teremos de cuidar e fazer com que outros cuidem também. “O ritmo do consumo, de desperdício e alteração do meio ambiente superou de tal maneira as possibilidades do planeta, que o estilo de vida atual – por ser insustentável – só pode desembocar em catástrofes, como aliás já está a acontecer periodicamente em várias regiões.” Precisamos de gestos concretos que mostrem a nossa capacidade de proteger a natureza tornando-a verdadeira morada para todos com as condições adequadas para uma saúde equilibrada. A ecologia integral supõe um compromisso efectivo. “Buscar apenas um remédio técnico para cada problema ambiental que aparece é isolar coisas que, na realidade, estão interligadas e esconder os problemas verdadeiros e mais profundos do sistema mundial”. 

Precisa-se de estrelas nas relações familiares. Olhar para as nossas famílias é sinónimo de encontro com tantas situações de fragilidade, de sofrimento, de tantas feridas. As comunidades necessitam de se aproximarem mais das famílias para as acompanhar, de modo que se tornem capazes de superar as dificuldades que encontram no caminho. As feridas das famílias actuais são mais que evidentes. Com o compromisso de muitos a família voltará a brilhar na noite da sociedade e a mostrar que é aí que seremos felizes.

Em Igreja temos, ainda necessidade urgente de acender a estrela que mostre o compromisso de cuidar das feridas dos jovens. Não necessitamos de discursos longos para compreender os jovens. Parecem à deriva pois não encontram respostas certas e seguras. A Igreja deve ir ao encontro. Teremos de privilegiar a linguagem da proximidade, a linguagem do amor desinteressado, relacional e existencial que toca o coração, atinge a vida, desperta esperança e anseios. É necessário aproximar-se dos jovens com a gramática do amor, não com o proselitismo. A linguagem que os jovens entendem é a de quantos dão a vida, a daqueles que estão ali por eles e para eles e a de quem, apesar das suas limitações e fraquezas, se esforça por viver coerentemente a sua fé. A juventude não está perdida. Só com ela ultrapassaremos a escuridão da noite

Neste Natal quis trazer para esta liturgia natalícia algumas sugestões, tiradas do Programa Pastoral, para recuperarmos a alegria de viver procurando com os nossos gestos ir reagindo ao que parece normal. Há outro mundo. Cristo nasceu para ele. Hoje os cristãos são os intérpretes deste mundo diferente. Poderá parecer tarefa ciclópica. Com a luz de Belém nas nossas intenções mudaremos muitas coisas. Não nos contentemos com as palavras. Apostemos nos gestos. Estes são as verdadeiras estrelas que destroem a escuridão da fraternidade, dos problemas ecológicos, das interrogações dos jovens. Procuremos encontrar neste Natal um pouco de tempo, pessoal ou familiar, para pensar no que poderemos fazer para que a noite seja vencida pelas estrelas nos nossos gestos.

O Menino Jesus nos conceda um tempo mais alegre e feliz.  

 

 † Jorge Ortiga, Administrador Apostólico


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