Arquidiocese de Braga -

Não são necessárias palavras para descrever a gravidade da situação que estamos a viver. Os dados estatísticos são expressivos e o quotidiano dos hospitais começa a ser verdadeiramente catastrófico.

Neste contexto, porém, sinto ser meu dever partilhar algumas reflexões. Não encerram nada de novo. São coisas que não podemos esquecer. Recordar pode significar um compromisso mais responsável. Creio que elas poderão ajudar a compreender a nota pastoral que anexo sobre a vida das comunidades em tempo de confinamento:

1. A pandemia, provocada pela Covid-19, parece imparável, tendo em conta o número crescente de infectados e mortos. Parece, mas não é. Sim, não é. Mas com todo o realismo, isso está nas mãos de cada um de nós!...
Felizmente, o vírus não viaja sozinho. Transmite-se de pessoa a pessoa. Infelizmente, parece que há demasiada gente a oferecer-lhe “transporte” por comportamentos impensados. O facilitismo e o desrespeito pela própria vida e pela vida dos outros, potencia contágios de dramáticas consequências. Urge que cada um se comporte como se o fim da pandemia dependesse de si. Trata-se de um dever de cidadania, civismo, humanismo, lucidez, sentido de pertença e de compromisso com o bem comum. Para um católico, as obrigações tornam-se ainda mais evidentes. É o amor a Deus que o exige e o amor ao próximo que o reclama.

2. Se, infelizmente, temos de registar muitos descuidos e pessoas a dizerem-se cansadas das restrições, há milhares de pessoas sem direito a descansar correndo riscos desnecessários. São todos os profissionais de saúde, desde os mais especializados aos que desempenham tarefas muitas vezes consideradas menores. Pensar no seu heroísmo, deveria motivar-nos para comportamentos mais conscientes. Já foram aplaudidos às janelas, ou às portas dos seus postos de trabalho. Hoje estamos a pedir-lhes ainda mais e a dar-lhes menos. Os descuidos sobrecarregam-nos e espera-se ou exige-se que nos salvem dessas incúrias próprias ou alheias. Agradecer-lhes é pouco. O melhor agradecimento consiste em protegermo-nos ou cuidarmo-nos a nós próprios. Isto podemos e devemos fazer.

3. A crise económica e social são já dramaticamente ineludíveis. Mas, em nome da verdade, a perda galopante das vidas humanas é muito mais dramática. Os números não enganam e não nos podemos habituar às estatísticas nacionais ou à comparação com o que acontece no mundo.

Se a morte entristece, o silêncio dos funerais impressiona muito mais. Teremos de ser rigorosos nos cuidados a ter nestes momentos mas não podemos ser insensíveis. A prudência deverá aconselhar as nossas comunidades cristãs a expressar gratidão pela vida dos que morrem, oferecendo-lhes um sufrágio crente, conscientes de que é “um salutar pensamento olhar pelos mortos”. Pensando nesses irmãos que tiveram pouco afecto por parte de familiares e amigos, aconselho a que os recordemos, com esta ou outra oração: “Deus Pai Misericordioso, acolhe no Teu colo amoroso os nossos irmãos que a pandemia vitimou. Que a sua perda nos desperte para os cuidados com o nosso mundo, a atenção aos mais frágeis e desamparados, o amor atento a quantos nos rodeiam e de nós precisam. Que o egoísmo e a indiferença não nos fechem, cegos, surdos e mudos, ou nos permitam, apenas, lamentos sem conversão e ação. Deus, Pai de Misericórdia, perdoa as faltas daqueles que entregamos ao Teu amor. E a nós, peregrinos, dá-nos a graça de caminhos novos de atenção e dedicação aos outros”.
Mais, ainda, solicito às comunidades que não deixem de fazer os seus funerais. Restritos à família com o cumprimento de todas as indicações prescritas mas com a celebração da Eucaristia. Creio que podemos menorizar a dor deste momento para as famílias. A Eucaristia ajudará a suavizar e a dar um conforto espiritual. Não a suprimimos a não ser que seja, explicitamente, determinado o contrário.

4. Se muitos partiram, muitos mais experimentaram a dor de não poderem despedir-se fazendo um luto de harmonia com os seus desejos. Teremos de ser capazes de, permanentemente, acolher o sofrimento de todas as famílias enlutadas. Se muitos dos que partiram sofreram a solidão familiar dos últimos dias, a dor de quem perdeu os seus olhares e abraços não se diz facilmente. A comunidade terá de encontrar modos de proximidade e presença. Bastará imaginar um pouco e permitir que o amor ao próximo invente gestos de verdadeira afetividade. É hora de nos sentirmos um só corpo e de sofrer com quem sofre.

5. O cumprimento das regras de confinamento, nem sempre convenientemente interpretadas, está a provocar muito isolamento com a consequente solidão. São os idosos as principais vítimas desta triste realidade. Sabemos como são vulneráveis e de grande risco. Para quem possui alguns sentimentos de humanidade não será difícil encontrar sinais de proximidade. Ao lado de uma geografia territorial teremos de trabalhar uma geografia humana que se consciencialize sobre quem vive ao lado e a quem deverá expressar a ternura de quem acredita na fraternidade. As comunidades cristãs terão de se comprometer, também como uma lição a retirar desta pandemia, na construção de comunidades que não só não ignoram ninguém mas onde as vidas se entrecruzam através de gestos expressivos de solicitude cristã. Como na história da Igreja, há pessoas que, na sombra, gastam a sua vida pelos outros. Saibamos estar com os idosos e as pessoas isoladas.

6. Não ignoremos o trabalho benemérito dos lares e das instituições de solidariedade. Nunca foi fácil o trabalho social. Tudo se complicou em termos de cuidados e encargos. Todos quantos aí trabalham, direcções e funcionários, não podem ser, apenas, escrutinados por tudo o que acontece e, infelizmente, condenados de um modo superficial. A sociedade, e a Igreja em primeiro lugar, saberá reconhecer o mérito e o heroísmo por tudo o que silenciosamente acontece no interior das suas paredes. Poderá acontecer que o confinamento esteja a impor alguma solidão com consequências psicológicas negativas. Não será fácil chegar à normalidade. Teremos de ser solícitos e testemunhar-lhes muita gratidão.

7. A vida das comunidades em tempo de confinamento. Nem sempre poderemos fazer o que pensamos ser útil para as comunidades. Sabemos que nunca poderemos viver sem o Domingo e teremos de encontrar modos de o celebrar. Neste momento, e depois de ter ouvido o Conselho Episcopal e o Conselho de Arciprestes, assim como acolhendo as orientações da Conferência Episcopal, são suspensas as celebrações públicas a partir do próximo Sábado, dia 23 de Janeiro, inclusive.

A celebração, oração, reflexão e partilha através dos meios de comunicação são uma ajuda que poderá levar conforto e luz a muitas pessoas e famílias, apoiando-as na solidão e na provação. Sabemos bem que os cristãos estão inseridos na comunidade, no povo de Deus de carne e osso, que parte o Pão, ouve a Palavra, partilha a caridade e anuncia a alegria do Evangelho através do testemunho da vida e da proximidade concreta. Mas também um povo que sabe usar de forma criativa todas as oportunidades oferecidas pelas novas tecnologias para se manter em contato e alcançar aqueles que estão sozinhos, ansiando sempre, quando possível, por poder encontrar-se fisicamente ao redor da mesa eucarística.

No isolamento a que somos obrigados neste momento, devido à impossibilidade de participar na celebração eucarística, não podemos correr o risco de nos acostumarmos a viver uma fé intimista e preguiçosa. É decisivo o bom uso dos meios de comunicação para procurarmos reforçar ainda mais o nosso sentido de pertença a Cristo e à comunidade. Podemos estar unidos e reunidos, em nome de Jesus Cristo, através de um ecrã: uma modalidade necessária, neste momento, aliás a única possível na emergência que todos esperamos que termine em breve. O “lugar” de encontro muda, mas também no ambiente digital é possível reunir-se em comunidade em nome de Jesus Ressuscitado.

É grande o desafio que temos diante de nós, o de não nos resignarmos perante as dificuldades e de não nos acomodarmos nos “serviços mínimos”. Pelo contrário, havendo menos missas, é preciso celebrar e viver mais a Eucaristia. Havendo menos confissões, tem de haver mais perdão e reconciliação. Teremos menos ritos e tradições, mas podemos ter mais Palavra de Deus. Temos menos actividades paroquiais e diocesanas, podemos ter mais família como Igreja doméstica. Teremos menos encontros, mas podemos ter mais caridade e ternura no acompanhamento das pessoas e das famílias. Temos menos receitas económicas, podemos ter mais partilha e transparência.

Devemos delinear um modo de estar com todos. As crianças necessitam de uma solicitude especial. Sem catequese presencial podem crescer no amor a Jesus e no conhecimento da Sua doutrina. Os idosos e as famílias também são merecedores de uma atenção particular. Querendo ser uma Igreja sinodal é de esperar que as iniciativas partam dos sacerdotes mas também dos leigos detentores de tantos talentos esquecidos ou enterrados.

Que o nosso povo se sinta verdadeira e amorosamente acompanhado! Para isso, deverá ter a certeza de que os párocos celebram diariamente, dando a conhecer as horas da celebração, pelas suas intenções, porventura com transmissão pela internet, sufragando os mortos e rezando para que Deus faça com que esta pandemia seja vencida.

Informo que teremos Eucaristia diária, a transmitir pela internet, na Sé Catedral, de Segunda-feira a Sábado às 17h30 e ao Domingo às 11h30. Na tarde dos Domingos da Quaresma, sempre a partir da Sé Catedral, em horários a indicar oportunamente, faremos uma experiência, que intitulamos “Casa da Palavra”, onde desenvolveremos diversas interpelações sugeridas pela parábola do Bom samaritano. Realizaremos, também, os encontros Nova Ágora com oportunidade de reflexão arquidiocesana. Tudo em modo de teleconferência.

8. A vida das comunidades cristãs está a passar por muitas dificuldades. Cumprimos e fazemos cumprir todas as determinações das autoridades civis. Com todos os cuidados de uma sadia e responsável convivência humana nem sempre sabemos o que é necessário agendar ou o que se deve cancelar ou adiar. Exige-se um discernimento permanente. Programar a vida terá de ser sempre uma aventura. Poderemos não ter as actividades habituais litúrgicas ou formativas. Crescer, consolidar a fé e intensificar gestos de fraternidade, numa atenção a todos, particularmente aos pobres, vulneráveis, isolados, nunca pode ser negligenciado. Presencial ou virtual terão de ser sempre alternativas a concretizar. Mais ainda, importa que a crise se torne oportunidade e graça. Acredito, seriamente, que as comunidades poderão ser sacrificadas nas celebrações e actividades pastorais. Ninguém nos dispensa de ser criativos e de elaborar estratégias para crescer num dinamismo de pertença à comunidade que quer viver para Deus e servir o próximo. Sinodalmente, não deixemos morrer o maravilhoso dom de ser Igreja mesmo nestes tempos conturbados. Tudo sempre numa certeza de estrito cumprimento das determinações e orientações das autoridades de saúde.

Dizem os especialistas que o pior ainda está para acontecer em número de infectados e, particularmente, mais dramático, de mortos. As vacinas oferecerão alguma esperança. No momento presente só temos um caminho. Reconhecer que a solução está nas mãos de cada um. Não nos deixemos tomar pelo pessimismo. Há muito de positivo a retirar desta pandemia. Acredito que irá nascer um novo modo de viver em sociedade e na Igreja. Descortinemos as vantagens destas horas e apaixonemo-nos pela vida, nossa e dos outros.

† Jorge Ortiga,
Arcebispo Primaz