DACS | 22 Mar 2021
O terceiro e último encontro deste ano aconteceu no dia 19 de Março. Ana Mendes Godinho, Ministra do Trabalho, da Solidariedade e da Segurança Social, Paulo Granjo, Investigador e Professor Universitário, e Paulo Marques, Economista e Professor Universitário, lançaram novas luzes sobre o tema. Graça Francisco, jornalista, moderou a conversa.

No dia em que a Igreja assinalou a Festa de S. José, o Arcebispo Primaz lembrou-o como “padroeiro dos trabalhadores, alguém que trabalhou para sustentar uma família no meio de muitos problemas e dificuldades”.

“A partir da família compreendemos a importância do trabalho. Ele é um elemento fundamental para a dignidade das pessoas, de modo que podemos afirmar que sem ele não há dignidade de vida. Sabemos que o trabalho é um direito mas também sabemos que nem todo o tipo de trabalho dignifica”, explicou D. Jorge Ortiga, citando alguns exemplos de trabalho indigno.

O responsável afirmou que a dignidade que referiu pressupõe não só uma igualdade de retribuição salarial entre homens e mulheres e um respeito pelos direitos que se foram conquistando ao longo dos anos, mas também uma conciliação entre a vida profissional, familiar e pessoal, assim como a inclusão das pessoas com necessidades especiais, nomeadamente nas limitações a nível de mobilidade, no mercado do trabalho.

“A precariedade tem muitos rostos. Contratos temporários, contratos a prazo, contratos a termo certo, recibos verdes, bolsas de investigação, estágios curriculares que se alargam a todas as faixas etárias. Creio que a lista não está completa. (…) O trabalho precário gera insegurança e fragilidade laboral”, alertou.

Naquele que foi o encerramento do ciclo de conferências Nova Ágora 2021, o Arcebispo referiu-se à iniciativa como “verdadeira experiência cultural”.

“Sabemos que a cultura se reveste da forma de um poliedro, com várias faces, todas elas fundamentais: conhecimento, investigação, lazer, arte, costumes, hábitos, tradições, crenças. Tudo fundamental para que a pessoa experimente todas as suas potencialidades. Ela é dinâmica, está sempre em desenvolvimento, acontece na História. Sujeita-se, por isso, ao ritmo da mudança. E hoje encontramo-nos não só numa era de mudanças mas de mudança de era”, salientou.

Lamentando que este ano o encontro entre os participantes da Nova Ágora – oradores e público – não tenha podido ser presencial, D. Jorge Ortiga lembrou, no entanto, que “no amor não há longe, nem distância”.

 

Ana Mendes Godinho: "vivemos tempos muito difíceis, mas também de esperança"

A Ministra do Trabalho, da Solidariedade e da Segurança Social começou por dizer que nos encontramos claramente perante “tempos desafiantes, muito difíceis”, que a todos abalaram. 

“Abanaram-nos a todos e aos percursos que tínhamos imaginado. Estávamos com uma trajetória muito positiva que de repente ficou completamente abalada por este tsunami, por esta pandemia que nos atacou a todos como um invisível comum que também evidenciou um conjunto de fragilidades de base social muito associadas à precariedade e à informalidade”, explicou.

Ana Mendes Godinho frisou que, por essa razão, estes também são tempos de acelerar prioridades e de fazer investimentos e mudanças estruturais naquilo que é mais frágil tem de ser mudado, como a precariedade laboral. 

“Temos de perceber que 54% dos novos desempregados são pessoas que tinham vínculos precários. Exactamente por isso, foram as primeiras a serem dispensadas dos seus trabalhos. Neste momento temos 17% de contratos não permanentes, um número que baixou porque as pessoas ficaram desempregadas. Há pessoas que estão há mais de 10 anos em contratos temporários, isto é inaceitável”, referiu.

Ana Mendes Godinho afirmou ser necessária uma “mobilização social” que envolva todos no combate à precariedade laboral, que valorize o lugar dos jovens, das mulheres e das pessoas com deficiência no mercado. Está, até, a ser preparado um programa governamental com discriminação positiva relativamente a esses grupos, que foram grandemente afectados pela pandemia. 

@ DR

“Ainda assim, num momento em que tudo falhou, durante a crise pandémica ficou evidente que tivemos um Estado Social que funcionou na dimensão da saúde, nos desafios sanitários, na educação e na dimensão social. Ajudámos dois milhões e 800 mil pessoas, mas a crise também nos mostrou que as pessoas têm de fazer parte do sistema. É fundamental reforçar a Segurança Social, de forma a que seja vez mais inclusiva e adaptada aos novos desafios”, explicou.

A responsável afirmou que neste momento há três grandes prioridades em cima da mesa: apoio ao emprego e combate ao desemprego, protecção dos rendimentos e protecção dos mais vulneráveis.

“Tem de haver mobilização social de todos nós ao nível das qualificações, como elevador social das pessoas, para garantir que se tornam indispensáveis. Quanto mais talento tiverem, mais serão valiosas e mais bem pagas. Tem de existir reforço de competências digitais, de energia, de competências ambientais, até do setor social!”, frisou.

Sobre o futuro do trabalho, a Ministra diz que deve haver uma maior possibilidade de conciliação da vida profissional e pessoal, sendo que o diálogo social é crucial no momento que atravessamos.

“Tem de haver uma participação activa dos trabalhadores nas organizações. O maior valor de mercado são as pessoas! Precisamos da afirmação de um modelo social como âncora que nos liga a todos”, reiterou. 

A ministra do Trabalho frisou ainda a necessidade do reforço da capacidade de inspecção e fiscalização, bem como o reforço de meios humanos, tecnológicos e de intervenção, insistindo particularmente numa agenda dedicada à valorização dos jovens no mercado de trabalho.

“São tempos difíceis, mas também de uma nova esperança. Como disse o Papa Francisco, que sejamos capazes de reagir com um novo sonho e fraternidade social que não se limite a palavras”, apelou.

 

Paulo Granjo: quase vinte anos depois, um vínculo laboral estável...

Paulo Granjo surpreendeu os presentes com o início da sua intervenção, confessando que o tema da precariedade lhe é muito próximo: doutorado há vinte anos, apenas em Janeiro deste ano, dezoito anos depois de ser investigador na mesma instituição, conseguiu finalmente um vínculo laboral que não é precário. A investigação científica foi, aliás, um dos grandes temas abordados pelo especialista em Antropologia Social.

“A precariedade não é novidade, muito pelo contrário, durante muito tempo foi considerada a normalidade. Só foi considerada uma anormalidade pela força dos trabalhadores e acção dos sindicatos ao longo de quase dois séculos”, referiu, explicando que a novidade da precariedade é o facto de, em países como Portugal, constituir um “retrocesso civilizacional” e uma “tentativa de recriação do pior do passado”.

Paulo Granjo afirmou que, no mundo actual, a generalização da precariedade laboral constitui, para além de tudo o que é social e que diz respeito à vida das pessoas, “um premiar da incompetência de gestão”. 

© Arquidiocese de Braga

“A generalização da precariedade premeia a gestão incompetente. E esse prémio à incompetência é dado através de dinheiros públicos, resultantes das contribuições para a segurança social”, alertou.

O professor universitário explicou que neste sistema são exploradas não só as pessoas a quem as empresas pagam pouco e despedem facilmente, mas também está a ser explorada toda a sociedade que contribui para o sistema de Segurança Social colectiva que acaba a viabilizar esse abuso aos trabalhadores.

“Quem aposta na precariedade e não tem um núcleo mínimo de trabalhadores permanentes, aumentando a mão de obra quando é necessário com contratos a prazo, despedindo-a quando essa fase de trabalho deixa de ser necessária, adquire vantagens competitivas dessa sua própria incompetência e incapacidade de planificação de gestão”, explicou. 

Paulo Granjo disse ainda que, como já havia sido destacado pela Ministra, a prioridade deve ser dada às qualificações e competência mas, no que diz respeito à mais qualificada da mão de obra, a investigação científica, a precariedade sistémica que está instalada na investigação é um modelo esgotado que se tornou actualmente um travão e um colete de forças ao potencial científico nacional e ao potencial da contribuição dos cientistas para o desenvolvimento do país e para o re-situar de Portugal e da sua estrutura económico-social no mundo.

“Se queremos realizar uma aposta estratégica nacional na ciência como factor multiplicador de desenvolvimento integral, o sistema que temos está absolutamente esgotado. E as alternativas de política laboral e científica terão de ser outras”, frisou.

Os investigadores com vínculos precários acabam por sair de Portugal e acabam por ser outros países a capitalizar o investimento que o Estado investiu na sua formação. O especialista insistiu que em Portugal não há “investigadores científicos a mais”, sendo absolutamente imprescindível uma política que ajude à sua fixação e alargamento consoante as necessidades e estratégias do país.

“Precisamos de um sistema justo, potenciador e fixador, capaz de criar condições de estabilidade para a investigação científica a longo prazo. Para isso é necessário um investimento em meios humanos e técnicos, que trará benefícios a toda a sociedade”, sublinhou.

 

Paulo Marques: "precariedade já existia muito antes da pandemia" 

O debate contou ainda com a reflexão de Paulo Marques, economista e Professor Auxiliar do Departamento de Economia Política do ISCTE. O docente explicou que as mudanças no sistema económico estão a ter efeitos na protecção social, penalizando quem não tem trabalhos estáveis, sendo que a precariedade não é uma novidade. 

“Não foi agora na pandemia que percebemos que a precariedade é um problema, já era um assunto que estava na ordem do dia antes da pandemia. De certa forma, a pandemia tornou isto mais claro” disse o docente. 

Relativamente ao mercado de trabalho em Portugal, há uma percentagem elevada de pessoas com formas de contratação mais instável e que se encontram nessa situação de forma involuntária, ao contrário do que acontece em outros países, em que as taxas elevadas geralmente correspondem a pessoas em formação, por exemplo. Paulo Marques adiantou que em Portugal há muitos licenciados jovens com essas formas de contratação e que isso se deve a vários e diferentes factores. 

“Para além dos factores referidos pelos meus colegas, temos que perceber como mudaram as coisas. Aquilo que era o sistema económico no pós-guerra, numa economia muito industrializada, tinha um aspecto importante e que estimulava as relações as relações contratuais estáveis: valorizava-se muito a questão do investimento dos empregadores nos trabalhadores. Ou seja, promovia-se o pensamento de investir no trabalhador e tentar retê-lo a longo prazo por depender das competências dele”, adiantou.

De acordo com o docente do ISCTE, os jovens são os mais penalizados porque grande parte entra no mercado de trabalho em sectores em expansão e onde há uma proliferação de contratos precários.

© ISCTE

“Os jovens são muito afectados porque entram no mercado de trabalho nos sectores que estão em expansão e esses sectores utilizam muito este tipo de contratação. Também ingressam no mercado de trabalho após uma série de reformas legislativas que legitimam este tipo de contratos”, afirmou.

Paulo Marques explicou ainda que, no seu entender, há três visões de solidariedade que podem resolver o problema da precariedade.

“A primeira visão  requer alguns trade-offs. Temos recursos e eles não são ilimitados, daí termos que fazer esses trade-offs. Esta visão está muito presente quer em mudanças à legislação laboral, quer em mudanças dos regimes de protecção social. É uma visão muito presente nas políticas europeias e vai no sentido de manter as políticas activas de emprego, de assegurar subsídios de desemprego, aumentar a protecção dos que estão numa situação mais instável e de haver investimento das empresas nos trabalhadores”, explicou.

A segunda perspectiva, a tradicional da social democracia, defende a necessidade de regular mais o mercado de trabalho por haver uma desigualdade de poder entre empregadores e trabalhadores, tornando mais generosa a protecção social no desemprego.

“A terceira visão prevê um estado social minimalista, em que a solidariedade consiste em compensar os que ficam numa posição mais vulnerável, mas não intervém naquilo que são as relações de mercado. Não produz alterações à legislação laboral, nem tem um estado social muito abrangente, onde o essencial é garantir o mínimo às pessoas. Está presente nos países de matriz mais liberal, países anglo-saxónicos, por exemplo, onde o estado social é mínimo”, explicou. 

Paulo Marques concluiu a intervenção dizendo que, mais do que caracterizar o problema, é importante encontrar soluções, corroborando assim o que os colegas de painel já haviam dito sobre a necessidade de passar da palavra à acção.

PARTILHAR IMPRIMIR
Palavras-Chave:
Nova Ágora  •  Precariado  •  Trabalho  •  Exploração  •  Dignidade