Arquidiocese de Braga -
8 dezembro 2004
Homilia no Sameiro (Card. Eugénio Sales)

Fotografia
Cardeal D. Eugénio de Araújo Sales
\nA 8 de Setembro, Natividade de Nossa Senhora, em nome do Santo Padre, como seu Enviado Especial, presidi as celebrações do Centenário da Coroação de Nossa Senhora Aparecida no Brasil. Hoje em Portugal, em Braga, como Sé Primacial, tão rica em recordações do passado e realizações no presente, venho me unir aos meus irmãos no Episcopado: o senhor Cardeal Patriarca, o senhor Arcebispo Primaz, o senhor Núncio Apostólico, o Episcopado português. E quero respeitosamente saudar as Excelentíssimas Autoridades civis e militares, o clero, religiosos, religiosas e o Povo de Deus.
Aqui estou, na honrosa incumbência de fazer presente a pessoa do Sucessor de Pedro nos festejos centenários da coroação de Nossa Senhora do Sameiro. Manifesto minha alegria por estar em Portugal que gerou a fé cristã no País onde nasci. Também de Portugal recebeu o Brasil, como herança extraordinária, a devoção à Mãe de Jesus. No Brasil, tive a graça de fazer a leitura, por ocasião do Centenário da Coroação de Nossa Senhora Aparecida, a Carta Autógrafa do Santo Padre, que afirmava: “Bem antes de 1717 e do extraordinário aparecimento, porém, já existia uma profunda devoção pela Mãe de Jesus no coração dos cristãos do Brasil, que a herdaram dos portugueses. (…). O amor e a devoção a Maria são um dos traços da religiosidade do povo brasileiro”. Obrigado, Igreja em Portugal, pela formação do Brasil no amor à Mãe de Deus!
Aqui estamos neste Santuário de Nossa Senhora do Sameiro que nos recorda o idealismo dos sacerdotes bracarenses, Padre Martinho Pereira da Silva e Padre Manuel Antunes dos Reis, a firmeza de atitudes do povo português às hostilidades à Igreja, e a inspiração do Santo Padre, o Papa Bem-aventurado Pio IX ao definir a 8 de Dezembro de 1854, o dogma da Imaculada Conceição de Maria. O mesmo Pio IX, em 22 de Dezembro de 1876 benzeu a imagem de madeira policromada deste santuário. Hoje merece ser singularmente recordado que há cem anos, em 1904 (12 de Junho) o então Núncio Apostólico em Portugal, em nome do Santo Padre São Pio X coroou solenemente a bela imagem. Esta coroa foi oferta dos portugueses, desde os mais pobres até à rainha, a Senhora Maria Amélia. Todas as dioceses concorreram. Paulo VI, em Dezembro de 1964, elevou este templo à dignidade de basílica e o nosso Santo Padre João Paulo II, tendo colocado desde os primeiros dias de seu Pontificado, todo o governo da Igreja sob a protecção materna da Virgem Maria, visitou este santuário a 15 de Maio de 1982.
Em sua Carta Autógrafa com data de 11 de Outubro último, a mim dirigida, assim se expressa: “Não podemos nos esquecer que, 22 anos atrás, nós mesmos aqui estivemos a rezar diante dessa imagem que, em Dezembro, celebrará o feliz centenário de sua coroação”. E, agora, podemos acrescentar que ele mesmo, João Paulo II, concedeu ao Santuário de Nossa Senhora do Sameiro a especial honraria da Rosa de Ouro, dom simbólico, sinal de estima e particular benevolência.
A Providência Divina nos reuniu hoje neste Santuário Mariano do Sameiro. Somos os continuadores de tantos outros no fortalecimento da Fé cristã em um momento difícil e conturbado que atravessa o mundo e atinge a obra de Cristo. E nesta “Terra de Santa Maria”, aqui bem próximo, a Mãe de Jesus construiu Fátima uma fortaleza inexpugnável na luta da Igreja de seu Filho contra os poderes do Mal. Na Carta Autógrafa do Santo Padre dirigida ao Arcebispo de Aparecida e transmitida por muitas emissoras de televisão e rádio para todo o Brasil, dá as seguintes directrizes: No plano religioso que toca mais de perto a vós, venerados Bispos, é importante o compromisso de assumir com verdadeiro espírito pastoral a imemorial devoção Mariana de vosso povo; procurar compreendê-la, em seu enraizamento mais profundo, desvendar seus valores, captar seu significado, acolhê-la, purificando-a e orientando-a. Muito depende da atitude dos Pastores e agentes de pastoral que essa devoção seja para o povo um caminho para o encontro, na fé, com Deus em Jesus Cristo. Ajudem pois os fiéis a viverem sua devoção mariana como um claro e corajoso testemunho de amor a Cristo, manifestem a identidade pessoal e comunitária dos católicos contra o perigo do secularismo e do consumismo, e ao mesmo tempo favoreçam nas famílias a prática das virtudes cristãs. De igual modo, esta devoção ajudará a consolidar os vínculos de comunhão com os Pastores da Igreja de Cristo, enfrentando a desagregação da fé, fomentada, tantas vezes, pelo proselitismo das seitas. A história ensina que Maria é a verdadeira salvaguarda da fé; em cada crise, a Igreja reúne-se à volta dEla. Só assim, os discípulos do Senhor poderão ser para os outros sal da terra a luz do mundo” (cf. Mt. 5, 13-14). Hoje, como Enviado Especial do Santo Padre, repito aqui em Portugal o que ele ensinou para todo o Brasil.
A 8 de Dezembro de 1854, o Bem-aventurado Pio IX definiu o dogma da Imaculada Conceição. Em decorrência da decisão tomada na 156ª Assembleia Plenária da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP) aqui, neste Santuário, é celebrado o sesquicentenário da definição desse Dogma. A mensagem de fé, neste dia, está toda centrada no mistério de Jesus Cristo. O Deus Filho assumiu o ser histórico da criatura. Ao definir a Imaculada Conceição de Maria, o Santo Padre Pio IX diz, a respeito de todos os seus incomparáveis privilégios, que a beleza de Maria, inclusive a preservação da mancha do pecado original, lhe foi concedida única e exclusivamente “em vista dos méritos de Jesus Cristo, Salvador do género humano” (DS 2803). Queremos hoje, com ênfase repetir que “os resplendores de santidade perfeitíssima (…) e seu pleno triunfo sobre a antiga serpente” (DS 2801) são em Maria, no plano da divina Encarnação, fruto unicamente da obra de Jesus. Por isso, quem ama a Virgem Maria, venera esse fruto da onipotência de Jesus Salvador, adora o plano misericordioso e inefável do Deus Trino.
Ao exaltar a obra do Senhor Onipotente em Maria, devemos olhar para a própria Virgem Mãe, pois Ele não quis operar a salvação sem a colaboração do ser humano. E o Papa, antes de definir o dogma da Imaculada, assim nos ensinou: “A ela Deus Pai de tal modo dispôs dar seu Filho Único, para que, em razão de suas duas naturezas, fosse o único Filho comum de Deus pai e da Virgem” (Enchirídion Symbolorum et Declarationum, 2081). Deus quis nascer pelo “sim” amoroso de Maria, tornar-se seu Filho, Aquele que é eternamente Filho só do Pai do Céu.
Assim, tudo o que Maria é, ela o é pelos méritos de Cristo, mas o ser de Jesus, Filho de Deus e Salvador do mundo, não quis que o tivéssemos senão pelo “sim” generoso da Virgem Mãe, mulher predestinada e preservada de toda mancha.
Os teólogos conseguem formular, como que balbuciando, o mistério de Deus, e o povo fiel decifra a seu modo, numa santa intuição, a beleza de Maria. É o carinho de Deus pelos pequenos e simples, o que não dispensa o papel dos eruditos. O povo peregrino, vindo a este Santuário, tem sua inteligência iluminada pela fé em sincera comunhão com a doutrina da Igreja e tem seu amor esclarecido pela santidade de tantos Mestres que intuíram os insondáveis mistérios do amor de Deus que, na Virgem Mãe, fez seu Filho igual a nós, exceto no pecado.
Escreveu o Santo Padre, em sua carta autógrafa a mim dirigida, que o Senhor Arcebispo de Braga, D. Jorge Ferreira da Costa Ortiga, pediu a presença de um “enviado por nós para tão ilustre ocasião, Nossa pessoa que representasse e o Nosso pensamento transmitisse”. Acrescentou: “exortarás o povo presente para que, no amor e na veneração à Imaculada Mãe de Deus procure igualar-se a seus ancestrais, cuja piedade o Santuário do monte Sameiro é exatamente a mais lúcida manifestação. Que o povo português siga firmemente o caminho de seus antepassados e saúde a Virgem cheia de graça e beleza, de todo isenta de qualquer mancha, como sua Senhora, Mãe amantíssima”.
Para que o Sucessor de Pedro seja atendido, faz-se mister assumir atitudes concretas que brotem da fidelidade a Deus e sua Igreja, a seu ensino, suas prescrições. Na obediência ampla ao Magistério eclesiástico está incluído, em plenitude, o petrino. Essa obediência se faz mais importante nas pequenas coisas do que nas grandes que, por seu vulto, nos ajudam a observá-la. Por isso, eu vos exorto a uma lealdade no cumprimento dos pequenos deveres que, naturalmente nos garantirá a mesma fidelidade aos deveres maiores.
Essa atitude de homenagem a Jesus e a Maria é manifestada por uma irrestrita obediência ao magistério petrino. Para isso, faz-se mister viver, em toda a sua extensão, a nossa Fé. Somente ela nos orientará na liturgia, no serviço ao nosso povo, evitando o perigo de tornarmo-nos ridículos, substituindo a sabedoria da Igreja por nossa subjetividade, não raro ideológica.
Nós, cristãos, e em particular nós, Bispos, fomos chamados pela Providência divina a viver em um momento conflituoso no elemento humano da obra de Cristo. Toda crise evolui para uma vitória ou a ampliação de um fracasso. Somente vivendo integral e profundamente a fé, ensinada por Cristo e continuada pela obra que Ele fundou, encontraremos o caminho certo para a solução de nossos problemas.
Esta dupla fidelidade exige de nós, sempre uma nova entrega, sem a qual tudo permaneceria uma bela e abstrata ideia. Aqui se situa, para um cristão, a grande honra de uma indiscutida união à Igreja. Os valores cristãos da família e o respeito à vida desde sua concepção à morte natural são, sem dúvida, a síntese da fidelidade a Deus e às coisas humanas.
Indiscutível e extraordinário é o papel dos Santuários de Fátima e do Sameiro para Portugal e todo o universo. Cabe-me repetir aqui o ensinamento do Santo Padre para o Brasil. Referia-se ao patriotismo: Maria “teve uma pátria, pertenceu a um povo, aos quais amou e pelos quais sofreu; podemos pensar que Ela experimentou essa realidade humana que é patriotismo, conheceu seu sentido mais profundo. Tendo levado consigo estes valores para o Céu, Ela sabe o que pedir junto de Deus melhor do que fizera Éster ao rei Assuero: “Só te peço, o rei, que salves o meu povo” (cf. Ester, 7,3)”.
A devoção Mariana deve levar seus devotos em nossos países, ao compromisso de se darem as mãos uns aos outros, no esforço para que cada Nação se converta naquilo mesmo que Maria quer que seja, uma vez que adotou a humanidade: uma terra onde impere a hospitalidade, a cordialidade, a capacidade de dialogar, de “compor”, mais do que de “opor”.
O que nos reúne aqui, para esta solenidade, foi exposto por São Paulo, escrevendo aos Efésios (1, 3-6.11.12) nos albores do cristianismo: “Do alto do céu Deus nos abençoa com toda a bênção espiritual em Cristo, escolhendo-nos nEle, antes da criação do mundo, para sermos santos e irrepreensíveis diante de seus olhos (…) nele é que fomos escolhidos e predestinados, segundo o desígnio daquele que tudo realiza (…) para servir à celebração de sua glória”. Uma das propostas mais insistentemente ensinadas pelo atual Pontífice na passagem no novo milénio até nossos dias, é a busca da santidade de vida por parte dos eclesiásticos e dos fiéis. Sob ângulos os mais diversos e oportunidades diferentes, vem a ideia de ser um dever do católico buscar com afinco, viver santamente. Aí se encontra a solução dos problemas que afligem a Igreja e a Humanidade. A devoção Mariana, alimentada pelos seus santuários é uma das chaves para obter êxito nesse objetivo.
A leitura feita do Génesis (3,9-15.20) leva-nos às raízes dos males, o pecado. E, ao mesmo tempo, faz nascer a esperança. Celebramos, neste Santuário, quem foi escolhido por Deus para nos dar o Redentor: Jesus, Filho de Maria: “Eis que conceberás e darás à luz um filho e lhe porás o nome de Jesus” (Lc. 1, 26-38).
Somos testemunhas qualificadas de maravilhas operadas pela graça divina nos peregrinos que aqui têm ocorrido. E, ao mesmo tempo, esta solenidade nos propõe – e a todo o Portugal – viver intensamente e em toda a sua plenitude o ensinamento da Igreja de Cristo. Aí está a garantia de um presente e de uma eternidade feliz. A devoção a Maria é a segurança de um vida cristã autêntica. Conservemos, em nosso interior, a frase de Pio XII: “Feliz o povo cujo Senhor é Deus, cuja Rainha é a Mãe de Deus”. Assim seja.
Cardeal D. Eugénio de Araújo Sales
Arcebispo Emérito do Rio de Janeiro
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