Arquidiocese de Braga -

17 julho 2005

Padres para os Novos Tempos

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D. Jorge Ferreira da Costa Ortiga

\nO dia das Ordenações sacerdotais deveria ser considerado por toda a Arquidiocese como o Dia Diocesano por excelência. Como Igreja congregamo-nos para exultar pela maravilha de Deus que quer continuar a peregrinar connosco e situamo-nos no contexto dum Programa Pastoral que necessita de intérpretes para a sua concretização. Peço a Jesus Eucaristia que me ajude a semear, colocando a Boa Nova anunciada não só na inquietação duma cultura vocacional mas sobretudo na adesão inequívoca a uma responsabilidade que Deus confia a todos. Deste alto do Monte Sameiro e diante da Mãe dos Sacerdotes quero tecer algumas considerações sobre as vocações para que entrem no quotidiano de toda a pastoral. Podemos compreender a vocação em três perspectivas diferentes. Há quem a entenda unicamente como chamamento de Deus, ao qual o homem não tem outra hipótese senão dar-lhe o seu assentimento sintonizando com a Sua vontade. Outros concebem-na como auto-realização do ser humano segundo as aspirações e apelos que emergem do seu próprio ser. A estas duas concepções, que considero redutivas pois colocam o acento ou do lado de Deus ou do lado do homem, acrescento uma terceira que concilia o divino e o humano, o transcendente e o imanente num conjunto de relações entre Deus e o homem que acontecem desde o nascimento através dum crescer da vocação humano-cristão que se especifica em manifestações diferenciadas. A vocação é isto mesmo. É uma aventura onde a iniciativa de Deus emerge, e torna-a muito mais do que uma missão ou empenho a assumir. Pensar a vocação doutra maneira é trair o evangelho que reconhecemos como alegre anúncio dum acontecimento de graça. Deus é dom e o doador por Excelência. É o único que dá sem se empobrecer, numa doação totalmente desinteressada. Mesmo quando o dom contém um chamamento, quando parece que Ele está a solicitar uma contrapartida, quando o dom se torna aliança que compromete reciprocamente, Deus não pede e não pode pedir outra coisa que uma abertura ao Seu dom que se concretiza em dons variadíssimos. Da parte do ser humano, só lhe resta acolher e viver os dons que Ele reparte. Trata-se da “auto-comunicação” de Deus que faz com que o ser humano, acolhendo-o, seja verdadeiramente humano. Deus não é algo de supérfluo ou acessório; é algo de muito íntimo e constitutivo. Daí que a única atitude humana está em acolhe-Lo como Ele é, numa aventura de intimidade carregada da particularidade de cada um. A vocação não pode ser imaginada como uma “fabricação” em série, mas é algo de muito singular, original e irrepetível no característico “único” de cada um que acolhe o dom. A vocação acontece quando comprometemos tudo quanto constitui a nossa singularidade. (Como voz de Deus atinge o homem na sua história concreta). Os santos não são feitos em série através duma imitação dum modelo pré-fabricado mas surgem como acolhimento criativo dum mistério que os envolve. Isto acontece através dum processo gradual, lento e progressivo que compromete a vida toda. O projecto do dom de Deus acolhido vai-se revelando, sempre duma maneira nova e mais exigente. Se Cristo se doa, a Igreja é a “memória viva” de Cristo, o prolongamento da Sua missão salvífica no tempo. Ela é o “instrumento” através do qual os homens recebem os dons ou os frutos da salvação. É o “lugar” onde Deus se manifesta aos homens, lhes fala, se doa. Ela é a “comunidade” onde nascem, crescem e atingem a sua maturidade, as vocações. Deus poderia comunicar-se duma maneira directa; ordinariamente serve-se da Igreja como mediadora. Dom gratuito de Deus, oferecido ao homem que é movido pelo Espírito Santo para o acolher, o evento vocacional está confiado aos cuidados da comunidade eclesial. A Igreja pede-o com as suas orações, prepara o terreno para que os frutos sejam abundantes, assume-o, promove-o, esclarece as suas diversificações, faz o discernimento, ratifica e leva-a ao pleno amadurecimento. Se o acolher o dom é o que há de mais pessoal, nenhum crente pode viver a sua vocação como um facto meramente pessoal. Estaríamos a desvirtuar a vocação cristã quando a afastamos da Igreja. O dom, transformado em chamamento, está para além, como referimos, duma simples aliança destinada a exercer-se num circuito relacional fechado entre Deus e o homem. A “auto-comunicação” de Deus é para levar à realização de encargos que ultrapassam o querer e os horizontes humanos. Acontecendo na Igreja torna-se projecto ou sacramento universal da salvação de Cristo revestindo-se dum carácter imprevisível, acolhendo muitas vezes o homem de surpresa, tirando-o do seu ambiente e dos seus gostos e ocupações ordinárias, pedindo-lhe que abandone tudo quanto é seu e se coloque a caminho atingindo metas desconhecidas e através duma confiança na ajuda e nas promessas de Deus. O enviado não é diferente daquele que o envia (Jo.13-16). Não pode esperar ser tratado duma maneira diferente (Mt. 10, 24). São enviados como “ovelhas no meio de lobos” (Mt. 10, 22), “entregar-vos-ão aos tribunais e flagelar-vos-ão nas sinagogas” (Mt. 10, 17), “chegará a hora em que quem vos matar acreditará de prestar culto a Deus” (Jo. 16, 2). Quando nos abrimos ao dom do chamamento divino e nos deixamos envolver no seu dinamismo, percebemos que a adesão ao projecto de Deus ajuda a ser melhor e a fazer melhor. A santidade passa pelo ministério e permite que a adesão não se resolva num sim dado uma vez por todas, mas inaugura com Deus um diálogo que se vai aperfeiçoando durante a vida. Dom gratuito de Deus, acolhe-se com a alegria de quem recebe e com a satisfação interior de o fazer frutificar. No dom está Deus que se dá no Seu amor. A vida em vocação é dádiva incondicional em favor dum povo. Ninguém é dono, é servo por amor e nunca alicerça a sua vida noutros critérios. Valerá a pena ser sacerdote hoje por outras razões? Ainda estamos iludidos com as recompensas humanas? Recordemos que quis situar o núcleo deste Ano Vocacional não no prestígio, na fama, nos bens materiais, nos apoios humanos. Com João Paulo II pretendi que a comunidade diocesana entrasse no Jardim das Oliveiras para experimentar a agonia dum Cristo sofredor e acreditar que Ele está permanentemente a sussurrar: “Levanta-te. Vai dar a vida pelo povo que amas”. São palavras duras e difíceis que não queremos aceitar? A vocação é liberdade. “Também vós vos quereis ir embora?” Este dom acolhido é assim exigência para dar a vida por um povo que nós não escolhemos e um povo que tem um rosto na Diocese onde se encontra a Igreja “una, santa, católica”. Não temos uma paróquia ou três. Temos a diocese onde sentimos de estruturar serviços para bem de todos. Isto supõe uma mudança de critérios e de mentalidade nos sacerdotes e no povo. Convençamo-nos, todos, que não é possível continuar com esquemas alicerçados num bairrismo sem sentido e impossível de satisfazer. Urge ser padre-servo dum modo diferente. O tempo da cristandade passou e entramos num dinamismo de missionação para percorrer a época da pós-modernidade com um estilo novo. Trata-se de delinear contornos novos com ajudas por parte dos sacerdotes e dos leigos. Ninguém se pode apegar a ideias e conceitos. Criamos muitas paróquias e edificamos muitas igrejas paroquiais. Agora não as vamos suprimir. Vamos preparar leigos que assumam tarefas para que os sacerdotes possam trabalhar para espaços maiores, aglutinadores de várias comunidades naquilo a que hoje chamamos Unidades Pastorais. De quem depende a constituição destas unidades? Com este nome ou com outro não vejo outro futuro. É uma persuasão sincera. Apareçam sacerdotes, unidos através dum conhecimento mútuo e duma espiritualidade séria, que apresentem propostas credíveis. Se começarmos, os cépticos - sacerdotes ou leigos - começaram a acreditar e não só a desanimar, criticando as nossas intenções ou orientações. O dom acolhido tem uma resposta de sentido único: a entrega da vida com todas as energias. A vocação exige consagração que, no caso dos sacerdotes, apelidamos de “especial”. Precisamos, por isso, de concentrar todas as qualidades e dons nos interesses do Reino de Deus. Ao assumirmos o dom deixamos de nos “pertencer”. Somos despossuídos para poder dar com encanto e alegria. Não é um mero profissionalismo que nos realiza nem muito menos uma vida dispersa em muitas coisas e sem a mínima organização. Perdemo-nos, por vezes, em coisas que não pertencem ao estatuto dum consagrado e que nos dispersam e cansam. Não sei se sou ousado ao afirmar que as coisas do Reino são renegadas para um plano secundário no meio das nossas ocupações. Acontecem sem alma e alegria. O dom deve ser permanentemente reavivado e deveremos mostrar que é Ele que nos encanta. Não será esta a diferença que os tempos da pós-modernidade esperam de nós? Que precisará o mundo? De homens iguais a todos, subjugados aos critérios da chamada modernidade ou orientados para um mundo diferente? A oração da dedicação duma Igreja diz que esta é “santificada pelo sangue de Cristo”. Poderemos parafrasear afirmando ousadamente que o mistério da Igreja se edifica através da entrega sacrificial dos sacerdotes. Esta espiritualidade do dar a vida pela Igreja é a certeza de comunidades segundo o coração de Deus. Só que este “dar a vida” também tem de passar pelos fiéis que terão de se habituar ao sacrifício para a vivência das graças sacramentais. Os sacerdotes devem dar a vida pelas suas ovelhas mas isto não é sinónimo de matar-se em corridas para satisfazer vontades ou caprichos de pequenos grupos. Todos os fiéis têm o direito às graças, mas há modos de celebrar a fé. Também aqui há hábitos que terão de mudar. Torna-se impossível continuar com o ritmo dominical de Sacerdotes a correr para satisfazer as vontades. Todos têm o direito de ser servidos. O modo terá de ser diferente, na certeza de que a fé vai exigir sacrifícios. Sintetizando, quero deixar dez apontamentos para a reflexão: 1 – A vocação não é mero chamamento para uma auto-realização. É dom de Deus. 2 – O dom tem de ser acolhido como é e em atitude contemplativo e de profunda interioridade. 3 – Tudo acontece como diálogo permanente, íntimo, constitutivo, singular. Nada de “fabricação” em série. 4 – A Igreja é o local onde Deus manifesta os Seus dons. Ela existe para isto. A nossa tarefa significa entrega para que a Igreja seja “auto-comunicação” de Deus e dos Seus dons. 5 – Foi sempre exigente. “Chegará a hora em que quem vos matar, acreditará de prestar culto a Deus”. Hoje, a vocação é desafio corajoso. 6 – A vocação é vida em favor dum povo. No Ano Vocacional quis pedir aos consagrados que entrassem no Jardim das Oliveiras com Cristo. “Levanta-te. Vai dar a vida pelo Meu povo”. 7 – O povo tem o rosto da Diocese. Aí está a Igreja “Una, Santa, Católica. Não somos pastores duma parcela ou mais. Existimos se somos Igreja particular. 8 – Morrer pelo Povo exige que este também participe no Sacerdócio de Cristo. Algo tem de mudar em toda a pastoral e, particularmente, na vivência do Dia da Ressurreição. Nem todas as comunidades poderão ter eucaristia e ver os sacerdotes a correr, esgotando-se para manter costumes, não é comportamento para hoje. 9 – A novidade para dar a vida pelo povo está a reclamar as Unidades Pastorais, num serviço mais articulado e menos egoísta, para não ver o padre como “nosso” que só aceita actividades na “nossa” paróquia. Acredito que os nossos Sacerdotes irão criar experiências novas para, posteriormente, elaborarmos um Regulamento. 10 – A vocação como dom para gastar a vida pelo povo compete, em primeiro lugar, ao Bispo. Quero estar na primeira fila e sentir-me estimulado por Sacerdotes, comunidades, instituições para ser este Sinal eloquente de quem se gasta por Deus. O timoneiro não dispensa a barca e esta condiciona o andamento. Sejamos alegres anunciadores desta alternativa ao mundo do egoísmo. Só unidos estaremos à altura da hora que passa. x x x Há dias, o Cón. João Aguiar, na tomada de posse da Rádio Renascença, suscitou em mim um sentimento de saudade ao evocar um princípio norteador do grupo de jovens dos Congregados. “Contigo exige o máximo, com os outros exige o possível. Isto levava os jovens a cantar: “Se mil vidas eu tivesse, mil vidas daria a Ti”. Era um projecto. Para o alcançar, surgia outra canção: “Um bocadinho mais”. Quero ser exigente comigo dando o máximo. Peço aos Sacerdotes e cristãos – um “bocadinho mais” de intimidade com Deus, de vivência litúrgica, de fidelidade aos deveres e compromissos, de comunhão eclesial, de paixão pela vida diocesana. …Este “bocadinho mais” de cada um e em tudo, será alento para que me contente com o verdadeiramente “possível” de todos e eu dê o máximo a todos e em todos os momentos. Sameiro, 17 de Julho de 2005 + Jorge Ferreira da Costa Ortiga, Arcebispo Primaz