Arquidiocese de Braga -
1 janeiro 2006
Dia Mundial da Paz – Homilia da celebração na Sé Catedral
D. Jorge Ferreira da Costa Ortiga
\n«Na verdade, a paz»
Rodeados por um ambiente que convida à evasão, o crente deveria ousar ter tempo para perspectivar objectivos quando um novo ano lhe bate à porta. Como Dia Mundial da Paz, a mensagem do Santo Padre pode e deve tornar-se suporte de propósitos capazes de motivar, no dia a dia, para um protagonismo na cultura da paz. Quero, por isso, sublinhar algumas ideias a partir daquilo que o Papa Bento XVI nos sugere.
«Na verdade, a paz» é um itinerário programático que deveremos assumir. Não pretendo, porém, situar-me no mundo dos conflitos nucleares, dos fundamentalismos radicais, das guerras fratricidas, dos confrontos étnicos, do terrorismo devastador.
Sonhamos com a paz. Como a alcançaremos?
1 - Experimentaremos o seu esplendor quando manifestarmos verdade nas palavras e nas atitudes. A mentira prolifera e penetra em todos os âmbitos da vida. Parece que tudo é igual e que para singrar vive-se com disfarces e sintomas dum ocultismo que pretende enganar para conseguir o que se pretende. Passamos muito tempo a engendrar respostas ou a imaginar soluções partindo de pressupostos de engano. Mente-se no ambiente familiar, engana-se nos negócios, promete-se na política sem dar consistência aos programas, disfarçamos nos impostos com atitudes de verdadeira fraude fiscal, apresentamo-nos com espírito de superioridade não condizente com as nossas capacidades, iludimo-nos afirmando que «todos fazem assim», atingindo comportamentos de que deveríamos ter vergonha. É um mundo de engano que gera, mais tarde ou mais cedo, intranquilidade, agitação, rumores, depressões, numa palavra, ausência de paz interior, tudo sintoma duma vida de infelicidade.
Não teremos de mudar para experimentar a paz que perseguimos e o bem-estar pessoal que almejamos?
Sempre neste âmbito da verdade pessoal, fixo-me, a título de exemplo, no que acontece no sistema judicial. Outrora a verdade era honra; hoje combinam-se estratégias e, como consequência, o mais forte impõe o que lhe convém. Como poderão viver tranquilos aquelas e aqueles que se vendem sem o mínimo de escrúpulos?
Passando deste âmbito pessoal para o relacionamento das instituições deparamos com um clima de falsidade e hipocrisia que choca com o mínimo duma coerência elementar. Pretende-se a consolidação dos interesses da nossa bandeira ou da nossa cor e até a justiça se descredibiliza porque o engano impõe-se através das habilidades e artimanhas de alguns.
Quando as pessoas e instituições interagem num ritmo de complementariedade, o bem comum oferece proveitos a todos. Daí que só da verdade nascerá a paz - pessoal, familiar, nacional e internacional e ninguém se dever furtar a dar o seu contributo para que o «evangelho da paz» cresça através da vivência da «verdade da paz».
2 - Qual será a causa destes comportamentos pautados pela falta de sinceridade pessoal e institucional?
Diz o Santo Padre: «A história demonstrou amplamente que, fazer guerra a Deus para extirpá-lo do coração dos homens, leva a humanidade, assustada e empobrecida, para decisões que não tem futuro». Não podemos aceitar a guerra a Deus. Mas, em simultâneo, os crentes deveriam sentir-se proibidos de declarar guerra àqueles que pretendem afastar Deus do coração da humanidade. A guerra gera a guerra e só a verdade sobre Deus é capaz de criar condições de paz, o que impõe uma redescoberta de Deus ou uma purificação da imagem deturpada que caracteriza o nosso pensar. Ele é um «Pai amoroso que deseja ver os seus filhos reconhecerem-se mutuamente como irmãos, procurando responsavelmente pôr os seus vários talentos ao serviço do bem comum da família humana». Só aqui reside a verdade plena de Deus e, ao mesmo tempo, do homem. Deus-Pai e o homem-irmão com uma vida-dom de Deus e, por isso, a ser interpretada como dom para os outros.
Como consequência, querendo a paz, os crentes assumem ser testemunhas deste Deus que, permanentemente, nos revelará a verdade e o amor como caminhos únicos e imprescindíveis para a paz. O mundo continuará em guerra, desde o âmbito familiar até aos conflitos mundiais, se não entendermos que só Deus a constrói. «Deus é parte inesgotável da esperança que dá sentido à vida pessoal e colectiva. Deus, e só Ele, torna eficaz qualquer obra de bem e de paz». Nunca poderemos ter medo d’Ele e a sociedade moderna terá de inverter as suas orientações teóricas e práticas. Pretender «fazer guerra a Deus», num trabalho organizado para o afastar do mundo moderno, impedindo uma relação amorosa com Ele ou destruindo e afastando os sinais que o recordam ou testemunham a fé cultural dum povo, é sinónimo de semear conflitos conducentes à destruição da humanidade. Deus permanecerá: Só o homem e a natureza desaparecerão.
Este Deus verdade e esta verdade sobre Deus conduz-nos à interioridade da Sua essência como família – Pai, Filho e Espírito Santo – e solicita uma vida humana em família pois Ele criou-os «homem e mulher» e viu que a vida entre eles era boa. A verdade de Deus responsabiliza-nos pela verdadeira identidade da família. Confundem-se, actualmente, os modelos de família e pretende-se apelidar com este nome realidades e experiências que teremos de situar noutros âmbitos. Só com famílias, expressão do amor trinitário, encontraremos o caminho para a paz. Também aqui – no dinamismo interno da família – vagueia muita mentira e engano. Com facilidade se cai no engodo de enveredar por verdades que nunca coincidem com a verdade familiar. Neste Santuário está a defesa da causa da paz. Sem verdade transparente entre os esposos – e quanta mentira, meu Deus - entre os namorados, entre pais e filhos, torna-se impossível experimentar a paz dinâmica como causa duma felicidade imperecível. Esta exigência vivida por várias famílias, por muitas famílias, proporcionará paz nas comunidades, nas instituições, nos concelhos, no país, no mundo. A verdade na família é mancha de azeite que penetra num tecido, capilarmente, e envolve todos os povos na concórdia que o amor oferece.
Iniciamos um novo ano formulando muitos votos. Mais do que votos para os outros, peço a Santa Maria Mãe de Deus que nos ajude a ser verdadeiros, sempre e em toda a parte mas particularmente na família, e que nos empenhe na necessidade interior de penetrar na verdade de Deus. Conhecê-Lo em profundidade e ultrapassar imagens deturpadas é o caminho seguro duma paz plena.
Sé Catedral, 01-01-06
+ Jorge Ortiga, A. P.
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