Arquidiocese de Braga -
13 novembro 2006
Comunhão Episcopal para missão eclesial renovada
D. Jorge Ferreira da Costa Ortiga
\n A Assembleia Plenária da C.E.P. é sempre motivo de alegria pela beleza do encontro fraterno e pelo recentralizar-se em Cristo vivo pois “onde dois ou três estão reunidos no Meu nome Eu estou no meio deles” (Mt. 18, 20). Desta experiência de contemporaneidade com Cristo presenciamos o essencial da Igreja: “Onde dois ou tês estão reunidos no Meu nome aí está a Igreja” (Orígenes). Ser Igreja pela presença de Cristo une-nos, colegialmente, a Sua Santidade o Papa Bento XVI, suscita na comunhão dos Santos atitudes de sufrágio por D. Américo Henriques, regressado ao seio do Pai, intensifica a solidariedade e gratidão eclesial com D. Serafim de Sousa Ferreira e Silva e D. António Baltasar Marcelino pelo trabalho realizado, com a certeza de que continuarão connosco operantes em benefício do Povo de Deus, e gera sentimentos de sinodalidade com D. António Augusto dos Santos Marto, D. Ilídio Pinto Leandro e D. António Francisco dos Santos nos seus novos encargos pastorais. A D. Armindo Lopes Coelho asseguramos as nossas preces para uma recuperação da saúde que lhe permita continuar connosco na edificação do Reino.
O suceder-se das Assembleias Plenárias deveria ser sinónimo dum crescimento na comunhão, que é visibilização de Deus e anúncio da nova humanidade. A comunhão entre as nossas dioceses deve ser um itinerário para a articulação harmónica de projectos que inspirem, em consciência responsável, as nossas opções quotidianas. Na variedade de contextos sociológicos e religiosos assumimos a sinodalidade não apenas como um discurso eclesiológico mas como um novo modo de agir e de viver. Somos comunhão plural e, por isso, renunciamos ao individualismo para sublinhar que o anúncio de Deus passa pela acção concorde e harmoniosa.
1 – A diferença cristã perante a laicidade
No itinerário da comunhão, queremos descobrir sendas novas para a transmissão da fé recebida. Sabemo-nos envolvidos num contexto de laicidade que gostaríamos que fosse, nas palavras de João Paulo II, uma “laicidade justa”, ou seja, alicerçada na distinção entre as comunidades de crentes e o Estado, o que não implica “ignorância” ou desprezo do que somos ou significamos para o mundo. Se sentimos uma “laicidade aconfessional” ou, melhor “anti-confessional”, não nos podemos atemorizar; devemos sim, permanecer fiéis à nossa identidade. É isso que o presente e o futuro espera de nós.
A “laicidade justa” dá-nos a possibilidade de marcar a nossa presença e expressar o nosso pensamento numa sociedade onde pululam as propostas e os confrontos doutrinais. Aí manifestamos a coragem de ser diferentes, sem presunção ou vanglória: só a vida, permeada da mensagem evangélica, fará que o Deus verdadeiro seja acolhido e anunciado deixando marcas na fisionomia da cultura contemporânea.
[É certo que, o tempo em que se confundiam a Igreja e as instituições políticas e sociais, já passou. Sabemos que nos confrontamos com realidades distintas mas nunca nos podemos resignar face a atitudes de recusa, intolerância ou mesmo rejeição total. Estamos abertos a um diálogo estruturado sem abdicar da nossa história.]
Não estamos do lado do medo ou da imobilidade resignada. Estamos apostados na edificação duma sociedade mais justa através da força criativa que nasce da obediência fiel ao Evangelho. Deus não se pode tornar numa das opiniões controversas limitadas ao foro privado ou íntimo de cada indivíduo.
2 – Transmitir a fé como escuta e interpelação à cultura
Quando falamos em transmissão da fé, deveremos ter em conta que não se trata, simplesmente, da passagem de testemunho, no interior da comunidade eclesial. Transmitir a fé exige a inserção do Evangelho em todos os âmbitos da sociedade onde vivem os cristãos, pois a salvação cristã possui dimensão universal.
A universalidade da evangelização implica saber escutar a cultura envolvente, na variedade dos seus sentidos e das suas percepções. Reclama por outro lado, não em menor grau, a coragem de interpelar profeticamente essa cultura.
No actual contexto de pluralismo cultural e religioso [- em que proliferam as visões do mundo e do ser humano, de modo complexo ou mesmo confuso, como ofertas atractivas no mercado dos sentidos –] a fidelidade à transmissão da fé exige tomadas de posição publicamente audíveis. A escuta e o respeito pela diferença dos outros exige que sejamos verdadeiros e saibamos expor, de forma clara, a visão do homem e do mundo que nos é constantemente proposta pela pessoa de Jesus Cristo.
Seja na defesa dos mais débeis, promovendo a vida e a sua dignidade em todas as circunstâncias; seja na defesa da paz frente à violência, mesmo ou sobretudo frente à violência em nome de Deus; seja na denúncia dos mais subtis atentados contra a dignidade humana, que uma sociedade de bem-estar não se cansa de levar a efeito; seja na defesa da liberdade de exprimir publicamente as próprias convicções, desde que respeitosas da dignidade dos outros – a cultura hodierna, algo perdida ou confusa, exige palavras claras, ainda que humildes porque conscientes de não sermos donos absolutos da verdade.
Acolher a fé para interpelar a cultura pode expressar-se na súplica de S. Paulo a Timóteo: “Prega a Palavra, insiste oportuna e inoportunamente, convence, repreende, exorta com toda a compreensão e competência” (2 Tim. 4,1), a que Santo Agostinho deu uma interpretação paradigmática para os dias de hoje. “Oportunamente para quem? Inoportunamente para quem? Oportunamente para quem quer ouvir, inoportunamente para quem não quer ouvir” (Sermão 46).
[Recordamos Nietzsche descrevendo o homem moderno que, em manhã luminosa, percorria o mercado gritando incessantemente: “Procuro Deus! Procuro Deus!” Parece anacrónico procurar seja o que for com uma candeia em plena luz da manhã. Pode ser retrato da humanidade quando, iluminada pela razão, pela ciência, poderes humanos… necessita de reacender uma luz. É a missão da Igreja: escutar e apoiar esta procura.]
Nunca poderemos renunciar ao imperativo do anúncio da Boa Nova, fazendo-o, sempre e só, numa atitude de diálogo. [“A Igreja entra em diálogo com o mundo em que vive, a Igreja faz-se palavra, a Igreja faz-se mensagem, a Igreja faz-se conversa” (Paulo VI, Ecl. Suam 76) para “alimentar um diálogo sincero e aberto com todos, para que conjuntamente se construa uma humanidade mais fraterna e solidária” (Bento XVI – 25/09/2006).] Alguns poderão não querer ouvir ou apostar mesmo em silenciar a nossa voz. Porque não somos objectivo em nós próprios e não nos procuramos a nós mesmos, sabemos que o nosso silêncio atraiçoaria a felicidade da humanidade.
[Empenhamo-nos para que a fé seja conscientemente missionária não só no âmbito eclesial mas, hoje, dum modo mais evidente, nas várias situações e fronteiras da vida. O cristão de amanhã é alguém capaz de afirmar a própria identidade e de evangelizar não numa atitude de ruptura/ alternativa ao mundo mas de absoluta conjugação. É tentador viver em alternativa, lado a lado contrapondo-se. A afirmação da nossa identidade nem sempre passa pela contraposição. Acontece sempre na incarnação: o divino dentro do humano, não acima ou contra este. A vida cristã é história escrita no quotidiano.]
3 – Missão eclesial em favor da globalidade da vida
A Igreja, discípula de Cristo que veio ao encontro dos homens para que tenham vida e a tenham em abundância (cf. Jo 10,10), sempre interpretou a sua missão como serviço à vida. Não se contentou nem se pode contentar com períodos de campanha. Toda a sua actividade se orienta para a defesa e promoção da dignidade da pessoa humana com direitos invioláveis entre os quais a vida ocupa o primeiro lugar como condicionante e alicerce de todos os outros. A pastoral eclesial é uma proposta evangelizadora do dom da vida, uma celebração que marca as diferentes etapas da vida humana com os Sacramentos e uma intervenção social que busca respostas para as situações de vida marcadas pela ausência dos direitos fundamentais. Omitir este Evangelho da vida significa renunciar ao essencial da missão e trair aqueles e aquelas que são a nossa razão de existir.
A Igreja foi e será sempre “profeta” da vida oferecendo, em permanência, razões para a defender. Hoje, assistimos a múltiplas e crescentes situações preocupantes, indicadoras de uma disseminada «cultura da morte» que atinge indivíduos, grupos e povos: o terrorismo organizado, alimentado por cegos interesses político-económicos ou por exacerbado fanatismo religioso; o tráfico de seres humanos; a exploração sexual de crianças e adolescentes; o aborto; a eutanásia e o suicídio assistido de idosos, de doentes incuráveis e de seres limitados a nível físico ou psíquico; o racismo e a xenofobia, tantas vezes assumidos como opção ideológica; a violência gratuita, multiforme, presente sobretudo nos grandes aglomerados urbanos, geradora de insegurança e de ostracização de determinados grupos étnicos e sociais; as gritantes desigualdades económicas, culturais, sociais e tecnológicas que impedem a tantos o acesso condigno à alimentação e à água potável, aos cuidados de higiene e de saúde, à educação e ao desenvolvimento; a diluição da pessoa no anonimato e na massificação, com o consequente empobrecimento das relações humanas; a frustração, o tédio e o vazio existencial de tantos jovens, ilusoriamente “resolvidos” em paraísos delirantes ou em experiências exóticas e fugidias; a solidão e o abandono de tantos idosos, encarados como “peso” porque já não produtivos.
4 – A vida é dom a acolher e a promover
Se a vida na sua multifacetada identidade nos interpela a sermos promotores duma verdadeira cultura, não podemos ignorar a realidade do aborto, assumida como questão fundamental e problema central quase que a distrair-nos de variadíssimas situações existenciais degradantes. É com palavras claras que exprimimos a nossa posição, mesmo que nos situem no espaço dos retrógrados em confronto com outros países: somos inequivocamente pela vida desde a concepção até à morte; simultaneamente, afirmamos o nosso compromisso na resposta a situações que se revestem duma peculiar dramaticidade. Ser “profeta” da vida significa dar voz a realidades que muitos querem ignorar.
A vida enquanto dom recebido torna-se, para o homem, e para a mulher exigência de dom assumido, generosa e responsavelmente, perante si mesmo e perante a humanidade. Quer isto dizer que a vida humana é inseparavelmente dom-tarefa e, como tal, é instância ética privilegiada da auto-realização pessoal, da convivência com todos e da actuação no mundo. [A vida, dom recebido, assumido e feito oblação, é a fonte inspiradora e a norma reguladora da tarefa mais irrecusável que o homem transporta consigo: acolhê-la e colocar-se ao seu serviço.
Como nos ensina a moderna embriologia, a partir da fusão dos gâmetas surge um sujeito humano, autónomo, com identidade bem definida e com um mecanismo intrínseco de desenvolvimento coordenado e contínuo. Estamos perante uma vida humana marcada, certamente, por profunda vulnerabilidade e radical fragilidade. Mas esta marca constitui desafio e exigência de apurado sentido do humano e de renovado compromisso ético que se tornam afirmação efectiva dos seus direitos inalienáveis.] Tal tarefa, compromisso ético, está bem patente em todos os códigos deontológicos, no âmbito da medicina, desde a antiguidade até aos nossos dias, ao prescreverem «o máximo respeito pela vida humana desde o momento da concepção». Por tal razão, reafirmamos, uma vez mais, a malícia intrínseca de todo o aborto provocado, pois constitui gravíssimo atentado à vida humana inocente e indefesa. Carece, pois, de qualquer razoabilidade e sentido falar do “direito a abortar” por parte da mulher-mãe, invocando o direito a dispor arbitrariamente do seu próprio corpo, porque o concebido não é “apêndice” da mãe, mas antes uma realidade humana autónoma e, como tal, inviolável. Da mesma forma, também não se pode reconhecer ao poder constituído, na sua vertente legislativa, competência para liberalizar ou descriminalizar o que, por sua natureza, é crime. Nenhuma lei positiva pode transformar em não-mau ou em bom, o que é mau em si mesmo. Poderá sim, desculpabilizar, total ou parcialmente, os que cometem determinada acção má, atendendo às múltiplas circunstâncias atenuantes concretas. Ao Estado, porque pessoa de bem, compete elaborar uma regulamentação legislativa justa e equilibrada que não silencie, não subalternize, nem subestime os direitos dos mais débeis e indefesos.
Reconhecemos, com humana compreensão e solicitude, os dramas psicológicos, sociais e económicos que tantas vezes se apresentam como “indicações” para o aborto. Tais dramas, contudo, devem constituir ”indicações” para a solidariedade real e efectiva do poder político e da sociedade civil, criando as condições necessárias para que a nova vida seja acolhida e se possa desenvolver. Saudamos, com particular afecto, todos aqueles que já hoje, em diversas instituições, prestam generosamente este valioso serviço à vida e estimulamo-los a prosseguir tão relevante serviço. A solidariedade, feita comunhão, é o rosto mais belo e credível da “cultura da vida”.
5 – O trabalho exigência duma vida digna
Porque “o homem é o caminho da Igreja” (João Paulo II, Redemptor Hominis, nº 14), pretendemos percorrer com ele as suas alegrias e tristezas, as suas vitórias e fracassos, as suas perplexidades e a sua esperança e compromisso (Cf. Gaudium et Sps, nº 1).
Daí que, sempre na atenção profética às condições de vida do povo português e no ano em que comemoramos os 25 anos da publicação da notável encíclica de João Paulo II, Laborem Exercens, “sobre o trabalho humano” no nonagésimo aniversário da Rerum Novarum, será oportuno relembrar os ensinamentos fundamentais aí explanados e procurar entender as principais transformações em curso na sociedade portuguesa. A situação económico social inquieta-nos e o desemprego torna-se causa de situações indignas que muitos teimam em ignorar.
[No momento em que os ganhos de produtividade são pensados e baseados em políticas tendentes à diminuição dos postos de trabalho e dos custos sociais da mão-de-obra; quando a economia global conduz à precarização crescente do vínculo laboral, à flexibilização das formações e das carreiras bem como à institucionalização do desemprego, em particular dos jovens,] teremos de reconhecer e sublinhar que o trabalho humano para todos deve ser a “chave essencial para uma vida humana digna” (L. E. nº 3).
A precariedade do emprego, que atinge um número cada vez maior de trabalhadores e de famílias portuguesas, contraria as aspirações mais profundas das pessoas, sacrifica os seus legítimos direitos na mesa do lucro e da competitividade a qualquer preço. O ideal de um emprego estável e digno para todos, a começar pelos mais jovens, vai-se diluindo na voracidade de uma economia cada vez mais globalizada e hipercompetitiva que, agressivamente, afecta a dignidade da pessoa humana e a estabilidade dos projectos e percursos da família.
[Nas mudanças em curso no mercado de emprego em Portugal é notório o aumento do desemprego com particular relevância para os sectores tradicionais têxteis, agricultura, pescas, etc. O emprego não qualificado tenderá a ser cada vez mais residual. Igualmente os trabalhadores desempregados de baixas qualificações sentem cada vez mais dificuldades em regressar ao mercado de emprego. Falta uma cultura de valorização e de reconversão profissional contínuas e a forma como se implementou a formação profissional pode ter desacreditado a sua importância.
Por outro lado, verifica-se o progressivo aumento da oferta de trabalho qualificado e altamente qualificado. A economia portuguesa, como as demais economias ocidentais, sofre uma mudança profunda que tem a ver com o chamado “processo de desindustrialização”, que a deslocalização de empresas e o fenómeno da globalização vieram intensificar.]
É oportuno interrogarmo-nos até que ponto a economia, organizada à volta da competitividade a qualquer preço, com o resultado de deslocalizações de empresas, de fusões e de concentração de grupos económicos, não lança no desemprego populações e famílias inteiras sem as qualificações necessárias para rapidamente regressarem ao mercado de emprego.
Se o mercado de trabalho está em fase de desindustrialização, de modernização técnica e de requalificação, os responsáveis industriais e políticos, por seu lado, não devem esquecer as inerentes responsabilidades humanas e sociais para com aqueles que são vítimas de tais processos de mudança. A dignidade dos trabalhadores e das suas famílias é um valor que não poderá deixar de ser promovido.
6 – A luz do Evangelho a marcar as realidades terrestres
Com estas observações estou a recordar a doutrina do Concílio Vaticano II. “É necessário tornar acessíveis ao homem todas as coisas de que necessita para levar uma vida verdadeiramente humana: alimento, vestuário, casa, direito de escolher livremente o estado de vida e de constituir família, direito à educação, ao trabalho, à boa fama, ao respeito, à conveniente informação, direito de agir segundo as normas da própria consciência, direito à protecção da sua vida e à justa liberdade mesmo em matéria religiosa” (G.S. 26).
Com este cuidado pela vida toda e de todos, núcleo central da transmissão da fé (tema central desta Assembleia), quero interpelar a Igreja de Portugal para que a fé incida no quotidiano das pessoas. Na verdade, “a Igreja, seguindo a finalidade que lhe é própria, não só comunica ao homem a participação na vida divina, mas também difunde, de certo modo, sobre o mundo inteiro a luz que irradia desta vida divina, principalmente sanando e elevando a dignidade da pessoa humana, consolidando a coesão da sociedade e dando um sentido mais profundo e mais elevado à actividade quotidiana dos homens. Assim a Igreja, por meio de cada um dos seus membros e de toda a sua comunidade, crê que pode contribuir muito para tornar cada vez mais humana a família dos homens e a sua história” (G.S. 40).
Assim Deus ajude todos os cristãos a afirmar a própria identidade e a terem coragem para evangelizar o mundo através da proclamação da beleza de Deus na solicitude, atenta e responsável, pela dignidade da vida desde a concepção até à morte.
Fátima, 13/11/2006.
+ Jorge Ferreira da Costa Ortiga,
Arcebispo Primaz e Presidente da CEP
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