Arquidiocese de Braga -
15 maio 2009
A história social deve continuar a crescer

D. Jorge Ortiga
Em época post-conciliar reconhecemos, com evidência, que a Igreja existe para realizar uma missão no mundo. Conscientes da sua origem na Santíssima Trindade, com uma orientação para a mesma como meta a atingir, empenha-se para ser sinal desta vida e apresenta-se como verdadeiro sacramento na sociedade onde o seu agir acontece.
As diferentes épocas do seu evoluir histórico caracterizaram-se por sublinhar dimensões particulares. Caiu-se numa sectoralização pastoral que nem sempre prestava atenção ao global dum projecto. Hoje sabemos que ela deve crescer como comunhão, sentindo e experimentando as iniciativas que esta sugere. Há uma Boa Nova anunciada, celebrada e construída com este horizonte concreto.
S. Paulo, neste Ano Paulino, deixa idêntica interpelação. Com efeito, na policromia das suas iniciativas pastorais, recorda a chamada “colecta” em favor da Igreja de Jerusalém.
“Quanto à colecta em favor dos irmãos, fazei o mesmo que ordenei às Igrejas da Galácia. No primeiro dia da Semana, cada um coloque de lado aquilo que conseguir economizar; deste modo, não precisareis de esperar que eu chegue para fazer a colecta. Quando eu chegar mandarei uma carta minha àqueles que tiverdes escolhido para levar as ofertas a Jerusalém. Se for conveniente que eu mesmo vá, eles farão a viagem comigo”. (1 Cor 16, 1-4).
Para ele a colecta era algo de natural que produzia a “igualdade” entre todos (2 Cor 8, 14), gerava convicção de que “a quem recolhia muito, nada lhe sobrara e a quem recolhia pouco, nada lhe faltava” (2 Cor 8, 15) e, dum modo particular, deveria ser gerida com cuidado particular, como acto responsável da solidariedade que a provocava. “Tomamos a decisão de evitar qualquer crítica na administração da grande quantia que nos confiaram. De facto, estamos preocupados com o bem, não somente diante dos olhos de Deus, mas também diante dos homens.” (2 Cor 8, 20-21).
Em todos os textos paulinos nota-se que não se trata duma mera “colecta de dinheiro” mas de algo que evidencia comunhão (Koinomia – Rom 15, 26; 2 Cor 8, 4; 4; 9.13; Fl 4, 15), um verdadeiro acontecimento único no cristianismo antigo e na sociedade da época, uma autêntica “graça” (1 Cor. 16, 3; 2 Cor 8, 7) que é “serviço” (Rom 15, 25-31), ou melhor ainda, “a graça servida por nós” (2 Cor 8, 18), como verdadeira “bênção” (2 Cor 9, 5) e autentica “liturgia” (2 Cor 9, 12).
Hoje, são muitos os desequilíbrios económicos e sociais que quotidianamente ameaçam a centralidade da pessoa humana através de processos que geram diferenças abismais e situações indignas do ser humano. Neste contexto “é necessário globalizar a solidariedade” (João Paulo II, Discurso aos Trabalhadores na celebração Eucarística do ano jubilar de 2000), sabendo que esta deriva do “encontro da mensagem evangélica e de suas exigências, resumidas no mandamento supremo do amor, com os problemas que emanam da vida da sociedade” (C.A.S. 7. 160).
Nesta época dominada não só por sinais de crise mas marcada por perplexidades profundas quanto ao futuro, a Igreja não pode desconsiderar este dever de contribuir com a sua reflexão e, particularmente, com uma acção consciente. Iremos participar num simpósio nacional, identificados com o Povo Português e acreditando que a fé deve gerar atitudes de respostas e queremos que a ideia da solidariedade a reinventar nos acompanhe. Estando num contexto de celebração dos 50 anos do Monumento a Cristo-Rei sabemos que a Sua realeza não é deste mundo mas que o Seu “reinado” passa por uma nova “onda” de solidariedade a manifestar e a partir da fé que professamos. O Reinventar pode e deve significar descobrir caminhos novos. Não somos os únicos a intervir. Temos, porém, uma responsabilidade histórica que o imperativo do amor ao próximo não dispensa. Toca-nos, como refere Bento XVI (Deus Caritas est, 31), o dever de despertar e tornar eficaz o que pode estar a ser obscurecido. Fazemo-lo dentro das comunidades cristãs mas para agir em termos de universalidade e “para além das fronteiras da fé cristã”.
O agir cristão tem um perfil que nunca podemos desconsiderar. “É preciso levar (os agentes) àquele encontro com Deus em Cristo que neles suscita amor e abre o seu íntimo ao outro de tal modo que, para eles, o amor do próximo já não seja um mandamento por assim dizer imposto de fora, mas uma consequência resultante da sua fé que se torna operativa pelo amor” (cf Gal 5, 6) (Conf. D. C. E. 31).
Nesta perspectiva, todo e qualquer ser humano tem direito a esperar do cristão e da Igreja algo de concreto mesmo sem discursos sobre Deus. Só que o agente cristão, individual ou institucionalmente, não pode perder esta originalidade que motiva as suas intervenções. Com este sentido o ser humano será melhor atendido e adquirirá a dignidade que factores adversos pretendem roubar ou já o fizeram.
Isto não significa interesses proselitistas. “O amor é gratuito; não é realizado para alcançar outros fins. Isto, porém, não significa que a acção caritativa deva, por assim dizer, deixar Deus e Cristo de lado. Sempre está em jogo o homem todo. Muitas vezes é precisamente a ausência de Deus, a raiz mais profunda do sofrimento. Quem realiza a caridade em nome da Igreja, nunca procurará impor aos outros a fé da Igreja. Sabe que o amor, na sua pureza e gratuidade, é o melhor testemunho do Deus em que acreditamos e pelo qual somos impelidos a amar. O cristão sabe quando é tempo de falar de Deus e quando é justo não o fazer, deixando falar somente o amor. Sabe que Deus é amor (cf, 1 Jo 4, 8) e torna-se presente precisamente nos momentos em que nada mais se fez a não ser amar. Sabe que o vilipêndio do amor é vilipêndio de Deus e dos homens, é a tentativa de prescindir de Deus. Consequentemente, a melhor defesa de Deus e do homem consiste precisamente no amor.
É dever das organizações caritativas da Igreja reforçar de tal modo esta consciência em seus membros, que estes, através do seu agir – como também do seu falar, do seu silêncio, do seu exemplo -, se tornem testemunhos credíveis de Cristo” (D.C.E. 31 – c).
Durante o dia de hoje através do diagnóstico da situação actual, iremos consciencializar-nos da urgência de novas pistas e novas ideias. Importa que a temática da crise não abafe a esperança e para isso, necessitamos de ver para além dos elementos sociológicos, e reconhecer, talvez com ousadia e algum escândalo por parte de alguns, que a raíz da actual situação não é meramente económica.
A ausência dos valores e a pretensão de viver como se Deus não existisse não podem deixar de ser equacionados, para chegar a uma sociedade digna do homem através do exercício da solidariedade, “iluminada pelo primado da caridade”. “Jesus ensina-nos… que a lei fundamental da perfeição humana e, portanto, da transformação do mundo é o novo mandamento do amor” (G.S. 38 e cf Mt 22, 40). O comportamento da pessoa é plenamente humano quando nasce do amor, manifesta o amor e é ordenado para o amor. Esta verdade vale também no âmbito social: é necessário que os cristãos sejam testemunhas profundamente convictas e saibam mostrar, com a sua vida, como o amor á a única força (Cf 1 Cor 12, 31-41) que pode guiar à perfeição pessoal e social e mover a história rumo ao bem” (C.D.S. 580).
Não estará aqui uma resposta carregada de muita actualidade? Pessoalmente, acredito que a fome de Deus, por mais que se disfarce, é a grande questão a que o homem moderno não pode fugir.
Centro de Congressos de Lisboa, 15-05-09
† Jorge Ortiga, Presidente da C.E.P.
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