Arquidiocese de Braga -
21 maio 2009
A Universidade e a "alma" da Europa

D. Jorge Ortiga
A vida reserva-nos momentos que nem sempre somos capazes de compreender. Procuramos aceitar com maior ou menor resignação.
Encontro-me nessa situação. Limitei-me a acolher uma distinção sem ver motivos para ela. Talvez a minha paixão por uma sociedade mais humana vá de encontro ao “sol lucet omnibus”. O sol deve brilhar para todos no indispensável para uma dignidade universal e o sol da cultura cria as condições para, através duma maior e melhor qualificação, um número crescente de portugueses usufruir de capacidades que os consigam impor perante a competitividade que marginaliza muitos e a globalização que favorece uma acumulação na mão de poucos por mais que pretendam dizer-nos o contrário.
Para todos a luz da cultura criará as condições que garantem um mundo mais justo e equitativo. É já um lugar comum referir que a crise não é meramente económico-financeira mas sintoma duma mentalidade já não credível e ultrapassada que exige um novo modelo civilizacional. Não é o individualismo desenfreado, gerador de desigualdades sociais e provocador de corrupções escandalosas, que garantirá o futuro da humanidade. Só a verdade sobre o ser humano, entendido na sua integridade física e espiritual, e situado numa globalidade de compromisso pelos outros, num enquadramento relacional da pessoa em relação de fraternidade com todos, indivíduos ou instituições, e em harmonia com todo o criado através de comportamentos geradores de responsabilidades pelo ambiente, permitirá que o horizonte não escureça dum modo que impeça a caminhada.
Vinte anos de presença da Universidade Lusíada em Famalicão podem ter um significado paradigmático como contributo para uma qualificação dos recursos humanos. Estamos integrados no “famigerado” Vale do Ave com uma abrangência relevante em termos de possibilidades, mas questionada por desafios pluriformes que só a inovação e competência conseguirá ultrapassar. Não fujo à verdade afirmando que a Universidade Lusíada já é uma referência pela procura de cursos e pela qualidade que oferece garantindo soluções adequadas e ultrapassando perplexidades.
Dando os parabéns à Universidade Lusíada pelos 20 anos de presença em Famalicão, agradeço penhoradamente o imerecido e comprometo-me para que o sol da dignidade brilhe para todos através dum acesso crescente aos cursos universitários, também na luta que o ensino privado tem de travar para subsistir e nos encargos que os pais assumem para, no que deveria ser a liberdade de aprender e ensinar, darem aos filhos o melhor, de modo que nos situemos num patamar que dê garantias de futuro.
O meu obrigado sincero e Parabéns. Permitam-me, agora, mais alguns pensamentos.
Não posso deixar de referir que o “sol” é a verdade e que, hoje mais do que nunca, esta se encontra num Mestre que se auto-definiu como “caminho, verdade e vida”. Ele ensinou e confirmou com a vida as Suas palavras (voltarei a esta ideia) e são estas o itinerário a percorrer. “Se permanecerdes na minha palavra, sereis verdadeiramente meus discípulos; conhecereis a verdade e a verdade vos libertará” (Jo. 8, 31).
Correndo o risco de imiscuir-me em terrenos que não me dizem directamente respeito, penso poder afirmar que as instituições universitárias devem prosseguir duas finalidades fundamentais. Por um lado, geram a possibilidade dum acesso rigoroso e livre à compreensão e comunicação da verdade nos diversos âmbitos científicos; por outro, promovem uma adequada preparação para um serviço qualificado à sociedade numa perspectiva ideal e de compromisso com o bem comum.
Perante estes objectivos, e para não fugir à palavra mais pronunciada nos últimos tempos, creio que assistimos a uma crise cultural com repercussões imediatas na educação e formação das novas gerações com resultados ainda não identificados. Esta “noite escura da cultura”, particularmente na Europa, como referia um pensador moderno, está dominada por uma abstracção dos conhecimentos e por uma fragmentação de conteúdos e saberes. Neste contexto, urge a reconquista dum saber, verdadeira e integralmente humano e nunca numa mera visão funcional. Este saber deve ser capaz de conciliar a tradição com a abertura à novidade, de modo que a procura da verdade e do bem encerre um efectivo e indispensável contributo ao crescimento integral da pessoa e da sociedade planetária e, como tal, aberta à globalização não só económica, mas cultural e religiosa, que devemos construir. Nesta articulação o estudo e a vida encontram-se e harmonizam-se entre si e acontece uma unidade entre o intelectual e o prático. Importa formar pessoas no sentido integral da palavra e nesta tarefa os valores não devem ser sacrificados à qualidade do ensino. Pelo contrário, dão-lhe garantias dum sucesso pessoal e dum contributo positivo para uma sociedade mais humana.
Nesta aliança com a vida emerge a questão de Deus. Em 2004 surgiu um livro (André Glucksmann) intitulado La troisième mort de Dieu. Aí se interrogava sobre a razão pela qual a Europa deu origem a uma cultura – que exportou – onde fez de Deus um problema a resolver com as limitadas capacidades do homem, deixando de o considerar um mistério onde, à partida, se reconhece a incapacidade de compreender todas as Suas dimensões e profundidade.
Com este “exercício” orientado para a morte de Deus, provocou-se, ou está-se a provocar, a morte do homem tornando-o um verdadeiro problema incapaz de se conhecer a si e de se relacionar com os outros, com o Cosmos e com o Absoluto. O homem começa a sentir-se só e mergulhado numa série de monólogos – muitos lúcidos e inteligentes – mas que não deixam de ser monólogos sem a consequente interacção ou inter-acolhimento capaz de gerar uma sociedade de confiança, estima, respeito, onde a alegria de viver é força para vencer os reais problemas.
Muitas vezes me encontro a formular perguntas levantadas por F. Nietzsche: “Não faz sempre cada vez mais frio? Não é noite? Sempre mais noite?”
Em 21 de Maio de 1985 o Papa João Paulo II afirmou em Bruxelas perante as máximas autoridades da Comunidade Europeia (na época). (A transcrição é longa. A sua sabedoria dispensa-me doutros comentários).
“Os últimos séculos que modelaram a Europa contemporânea estão marcados por uma intensa expansão da actividade humana: assiste-se a um rápido desenvolvimento das ciências e das técnicas. Contemporaneamente, a reflexão do homem sobre si mesmo explora a riqueza da pessoa e as bases da vida social. É tempo em que os filósofos traçam novos caminhos para a actividade racional. É tempo em que os grandes juristas retomam os fundamentos do direito. Os valores da liberdade e da igualdade são reconhecidos como os primeiros direitos do homem. Tudo isto conduz a novas visões do mundo, à revolução industrial, a profundas mudanças nas estruturas sociais”.
Se aqui encontramos uma descrição positiva da realidade hodierna, o Papa não esquece as sombras densas que caracterizam a cultura europeia. Continua: “Todavia, o crescimento das riquezas de todo o tipo traz consigo um escasso progresso na equidade. Acusam-se os particularismos nacionais, as lutas pela preponderância marcam a história das potências. No curso destes períodos uma certa embriaguez mostra o homem consciente das suas capacidades de progresso. O optimismo racionalista que inspira as suas conquistas conduz-lo à negação de qualquer ideal transcendente que fuja às capacidades do seu génio. Diversas correntes de pensamento, filosóficas e ideológicas, desacreditam a adesão a uma fé e conduzem a uma suspeição sobre Deus que se volta sobre o homem, privando-o duma plena consciência das razões de viver. Pretende-se erigir como algo absoluto a potência do homem ou o dinamismo da sua história, mas a consequência que acontece é o emergir de ideologias e de sistemas políticos que obstaculizam a liberdade do homem e diminuem a sua generosidade. A negação prática de muitos valores espirituais induz o homem a querer a todo o custo a satisfação da sua afectividade e a desconsiderar os fundamentos da ética. Ele pede a liberdade e foge à responsabilidade; aspira à opulência e não consegue acabar com a pobreza que lhe está ao lado; professa igualdade de todos e cede com frequência à intolerância racial. Com tudo o que reivindica para si, o homem contemporâneo é tentado pela dúvida sobre o sentido da vida, da angústia e do nichilismo”.
É nesta dialéctica que nos encontramos. A inteligência humana conquista espaços nunca pensados e, ao mesmo tempo, não consegue restabelecer uma relação fraterna com todos e com o criado capaz de proporcionar a segurança necessária e a certeza de que só em comum usufruímos das maravilhas da vida. A situação hodierna pode ser vista em perspectivas diferentes, só que voltaremos sempre à cultura como veículo e motor duma humanização integral. Nos lugares onde ela se cultiva os valores devem voltar a impor os seus critérios destruindo o relativismo avassalador e o individualismo destruidor da responsabilidade. Onde iremos chegar com a lei do mais forte, com a omnipotência do “fazer o que quero e me apetece?” Não estará aqui a causa dum medo generalizado perante o futuro? Nem todos se salvam no meio da “selva”. A desconfiança acentua-se em âmbitos que davam tranquilidade como é o caso da justiça. Não se experimenta uma verdadeira segurança no presente e no futuro. Voltamos ao velho aforismo do “homo hominis lúpus” quando deveríamos assumir o estatuto dignificante de ser Filho dum único Pai. Isto construiria uma Fraternidade Universal, no sentido de Francisco de Assis, onde nada do criado é excluído. Se importa questionar o relacionamento do homem com os outros, também é imperioso colocá-lo perante a natureza para que assuma as suas responsabilidades. Trata-se dum jogo muito simples que exige a alteração de modelos de viver em comum e de comportamentos pessoais.
Um poeta francês (Jean Paul Richter) dizia em 1990 (Trad. Italiana Poesie filosofiche, Milano, pag. 11): “A alma já não fala mais”. Ninguém ignora a banalização dos costumes e as atitudes contraditórias. O vazio, legal e existencial, acompanha o nosso quotidiano e daí que nos pareça inútil viver e acreditar na esperança. Só este regressar à “alma”, sinónimo duma consciência formada à luz dos valores perenes, poderá restituir-nos horizontes de futuro. Nesta responsabilidade a Universidade desempenha uma tarefa insubstituível se souber oferecer excelência na qualidade dos conhecimentos, teóricos e específicos, e permeando estes conhecimentos com a exigência duma vida pautada por critérios de humanismo integral.
Não sei se fui oportunista. Deveria fixar-me na gratidão e na estupefacção pelo pouco merecimento. Por exigência pessoal sinto que tudo é oportunidade para apontar caminhos novos nunca cedendo à tentação do deixar correr. Acredito, seriamente, que o mundo e, concretamente, a Europa não têm futuro sem uma alma que seja ouvida. E a Universidade deveria ser esse jardim onde ela é cultivada e proposta. Utopia? Deixem-me sonhar e perdoem o atrevimento.
Universidade Lusíada,
Doutoramento “Honoris Causa”, 21-05-09
† Jorge Ortiga, A.P.
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