Arquidiocese de Braga -

13 fevereiro 2013

O ENGRAXADOR DE SAPATOS

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Fotografia

Homilia na quarta-feira de cinzas.

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O engraxador de sapatos

Alternativas para uma felicidade comum

Homilia na Quarta-Feira de Cinzas

1. A memória da nossa história é composta por passagens e objectos, cujo significado deixou marcas na nossa existência. Quem já tem algum património vital, certamente que se recorda dos inúmeros engraxadores de sapatos que preenchiam as ruas da cidade. Andar com os sapatos limpos, mais do que um sinal de riqueza, era sobretudo um sinal de auto-estima, de higiene e de estética.

Posto isto, eu creio que o Tempo da Quaresma compara-se a esta imagem. Aliás, arrisco dizer que a nossa vida é como um par de sapatos: o seu uso quotidiano nas ruas da realidade leva-os a acumular bastante sujidade… mas, de vez em quando, precisamos de parar para os limpar. Caso contrário, passamos a vida a lamentarmo-nos da sua sujidade e a olhar somente para eles, em vez de olhar em frente e ver o mundo maravilhoso que nos circunda, aproveitando cada encontro e cada compromisso de um modo límpido. [1]

A propósito, escreve Charles Péguy: “Fazei com que o vosso exame de consciência seja como o limpar os sapatos: não aconteça que leveis continuamente convosco a lama ou a recordação da lama no vosso caminho.” Assim sendo, Deus, e ireis perdoar-me a ousadia da expressão, é aquele engraxador que espera por nós ao virar de cada esquina e que, gratuitamente, limpa os nossos sapatos, sujos pelo pecado, mediante o sacramento da reconciliação, como nos recorda Paulo na segunda leitura.

2. Na mensagem para este tempo, alertei para um dos nossos maiores pecados na actualidade: a rotina de gestos. [2] Fundados na fé, precisamos de ser criativos e procurar uma alternativa gestual, como nos ensina o sacerdote do recente filme “Os Miseráveis”.

Daí que tenha sugerido a realização dum “dia paroquial da fé”, a realizar-se no Tempo Pascal, a nível paroquial ou inter-paroquial (nos lugares onde começam a nascer unidades Paroquiais), como consequência desta mudança de critérios novos de vida, alternativos a tantos outros, que o tempo Quaresmal nos fez compreender, se ousarmos parar para interiorizar a novidade da fé.

Aliás, passado já metade do Ano da Fé, perante o estabelecido no Programa Pastoral, atrevo-me a lançar uma interpelação a todos os cristãos e comunidades: será que algo de particular, de específico e de novo já aconteceu? Ou acontece que tudo são apenas palavras a propósito da fé, mas sem uma verdadeira repercussão na vida?

Diante destas perguntas, o Santo Padre sublinha que este tempo quaresmal convida “a alimentar a fé com a escuta mais atenta e prolongada da Palavra de Deus e a participação nos Sacramentos e, ao mesmo tempo, a crescer na caridade” [3] , porque “crer na caridade, suscita a caridade”, segunda a sua mensagem para esta Quaresma, a quem agradecemos desde já o modo belo, inteligente e audaz com que orientou a Igreja Católica durante o seu pontificado, agora renunciado por motivos de idade.

Esta aliança entre a Fé e a caridade deve marcar a nossa identidade cristã através dum estilo de vida capaz de interpelar e provocar a sociedade que nos rodeia, perdida em discursos fúteis e sempre – ou quase sempre – alicerçados na procura do contraditório para defender opções de grupos secretos e nunca, ou quase nunca, o bem comum.

Partindo deste binómio entre fé e caridade, recordo que a partilha quaresmal da Arquidiocese será destinada, como habitualmente, a uma causa diocesana (Fundo Partilhar com Esperança) e a outra de consciência mais eclesial (Missão de Itoculo, da diocese de Nocala, confiada a dois sacerdotes da Congregação do Espírito Santo). Não se trata de um gesto resultante de um hábito pessoal, uma rotina social ou uma imposição legal, mas de um gesto livre e consciente, como nos desafia Jesus no evangelho de hoje!

3. Num dos seus discursos, o homem que marcou a vida das gerações mais novas com as suas histórias, afirma: “Decidi ver cada dia como uma nova oportunidade de ser feliz” (Walt Disney).

A história do povo bíblico comprova-nos que, a cada oportunidade que o dia oferece, algo de maravilhoso acontece. Por exemplo: o dilúvio durou 40 dias e 40 noites, preparando assim uma nova humanidade; 40 anos passou o povo de Israel no deserto, para se preparar para entrar na terra prometida; durante 40 dias fizeram penitência os habitantes de Nínive, antes de receberem o perdão de Deus; 40 dias e 40 noites caminhou o profeta Elias para chegar ao monte de Deus; e 40 dias e 40 noites jejuaram Moisés e Jesus, para se prepararem para a sua missão. [4]

A Quaresma oferece-nos assim 40 dias, que serão 40 oportunidades, para que Deus nos limpe os sapatos, de modo a que, quando olharmos para o espelho da fé, estarmos bem aprumados para a maior de todas as festas: a Festa da Páscoa.

O facto de participarmos hoje, com muita alegria da minha parte, no rito de admissão de catecúmenos a serem baptizados na Vigília Pastoral, manifesta que a fé continua viva e que as comunidades não podem diminuir no compromisso de anunciar Cristo num mundo, que parece querer viver sem Deus. Não posso deixar de agradecer-vos pela vossa livre decisão e de esperar que esta última etapa antes do Baptismo suscite em vós um desejo permanente dum conhecimento de Cristo e da sua doutrina. Agradeço aos catequistas que vos acompanharam e aos párocos da cidade de Braga que permitiram esta experiência, sendo vós oriundos de vários ambientes e comunidades. Um gesto que já não é novo, mas que se reveste de grande importância para a vida da Arquidiocese!

4. Para terminar, neste tempo de crise, por vezes parece que a nossa vida anda sem rumo, sem identidade, sem projecto e sem fundamento.

Porém, a Quaresma é um tempo onde o silêncio, a reflexão e o diálogo com a verdade confere-nos uma outra alegria, ao ritmo de uma caminhada pastoral e espiritual diferentes. Ela recorda-nos que Deus continua a acreditar em nós e a dar-nos gratuitamente esse rumo, essa identidade, esse projecto e esse fundamento para a nossa vida!

Por isso, não sejamos orgulhosos, “lembremo-nos que somos pó da terra”, “rasguemos o teu coração” e reconheçamos a sujidade que transportámos nos nossos sapatos! Não passemos o tempo a fazer cálculos à vida, mas deixemos que Deus nos calcule com o seu amor!

Enraizados na fé, embora a Quaresma comece com as cinzas, nós temos a certeza de que ela nos levará às flores da Páscoa!

+ Jorge Ortiga, A. P.

13 de Fevereiro de 2013.



[1] José Tolentino Mendonça, Um Deus que dança, 71.

[2] Cf. D. Jorge Ortiga, Gestos Alternativos. Mensagem para o Tempo da Quaresma – 2013.

[3] Cf. Bento XVI, Mensagem para o Tempo da Quaresma – 2013.

[4] Cf. Fernando Armellini, O Banquete da Palavra – Ano C, 115.