Arquidiocese de Braga -

24 janeiro 2014

A RONDA DA LAPINHA COMO IMPORTANTE FORÇA EVANGELIZADORA NAS TERRAS DA SENHORA-À-VILA

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Artigo de Florentino Cardoso, presidente da comissão administrativa da Irmandade da Senhora da Lapinha.

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A Irmandade de Nossa Senhora da Lapinha tem a missão de promover o culto de Nossa Senhora sob a invocação correspondente ao local onde, segundo a lenda, terão ocorrido factos extraordinários no início do séc. XVII que determinaram a confiança na intervenção solícita de Nossa Senhora e onde nasceram e se desenvolveram as consequentes práticas de veneração que hoje subsistem. Esse local é o monte da Lapinha, situado na freguesia de Calvos, do concelho de Guimarães. O culto de Nossa Senhora da Lapinha expressa-se, fundamentalmente, numa manifestação mariana, piedosa e de penitência, muito antiga, extensa e popular, actualmente conhecida por Ronda da Lapinha, mas que até meados do século XIX era oficial e popularmente referida como "A Senhora-à-Vila". É antiga porque tem as particularidades que lhe são conferidas por uma vivência colectiva que já completou quatro séculos; é longa porque desde o Santuário até à Cidade de Guimarães e no regresso por outro caminho atravessa 14 freguesias, fazendo um percurso de 21 quilómetros, que levou o Senhor Arcebispo de Braga a conferir-lhe o epíteto de Meia Maratona da Fé; é popular porque se exprime na cultura de um povo residente numa área geográfica mais ou menos correspondente à bacia hidrográfica do Rio Vizela, desde a milenar freguesia de Cepães, a montante, até à actual Cidade de Vizela, a juzante, com as particularidades que os quatro séculos de vivência colectiva que conferiram. Este terrítório onde está implantada a devoção à Senhora da Lapinha reparte-se por quatro municípios: Guimarães, Felgueiras, Fafe e Vizela.

  Porque exerço funções na Comissão  Administrativa desta Irmandade, depois de ler o programa pastoral para o Ano Litúrgico 2013/2014  e ver que o Senhor Arcebispo de Braga apresentou a Religiosidade Popular como um dos eixos do Ano da Fé Celebrada, logo se me colocou a questão de procurar saber qual o contributo que a Ronda da Lapinha, a  mais longa procissão de penitência (Clamor) que se faz na Arquidiocese e, quiçá, no mundo,  poderia dar para a vivência do ano pastoral nas múltiplas comunidades paroquiais onde residem os milhares de devotos da Senhora da Lapinha que em cada ano participam na "Meia-maratona da Fé" .

  No citado documento, o Senhor Arcebispo disse, a propósito da Religiosidade Popular,  que ~~"em muitas paróquias a religiosidade popular pode ter uma grande importância se soubermos purificá-la das suas deficiências e revitalizar os seus valores. A piedade popular precisa de ser purificada para não se limitar a gestos exteriores, mas que implique um aprofundamento da fé. É possível estimular e aprofundar o conteúdo evangélico e evangelizador de muitas tradições populares".

  Perante este desejo pastoral, impõe-se-nos colocar a questão de saber qual o caminho a seguir para que a Ronda da Lapinha seja purificada de algumas práticas menos recomendáveis e se torne um marco importante no plano da Fé, com um conteúdo evangélico e evangelizador cada vez mais profundo e estimulante.

1. CONSOLIDAR O QUADRO GEOGRÁFICO DEVOCIONAL DA RONDA

  a) Na minha modesta opinião, a primeira tarefa será voltar o Santuário para as comunidades religiosas da bacia hidrográfica do Rio Vizela a que atrás fizemos referência e para as comunidades que estão no caminho da Ronda, porque são estas comunidades que moldam o quadro de cultura e de fé que a Ronda da Lapinha ou a Senhora-à-Vila hoje constitui. Este conjunto de comunidades religiosas, que não tem correspondência com qualquer diagrama institucional no plano religioso ou civil porque se repartem por quatro  municípios, três arciprestados e duas dioceses, tem de ser olhado e considerado pelos gestores do Santuário e responsáveis do culto como o território da Senhora da Lapinha, ou "Terras da Senhora-à-Vila", designação que não figura de forma ingénua no logótipo lançado em 2012. 

  b) Depois é preciso criar uma relação de intensa interação pastoral com estas comunidades, porque só assim será possível manter e alargar a base da pirâmide devocional à Senhora da Lapinha e encontrar os agentes pastorais, em quantidade e qualidade suficientes, que permitam realizar as tarefas de formação que hão-de conduzir à purificação da grande manifestação de religiosidade popular que tanto orgulha os cristãos destas terras e fazer dela um importante instrumento de evangelização para os nossos tempos.

  c) Uma forma de interação pode ser a prática de visitas regulares e periódicas da imagem peregrina de Nossa Senhora da Lapinha a cada uma dessas comunidades, com permanência de pelo menos uma semana em cada Igreja paroquial, e ser aí  venerada da forma que melhor aprouver a cada comunidade anfitriã, potenciando, assim, uma proximidade cada vez maior entre a Senhora e os seus devotos. Esta experiência já está felizmente em curso, visto que a imagem peregrina foi recebida pela comunidade paroquial de Arões (São Romão) durante a semana de 4 a 11 de Janeiro, pela de Arões (Santa Cristina) na semana de 11 a 18, pela de Cepães de 18 a 25, pela de Fareja de 25 de Janeiro a 1 de Fevereiro, seguirá para a de Armil na semana de 1 a 8 de Fevereiro e depois passará pelas comunidades paroquiais de Jugueiros (semana de 8 a 15), Sendim (semana de 15 a 22) e Friande (semana de 22 de Fevereiro a 1 de Março), estas três da vigararia de Felgueiras. Esta ideia foi muito bem acolhida por todas estas comunidades paroquiais e a imagem peregrina da Senhora está a ser  venerada com muito entusiasmo e devoção. Estamos confiantes que se seguirão depois outras comunidades paroquiais da vigararia de Felgueiras, diocese do Porto, designadamente as que se localizam na margem esquerda do Rio Vizela, entre Jugueiros e Regilde, inclusive.

  d) Desta interação deverá nascer uma equipa de conselheiros pastorais constituída por um ou dois elementos de cada comunidade, para se criar " um quadro harmónico de formação onde todos os elementos estejam ao serviço de um plano", como diz o autor José da Silva Lima no seu livro "Entre Rezas e Romarias - Piedade Popular e Prática Pastoral", quando fala de  "Prioridades Pastorais", na página 34. Esta equipa teria a missão de aconselhar e executar ao longo do tempo a tal postura formativa, constituindo simultaneamente o principal veio de ligação entre o Santuário e os milhares de devotos espalhados pelas comunidades das Terras da Senhora-à-Vila.

  e) Acresce ainda que a aproximação do Santuário às comunidades paroquiais aludidas na alínea a), pode contribuir para a resolução de um velho problema da Irmandade de Nossa Senhora da Lapinha. De facto, já não há memória de a Irmandade ser gerida por órgãos directivos escolhidos pelo plenário dos irmãos e sabemos que é vontade da Cúria Arquiepiscopal a reversão rápida desta situação. Todavia, o problema não se resolve sem que antes se alargue a área de influência e ação do Santuário porque, no contexto geográfico e social em que o Santuário se insere,  não é possível dispôr de um quadro de irmãos capaz de assegurar a sustentabilidade governativa por essa via, depois de o Santuário se ter mantido assente durante décadas uma base meramente paroquial.

2.  PURIFICAR A  RONDA E APROFUNDAR O SEU CONTEÚDO EVANGÉLICO

  a) Da forma como tem decorrido até aos nossos dias, a Ronda da Lapinha tem sido uma procissão de penitência em que os milhares de penitentes que acompanham o andor com a imagem da Senhora assumem uma postura piedosa, mas de forma individual ou de oração em pequenos grupos. Nunca houve até agora, pelas dificuldades próprias da extensão do percurso, a prática de orações e cânticos colectivos dirigidos por agentes bem preparados, nem o anúncio, leitura e meditação do Evangelho. Seria importante que isto acontecesse para que se cumprissem não só as palavras do Salmista, quando diz "a vossa Palavra é qual farol para os meus passos e uma luz para os meus caminhos" (Sl. 119, 105), mas também as orientações do Conselho Pontifício para a Pastoral dos Migrantes e Itinerantes quando refere que "a experiência fundamental da peregrinação deve ser a escuta da palavra de Deus". Acredito que, com recurso aos meios técnico-sonoros móveis dos nossos dias, seria possível ter uma voz directora ao longo de todo o percurso para implementar uma maior vivência evangélica e de piedade, tornando a Ronda da Lapinha um Clamor modelo neste sentido. Durante os 21 quilómetros do percurso seria possível, por exemplo, levar à prática a oração de 1000 Avé-Marias pelo Papa, com a meditação profunda dos mistérios, o que constituiria um facto tão extraordinário que faria dele um cartaz no capítulo da piedade e devoção mariana, para além de revitalizar os valores da Ronda. Como diz o já citado autor José da Silva Lima, "os elementos que moldam o quadro religioso são altamente formativos se dispostos de forma harmónica".

  b) A organização do espaço litúrgico nos dias da Ronda é também um aspecto que deverá ser repensado. Acho que o Santuário tem de se conservar como o lugar onde está o Santíssimo Sacramento e não pode ser transformado numa espécie de tenda com a presença da imagem da Senhora num andor, onde os fiéis entram apenas para cumprir promessas, com todo o aspecto folclórico que é próprio destes actos e com total alheamento da presença do Altíssimo. Não quero com isto dizer que o cumprimento das promessas deva ser impedido, o que me parece é que terá de ser criado um espaço fora do Santuário com dignidade para a prática destes actos, mantendo-se o Santuário preservado como a Casa de Deus.

  c) "Mutatis mutandis", esta linha de pensamento deverá aplicar-se ao recinto exterior onde é celebrada a Eucaristia solene, porque este espaço tem de ser considerado neste dia como uma extensão do Templo e, por isso, não poderá ser lugar para "vendilhões", com todo o respeito pelo comércio, que faz falta e poderá ser muito útil aos milhares de devotos que ali acorrem, mas terá de ser encontrado um lugar distante do Santuário para a sua prática. É necessário velar por aquilo a que o Dr. José da Silva Lima chama "a dimensão ecológica do lugar da devoção", querendo como isso referenciar "a cor, a distribuição espacial, a beleza e a dimensão, a diversidade convergente".

  d) Por outro lado, quero referir uma prática muito antiga, mas por vezes desconhecida mesmo daqueles que acompanham de perto e prestam atenção à Ronda da Lapinha. Refiro-me à forma como são recrutados ou selecionados os pegadores para o andor que percorre 21 quilómetros com a imagem da Senhora. Desde tempos imemoriais que essa seleção é feita em função da oferta que cada um dá, estando automaticamente excluídos de pegar no andor aqueles que, mesmo tendo vontade, não possam ou não queiram oferecer nada. Acresce ainda que, na prática, as melhores ofertas conferem áqueles que as podem dar o direito de pegar no andor nos momentos mais vistosos da Ronda, como seja a saída do Santuário, a entrada e saída na Igreja da Oliveira ou a entrada no recinto do Santuário para cerimónia do Adeus final. No fundo, esta prática encerra uma  expressão de vaidade que, em bom rigor, não merece qualquer empatia no plano pastoral.

  e) A mesma expressão de vaidade se manifesta naqueles casos em que os devotos insistem em colocar as suas ofertas monetárias - vulgo notas em curso na zona euro - coladas ou agrafadas às vestes da Senhora durante o percurso da procissão de penitência. Como é óbvio, esta situação gera um aspecto deprimente e indigno de uma manifestação mariana tão sublime, que alguma atitude tem de ser tomada. O Dr. José da Silva Lima no livro já citado diz que "as formas de piedade popular necessitam de um contínuo discernimento, que não pode ser feito de ânimo leve ou com preconceitos teóricos ligados a um cérebro fresco".  E acrescenta ainda que "a censura não é um bom método", explicitando que "é muito mais fecunda a atitude de acolhimento dialogante..." Reconheço, portanto, que se trata de uma questão muito sensível e que requer muita prudência, mas seja-me pelo menos permitido trazê-la à colação, para ver se surgem as melhores orientações pastorais para o seu enquadramento.

  Creio que o aproveitamento da interactividade pastoral com as comunidades religiosas referidas no primeiro ponto é o caminho certo não só para o reforço e consolidação da base devocional da Ronda, como também para a consequente purificação e aprofundamento do seu conteúdo evangélico. A criação desta base estrutural é, quanto a mim, a forma de aproximar cada vez mais os seus membros do Santuário da Lapinha, fazendo com que se revejam na Ronda e a tomem como uma expressão própria da busca de Deus e da Fé.

Florentino Cardoso