Arquidiocese de Braga -
20 maio 2014
D. EURICO DIAS NOGUEIRA: MEMÓRIAS DO CONCÍLIO
Em 10 de julho de 1964 fui nomeado bispo de Vila Cabral (hoje Lichinga), em Moçambique; e logo convidado, no final do mês, para tomar parte no Concílio, como padre conciliar. Ainda ia a meio, precisamente entre a segunda e a terceira sessão. A carta convo
1. Como tomei conhecimento do Concílio
Foi no dia 25 de janeiro de 1959 que o Papa João XXIII anunciou, de surpresa, a sua intenção de convocar um concílio ecuménico. Era o final do Oitavário da unidade dos cristãos e o 19.º centenário da Carta de São Paulo aos Romanos.
O acontecimento ocorreu na Basílica de São Paulo, o Apóstolo da unidade e do Corpo místico.
A notícia caiu como bomba no Mundo inteiro, a começar pela Cúria Romana, onde poucos elementos estavam ao par das intenções do Santo Padre. Foi acolhida «com alvoroço e esperança» pelos católicos e com simpatia e interesse pelos cristãos separados, embora com algumas reservas, aliás compreensíveis.
A 17 de maio seguinte constituiu-se a Comissão Preparatória, com dez altos prelados das congregações da Cúria, presidida pelo cardeal decano Tardini, secretário de Estado do Vaticano, apontando-se quatro grandes objetivos do futuro concílio.
Entretanto, declarou-se encerrado o Vaticano I, que apenas havia sido suspenso em 1871, por motivo das convulsões políticas e militares na Europa que envolveram a Itália, com profundo reflexo na vida da Igreja, sobretudo nos Estados Pontifícios.
Os bispos do Mundo inteiro sentiram que eram os protagonistas do grande acontecimento, porquanto a Igreja é um Colégio, sendo este o direto sucessor e legítimo continuador do Apostólico. Os concílios, nos seus diversos graus e modalidades, constituem um órgão de expressão do pensamento e decisão da Igreja. Os bispos, nas suas decisões, podem dizer: «Aprouve ao Espírito Santo e a Nós» («Placuit Spiritui Sancto et Nobis»), segundo a expressão provinda do Concílio de Jerusalém, em meados do século I.
Conhecem-se concílios ou sínodos desde o século ii: locais ou provinciais. Mas só com a Paz de Constantino, no início do século iv, houve possibilidade de reunir um concílio com representantes de toda a Igreja do Oriente e Ocidente.
Foi o Concílio de Niceia, em 325, considerado o primeiro verdadeiramente ecuménico, com participação de bispos provenientes das duas partes do Império: romana e constantinopolitana. Só os bispos e superiores máximos das congregações religiosas têm voto deliberativo. Os demais intervenientes – teólogos, canonistas e sociólogos convocados – tem-no apenas consultivo. Os cristãos separados – ortodoxos, protestantes e anglicanos – podem ser convidados e dar a sua opinião, mas não votam.
Houve somente oito concílios com as duas Igrejas unidas. A separação entre Roma e Constantinopla, no século XI, dividiu-as, com uniões efémeras nos Concílios de Leão (1274) e de Ferrara-Florença (1438). A partir do século xvi, verificou-se nova rutura com revolta protestante e anglicana.
Deste modo, os concílios ficaram reduzidos a metade da Cristandade, que abrange, neste momento, algo mais de um bilião de católicos. Mesmo assim, consideram-se ecuménicos estes concílios, ficando os eventuais representantes ou delegados das outras Igrejas cristãs irmãos convidados. Estiveram presentes, em grande número, no 21.º Concílio Ecuménico, o Vaticano II, o que não sucedeu em Trento e no Vaticano I.
O Vaticano II iniciou-se em 11 de outubro de 1962, após três anos e meio de preparação. Os padres conciliares foram cerca de 3000. Os bispos portugueses publicaram uma carta pastoral coletiva sobre o tema. O CADC de Coimbra, juntamente com a JUCF, efetuou uma preparação acurada em que participei, juntamente com o cónego Dr. Urbano Duarte, pois fazíamos parte desses dois órgãos ativos dos estudantes católicos, como assistentes eclesiásticos. A revista Estudos dedicou um bom relato ao auspicioso acontecimento.
2. Como participei no Concílio
Em 10 de julho de 1964 fui nomeado bispo de Vila Cabral (hoje Lichinga), em Moçambique; e logo convidado, no final do mês, para tomar parte no Concílio, como padre conciliar. Ainda ia a meio, precisamente entre a segunda e a terceira sessão.
A carta convocatória pedia uma fotografia em vestes episcopais. Por não as ter ainda, pedi ao bispo auxiliar de Coimbra, D. Manuel de Jesus Pereira (mais tarde prelado de Braganca-Miranda), que me emprestasse as suas. Deste modo, foi com vestes alheias que fiquei em documentos conciliares.
Para lá me dirigi, em setembro, antes da ordenação episcopal (que só teve lugar em 6 de dezembro, após o regresso da terceira sessão conciliar, mas já prelado efetivo da diocese, pois dela tomara posse por procuração em 6 daquele mês).
Tudo para mim era surpresa agradável no Concílio:
- ver-me sentado na ampla sala conciliar, em que se transformara a nave central da Basílica de São Pedro, entre milhares de venerandos colegas;
– ouvir intervenções brilhantes e oportunas, por bispos distintos de todo o Mundo;
– assistir à presença e intervenção do Papa, de quando em quando;
– efetuar idas fugidias aos dois bares situados nas traseiras de cada lado da aula conciliar (para beber um café ou coca-cola), designados por Bar Jonas e Bar Abas;
– as solenidades que ocorriam ocasionalmente dentro e fora da aula conciliar;
– as votações maciças dos documentos definitivos, praticamente sem abstenções e aprovados pela quase totalidade dos votantes;
– consciência de estar a contribuir para um passo decisivo e atualizante da Igreja.
Sentia-me superior à minha insignificante pessoa, sabendo que ali, mais que representante de uma apagada diocese que mal conhecia e por organizar (com poucos cristãos entre muitos muçulmanos), no interior da África, era um elemento ativo e responsável da Igreja universal.
O Papa João XXIII, que convocara e iniciara o Concílio, falecera entretanto, sucedendo-lhe Paulo VI, que o confirmou e acompanhou, como o antecessor. Tomara parte ativa nele, nas primeiras sessões, como cardeal-arcebispo de Milão.
Já se havia realizado uma sessão, com cerca de 40 congregações gerais. A terceira iniciara-se com uma concelebração, depois de aprovada esta modalidade, na anterior.
Na primeira – de 11 de outubro a 8 de dezembro de 1962 – elegeram-se as comissões conciliares, enviaram-se mensagens ao Mundo e iniciou-se a discussão sobre os esquemas da Liturgia, Fontes da Revelação, Meios de Comunicação e Unidade.
A segunda decorreu de 29 de setembro a 4 de dezembro de 1963, com mudança de Papa no intervalo entre ambas, por entretanto haver falecido João XXIII. Debruçou-se sobre a Igreja – dioceses e ecumenismo – e tomaram-se as decisões sobre Liturgia e meios de comunicação social.
Na votação sobre a Igreja destacou-se a constituição hierárquica desta e a colegialidade do episcopado, que recebeu 85% dos votantes. Restaurou-se o diaconado permanente, extensivo a homens casados; foi pena que não se tivessem incluído expressamente as mulheres, pois houve diaconisas durante séculos.
A 18 de outubro, ocorreu a canonização de 22 mártires ugandeses, novos na idade e na fé, pois apenas cinco tinham mais de 30 anos.
No início da última sessão conciliar, em 14 de setembro de 1965, houve uma concelebração presidida pelo Papa, com mais 26 concelebrantes. Foi anunciada a instituição do Sínodo dos Bispos e realizou-se uma procissão penitencial entre Santa Cruz e Latrão, presidida pelo Papa. Este deslocou-se à ONU, com oito cardeais. Verificou-se um ataque cerrado aos católicos holandeses, defendidos pelo cardeal Alfrink, e uma acurada discussão sobre a liberdade religiosa.
3. Presença de Portugal no Concílio
O nosso país marcou presença no Vaticano II, mas de forma bastante modesta.
Os bispos de Portugal eram 42, no início, e 49, no final. Abrangiam a metrópole e as então designadas províncias ultramarinas, de Cabo Verde a Timor, com destaque para os extensos territórios portugueses em África. Dois bispos fizeram parte de comissões preparatórias e quatro de pos-conciliares, com um e dois sacerdotes, respetivamente.
Fizeram 35 intervenções orais 17 bispos, destacando-se o da Beira (Moçambique), D. Sebastião Soares de Rezende, que interveio dez vezes. Outros pretenderam falar e apresentaram o teor dos temas, mas foram impedidos, por entretanto se suspenderem as intervenções, considerado o assunto já suficientemente esclarecido. Assim sucedeu comigo, que desejei falar duas vezes, entregando os textos no secretariado. Mas fui impedido por aqueles motivos, constando das Atas do Concílio como scripto tradita.
Assinava a votação dos textos: «Ego, Euricus, episcopus cabralopolitanus, subscripsi.»
Estiveram na abertura do Concílio representantes de 85 países e havia mil jornalistas credenciados. Enviei de lá 15 «Cartas para Vila Cabral», publicadas quinzenalmente no Diário de Moçambique (Beira) e Novidades (Lisboa) e acolhidos posteriormente no volume Missão em Moçambique (1970, pp. 357-408).
Pouco antes da quarta e última sessão, faleceu em Portugal o arcebispo de Évora, D. Manuel Trindade Salgueiro, que fora padre conciliar desde a sua preparação. O triste acontecimento foi evocado na primeira reunião daquela, pelo cardeal decano Tisserant, que rezou um De profundis, com toda a assembleia.
Afirmei e mantenho que as intervenções portuguesas, excluídas as do bispo da Beira, não foram brilhantes, passando quase despercebidas. A razão é simples: elas representam um esforço grande, mas inglório, pois eram obra de um bispo que tomava a iniciativa e, sozinho, redigia o texto, sem colaboração visível.
Geralmente as dos demais bispos – sobretudo da Europa e Estados Unidos, muito numerosos – eram obra de uma equipa: em geral de padres conciliares, mas sobretudo de teólogos, canonistas e sociólogos. Estes eram escolhidos nas melhores universidades e faculdades católicas do mundo e acompanhavam as sessões com toda a atenção. Comissionados pelos bispos, estudavam e redigiam os textos que eram entregues àqueles agrupados. Se aprovados, encarregava-se um deles de o apresentar no plenário.
Portugal não tinha nada disso. Apenas me apercebi da lacuna, referi-a a um dos nossos prelados, que respondeu: «Na nossa modéstia, não dispomos de homens destes.» Em parte é verdade; mas não seria difícil encontrar uma dezena de sacerdotes ou mesmo leigos, embora, ao tempo, se sentisse a falta de uma universidade católica entre nós; ou, ao menos, uma faculdade de Teologia. Perguntando-me aquele bispo: «Quem?», citei-lhe mais de meia dúzia de nomes bem conhecidos: de Braga, Coimbra, Évora, Lisboa e Porto. Aceitou, mas acrescentou que faziam falta nos seminários de Portugal. Respondi que isso não era de ter em conta, perante o serviço que prestariam no Concílio. E traziam uma preparação, bagagem e experiência que seriam muito úteis. Concordou, mas... já era tarde.
Apesar de bastante modesta e apagada, a intervenção dos bispos portugueses representou um apreciável esforço, que marcou a nossa presença no Vaticano II.
Esperamos que, no Vaticano III, ela seja diferente... para melhor.
Memórias de D. Eurico Dias Nogueira no Concílio Vaticano II: inVaticano II - 50 anos, 50 olhares, ed. Paulus, Lisboa 2012 (via SNPC)
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