Arquidiocese de Braga -
21 maio 2014
O ADVOGADO DO HOMEM

Homilia na missa exequial de D. Eurico Dias Nogueira.
O Advogado do Homem
Homilia na missa exequial de D. Eurico Dias Nogueira
1. Experiência Humana
Quando pegamos num livro de Direito e esfolheamos as primeiras páginas, deparámo-nos com um princípio básico que diz: “ubi homo, ibi societas; ubi societas, ibi ius” (onde está o homem, há sociedade; onde há sociedade, há direito”. De facto, enquanto seres dotados de liberdade, o direito revela-se imprescindível para tutelar a harmonia de relações entre os diversos membros de uma sociedade.
2. Liturgia da Palavra
O evangelho de hoje, curiosamente, oferece-nos um fundamento válido que proporciona essa harmonia existencial: permanecer unidos a Cristo. Com base numa metáfora agrícola, aprendemos que sem uma unidade espiritual com Cristo os frutos humanos e pastorais até poderão surgir, mas serão sempre frutos com pouca duração e de pouca qualidade. Importa, dessa forma, permanecer em Cristo com uma vida idêntica à Sua e que receba dela um sentido para viver em plenitude.
3. Desafio Pastoral
“Per crucem ad lucem” (pela cruz até à luz), lemos nas armas episcopais de D. Eurico. A cruz de Cristo foi e é o sinal, não meramente simbólico mas real, de que a união a Cristo faz com que recebamos da cruz a luz da fé e com esta encaremos o difícil itinerário da existência. No amor de Cristo sabemos que nem sequer a morte é capaz de nos vencer ou derrotar. Para muitos é loucura e escândalo. Mas para nós é salvação.
A cruz, nos seus diferentes rostos, nunca é opção pelo masoquismo mas aurora que vai dotando a vida duma sabedoria através da qual sabemos passar da morte para a vida, das trevas para a luz, porque nos projectamos no amor que redime e salva. A última constituição aprovada pelo Concílio Vaticano II, e por isso também pelo D. Eurico, afirma liniarmente: “As alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens do nosso tempo, sobretudo dos pobres e de todos os aflitos, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo, e nada existe verdadeiramente humano que não encontre eco no seu coração. (…) Por este motivo, a Igreja sente-se real e intimamente ligada ao género humano e à sua história.”
As cruzes dos homens são, deste modo, um lugar teológico onde a Igreja, e por ela os crentes, investem as suas energias para gerarem luz. Se as trevas parecem prevalecer, falta-nos audácia para mergulhar no âmago da história humana e fazer com que a ressurreição aconteça e faça resplandecer a alegria.
Aliás, a fé não é outra coisa senão o pior dos combates que podemos ter na nossa vida. E porquê? Porque ela consiste num combate que teremos de fazer contra nós próprios. Por outras palavras, um combate onde teremos de vencer o nosso egoísmo, de modo a não cairmos na tentação de sermos o deus de nós próprios, da nossa própria vida. E o problema é que, tudo aquilo que eventualmente ocupa o lugar de Deus na nossa vida, acaba por não ser um Deus, mas apenas um ídolo falível, que nos desvia da autêntica salvação. E isto acontece sobretudo quando perdemos este vínculo que nos une a Cristo e bloqueamos a entrada da transcendência na nossa imanência.
4. In memoriam
Deste modo, hoje estamos aqui para celebrar a derrota, no seu sentido paradoxal, de D. Eurico Dias Nogueira. Perante o combate com Deus, a nossa derrota soa sempre a vitória, e a nossa vitória soa sempre a derrota. Já o apóstolo Paulo, na carta aos Coríntios, assim o admitia: “quando sou fraco, então é que sou forte”.
Olhando para a sua biografia, olho com orgulho para um Bispo que serviu o seu país e a Igreja em dois grandes momentos de mudança na nossa sociedade. Os primeiros tempos do pós-25 de abil e do pós-Concílio Vaticano II apresentaram-se, sem dúvida, como um tempo difícil, um tempo de indefinição e um tempo de procura de uma identidade própria, após a queda dos paradigmas socio-religiosos antecedentes.
Na verdade, entre outras coisas, o acolhimento prestado aos retornados do Ultramar, na cedência do Seminário Conciliar, revela que o maior poder de um bispo não é a autoridade mas a caridade.
E se o Arcebispo Frei Bartolomeu dos Mártires importou toda a reflexão pastoral do Concílio de Trento, ouso, na mesma linha, comparar D. Eurico como o importador de toda a novidade pastoral do Concílio Vaticano II. E se hoje nos despedimos do último participante vivo nesse Concílio, acarretamos uma maior responsabilidade na concretização desse sonho eclesial nesta nossa Arquidiocese secular.
Dos inúmeros momentos que guardo na memória sobre a vida de D. Eurico, gostaria apenas de evocar a sua ousadia, inteligência e audácia com que denunciava todos os ataques feitos à dignidade humana, de um modo especial, os ataques à família. Por isso, considero que a melhor forma de resumir o apostolado de D. Eurico é defini-lo como o “Advogado do Homem”: não somente por ser um doutorado em Direito Canónico, mas por ser um cristão que conseguiu rebater o legalismo ocasional, tão frequente entre nós, contrapondo-lhe um humanismo intemporal.
5. Conclusão
Para terminar, emerge uma pergunta a todos nós: que legado nos deixa D. Eurico? Pensado bem, considero que aquela imagem da entrega do saco de sementes a todos os participantes no encerramento do último Sínodo Diocesano em 1997, é a melhor maneira de expressar esse legado. Somos portadores dessa semente que ele nos deixou. Uma semente a plantar em cada paróquia, pois a revitalização da diocese passará pela revitalização das suas paróquias. Com ele aprendemos, no nosso caso concreto de Braga, que a Arquidiocese é uma autêntica mãe cujas paróquias são os seus filhos. E nesta grande família, dá-mos prioridade às pessoas e aceitando a lógica do saber que quando um filho chora, toda a família chora. Que quando um filho sofre, toda a família sofre. E quando um filho se alegra, toda a família se alegra.
Daí que possa concluir que graças a este “Advogado do Homem” nós descobrimos uma nova formulação dum princípio básico do Direito, a saber: ubi caritas, Deus ibi est (onde houver amor, Deus está presente). Ao rezarmos hoje a vida de D. Eurico, só conseguimos abarcar o mistério da ressurreição a partir da categoria deste amor, na certeza de que o “amor tudo crê, tudo espera e tudo suporta” (1Cor 13,7) e na convicção de que pela Cruz chegaremos à Luz da Ressurreição.
+ Jorge Ortiga, A.P.
Sé Catedral de Braga, 21 de maio de 2014.
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