Arquidiocese de Braga -

18 dezembro 2014

Creio na vida interna

Fotografia Jorge Vilaça

\n

1. O T. tinha 10 anos quando nos conhecemos. Nasceu com deficiências profundas, tornando-o, à primeira vista, uma presença quase repugnante. A boca permanecia continuamente aberta, fazendo-nos entrever os dentes deslocalizados e deformados. Uma sonda na barriga servia de canal da alimentação. A cabeça, muito desproporcional em relação aos outros membros, num todo muito pequeno, permanecia de lado, imóvel e espalmada. Os olhos, grandes e curiosos, eram encimados por umas pestanas longas e elegantes. Todo o corpo formava uma indescritível geometria. O T. não falava nem se mexia e tinha somente uma atividade autónoma que exercitava até à exaustão: comunicava com um grande sorriso e um pequeno som que lhe associava. E se, mais uma vez, durante a higiene, alguém lhe partia ou deslocava um dos seus ossos tão frágeis (tão impossível não o fazer!), ele deixava fugir um som seco... e sorria. Só parava de o fazer, momentaneamente, quando alguém o levantava para o recolocar numa outra posição. Adorava ouvir música, conversar silenciosamente por afetos e, sobretudo, apreciava um bom passeio ao sol, deitado na sua contínua cama. Num dia muito difícil para o T., perguntou-me uma cuidadora – com olhar humedecido – enquanto lhe mudava a roupa: “é pecado desejar a morte a este menino? E sabe, até o amo mais do que os meus filhos”. Não soube, não sei ainda o que lhe responder, mesmo que lhe reconheça sobretudo o amor dorido perante o sofrimento de quem ama. O T. morreu pouco tempo depois. Sei somente duas coisas da sua vida: a) o T. irradiou todos os dias da sua vida um sorriso puro e contagiante; b) se não tivesse usufruído do sorriso do T., este texto não seria escrito por um padre. Espero, um dia, pedir ao T. que me ajude a interpretar o milagre da sua vida em mim; e saber explicar a fé profunda e inefável de que a vida humana vale a pena ser vivida em todas as circunstâncias.

2. O que nos faz seres humanos? O facto de pensarmos, sentirmos, esperarmos, raciocinarmos, amarmos...? O facto de fazermos perguntas? E se, por qualquer razão, estivermos privados de uma dessas capacidades ou, ainda que subjetivamente, de todas elas? Continuaremos a ser humanos e a merecer ser tratados como tais? Uma pessoa com Alzheimer, uma criança na barriga da mãe, um pessoa com deficiência profunda é ser humano em razão de quê? Mais do que interrogações académicas, decretos jurídico-legais ou pronunciamentos doutrinais, interrogo-me sobre a popular concepção de ser humano. Adensando a pergunta, por contraposição, o que nos distingue dos “bichos”? Sim, daqueles “bichos” domésticos a quem já reconhecemos direitos, rudimentares formas de emoção e paradoxais gestos “altruístas”: “ao meu cão só lhe falta falar”, afirma-se, rematando com a tradicional expressão “e tem mais sentimentos que muitos humanos”.

3. Creio na vida interna. A questão, aqui, não é a certeza da existência de vida interior, aliás diagnosticável cientificamente. Não são os reconhecimentos bio-psico-sociais que estão em causa. É a pertinência absoluta da fé nessa vida, infinitamente válida e digna de ser vivida e respeitada, porque fundamentalmente fruto gerado de um homem e de uma mulher; é o reconhecimento de uma espiritualidade inscrita e de uma ética consequente. Em última análise, a fé na alma humana, divina porque profundamente humana; talvez aquela “estátua interior” de que falava François Jacob, prémio nobel da medicina em 1965.

4. António Lobo Antunes, escritor e médico, conta numa entrevista que, um dia, uma senhora pediu-lhe para passar só uma embalagem em cada receita porque não tinha dinheiro para tudo e depois aproximou-se e disse-lhe: “sabe, é que quem não tem dinheiro não tem alma”[1]. Não estamos longe deste diagnóstico mas podemos manter distante esta sentença de morte. O T. garantiu-me: há vida interna.



[1]Isabel LUCAS entrevista António LOBO ANTUNES, Escrevo porque não sei dançar como o Fred Astaire, Público. Ípsilon, 7. 11. 2014, 6-10.