Arquidiocese de Braga -

4 novembro 2017

A morte e a eternidade

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Saber, como sabem os cristãos, que tudo o que foi unido no amor nunca desaparecerá oferece serenidade.

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por Eduardo Jorge Madureira Lopes

 

O início de Novembro é, como habitualmente, tempo de os jornais se esforçarem por falar de outro modo sobre a morte. O francês La Croix recordou o que uma jovem judia holandesa de 28 anos, Etty Hillesum, escreveu no seu memorável Diário: “Já acertei contas com a vida […] Dizendo: ‘já acertei contas com a vida’, quero dizer: a perspectiva da morte está integrada na minha vida; olhar a morte de frente e aceitá-la é parte da vida, é dilatar a vida. Pelo contrário, sacrificar desde já à morte um pedaço desta vida, por medo da morte e recusa de a aceitar, é o melhor meio de ficar apenas com um pobre fragmento de vida mutilada, que a custo merece o nome de vida. Isto parece um paradoxo: excluindo a morte da vida fica-se privado de uma vida completa e acolhendo-a dilata-se e enriquece-se a vida.”

O texto foi escrito no dia 3 de Julho de 1942 – tinha Etty Hillesum 28 anos – quando a ocupação nazi da Holanda lhe impunha o pressentimento da iminência da morte, que ocorreria no ano seguinte, no mês de Novembro, em Auschwitz. Pode aprender-se muito com Etty Hillesum e o filósofo francês Martin Steffens foi buscar à passagem citada o tom de um livro (L’Éternité reçue), cuja publicação, há poucas semanas, justificou a entrevista ao diário La Croix.

Ter deixado de acreditar no além tem um impacto na sociedade”, dizia o título da conversa, durante a qual Martin Steffens afirma que a angústia de deixar escapar alguma coisa alimenta a sociedade de consumo. Em muitos dos que descrêem no além, ainda assim, detecta o filósofo algo de positivo: “o sentido da urgência, a urgência de ser feliz”. O que Martin Steffens julga, contudo, inquietante é a circunstância de esse sentido de urgência se encontrar desprovido de qualquer paz. Acreditar no além, em contrapartida, suscita idêntica urgência, todavia tranquila. É que saber, como sabem os cristãos, que tudo o que foi unido no amor nunca desaparecerá oferece serenidade.

O filósofo cita santo Agostinho, que diz que a cidade celeste se constrói no coração da cidade terrestre, sendo no coração desta vida terrestre, nos pequenos gestos, na fidelidade a um labor quotidiano, que estamos em vias de inventar a nossa vida celeste. A vida eterna não é esta vida terrena prolongada indefinidamente – esse é o sonho do transhumanismo que só tem um além tecnológico, julga Martin Steffens – nem uma vida completamente nova sem qualquer relação com a que agora e aqui se vive. A ressurreição anunciada por Cristo é a ressurreição desta vida. É agora que, pelo amor, se passa da morte para a vida.

Só temos uma vida e ela é eterna, escreve Martin Steffens, enfatizando que é, portanto, necessário ter presentes simultaneamente as duas coisas: a irreversibilidade da vida e a sua eternidade. É que, se apenas tivermos em conta o primeiro aspecto, confrontamo-nos com este apelo angustiado – e nunca saciável – para tirar o máximo proveito da vida, através, por exemplo, do trabalho excessivo ou do divertimento sem limites. Isto não significa, claro, que se abdique de viver integralmente a vida, como os que julgam que a crença na vida eterna implica o conformismo, justifica qualquer tipo de acomodamento perante a injustiça e a infelicidade, não percebendo que a eternidade começa já a construir-se no presente.

Martin Steffens enuncia um convite, que outros, aliás, também já formularam, a que esta vida seja vivida em plenitude, não por medo de, em breve, a perder, mas porque, prometida a eternidade, não há, de facto, nada a perder. Tudo é para ganhar.


FONTE: Diário do Minho, 5 de Novembro de 2017, p. 2.


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