Arquidiocese de Braga -

6 maio 2021

Meritocracia? Uma ilusão que justifica desigualdades

Fotografia DR

DACS

Porque precisamos de um debate público sobre o valor da justiça social e pessoal.

\n

A meritocracia goza hoje de uma reputação estranha. Muitos políticos, empresários, expoentes da sociedade civil promovem a sociedade meritocrática como uma sociedade à medida da humanidade, a única que atende as suas necessidades de justiça social; muitos filósofos, economistas, cientistas políticos, sociólogos, por outro lado, vêem a meritocracia como uma ideologia que legitima as desigualdades, uma falsa promessa de mobilidade social e igualdade de oportunidades. Como numa vida dupla, a meritocracia é o Dr. Jekyll no debate público e  Hyde na academia – com as devidas excepções de parte a parte. A questão, então, não é sobre as razões ou os erros de uma parte em relação à outra, mas sobre a natureza da ambivalência inerente à meritocracia.

Para tentar desfazer um novelo complicado, a Universidade de Cardiff e o grupo de pesquisa “Herdeiros” (Felicidade e Relações em Economia) organizaram um dia de estudo e reflexão online sobre o tema da meritocracia no dia 15 de Abril. The Illusion of Merit, a ilusão do mérito: o título escolhido para o workshop mostra a consciência de que as questões essenciais relacionadas com a meritocracia estão ligadas ao tema do mérito. Quatro palestrantes de renome internacional – Jo Littler (City University of London), Robert Sugden (University of East Anglia), Daniel Markovits (Yale) e Robert H. Frank (Cornell University) – e dezesseis académicos e estudiosos de diferentes áreas (economia experimental, economia empírica, filosofia, teologia, sociologia, ciência política) discutiram a situação actual dos estudos sobre a meritocracia, sobre os problemas e os futuros  desafios relacionados com um tema que, tanto os seus opositores como os seus defensores, consideram central para as sociedades contemporâneas. Decidimos relatar aqui algumas das suas reflexões, que são também as nossas reflexões: queremos fundamentar um debate público que desde há algum tempo tem sido perigosamente autorreferencial.

A meritocracia é apelativa para muitos pelas promessas inerentes ao seu ideal: a valorização do empenho individual e do trabalho, a luta contra os privilégios, a mobilidade social que, para usar as palavras de Adam Smith, corresponde ao desejo de melhorar as nossas condições (desire to better one’s conditions). Seria um erro, ao criticar a meritocracia, não reconhecer a importância e a legitimidade dessas promessas. Fora do partidarismo, perguntemos a nós mesmos o que elas implicam e quais são mantidas em sociedades meritocráticas. Primeiro, vamos tentar entender se o sucesso é sempre equivalente ao mérito. Se fosse esse o caso, a reivindicação da meritocracia de separar os poucos “merecedores” dos muitos “merecedores” seria totalmente fundamentada. Ao longo da história, as oligarquias, os governos de poucos, sempre tentaram apresentar-se como aristocracias, os governos dos melhores (poucos). A meritocracia parece adequada a essa função. No entanto, quando examinamos mais profundamente os sucessos individuais na escola, nos desportos, na política, na economia, vemos que há muito mais do que mero mérito.

Existe a ajuda de outras pessoas, uma boa dose de talento natural, a possibilidade de educação gratuita, mas também o que Frank chama de luck, sorte ou puro acaso. Todos os factores não baseados no mérito que, somados aos nossos méritos, contribuem para o nosso sucesso. No seu texto “Success and LuckFrank”, o autor conta-nos como, imbuídos de ideologia meritocrática e da ideia de que a medida do sucesso de alguém é a soma dos seus méritos, alguns políticos norte-americanos se opuseram a políticas redistributivas e de bem-estar. Porquê ajudar os outros se eu, apenas com a minha força, cheguei ao topo?

É curioso que tal raciocínio também esteja muito difundido no meio empresarial, como se houvesse uma ligação secreta entre a meritocracia e a economia de mercado. Na realidade, a tradição liberal e as suas diferentes almas, como Knight, Hayek e até Rawls, sempre souberam que o mercado não é um lugar meritocrático. Sugden, herdeiro desta tradição, explicou-nos que o mercado é antes uma escola de humildade para o ideal meritocrático, pois a recompensa das acções individuais não depende do seu valor intrínseco, mas sim do valor que os outros atribuem aos nossos esforços. Se eu me comprometer a produzir coisas que ninguém quer comprar, não poderei invocar os meus “méritos” como recompensa. Num caso diferente, eu poderia produzir coisas altamente apreciadas e receber uma alta remuneração, mas, consoante mudam os gostos e preferências, ou outras circunstâncias socioeconómicas, as pessoas podem estar menos dispostas a pagar o fruto do meu trabalho: a quem apelarei então?

Quem procura meritocracia no mercado está destinado a ficar (parcialmente) desapontado. O que é certo é que, como Hayek disse no seu “Law, Legislation and Freedom”, uma sociedade de mercado dificilmente sobreviveria sem “a ilusão do mérito” – quem sairia da cama para trabalhar sem pensar que os esforços de hoje serão adequadamente recompensados ​​amanhã? Talvez seja por isso o que Jo Littler definiu como défice meritocrático, ou seja, a aceitação da equidade e da legitimidade da lógica da meritocracia, mesmo diante de evidências irrefutáveis ​​de que o sucesso e o mérito não são a mesma coisa. Como se tivéssemos uma necessidade inata de meritocracia, além da esfera da razoabilidade.

Esse mecanismo de autoengano é tão difundido que as pessoas às vezes criam “méritos imaginários” para os bem-sucedidos e, talvez ainda mais preocupante, “deméritos imaginários” para aqueles que estão na base da escala social, os últimos, os descartados, os pobres. A ideologia dos amigos de Jó volta a ser dominante: o demérito é culpado. Nunca ninguém diz isso explicitamente, mas por trás de tantos discursos, hoje como ontem, está a ideia de que a pobreza é um defeito. Afinal, o verdadeiro grande problema da meritocracia é que ela justifica e legitima as desigualdades. Como se as desigualdades, que sempre existiram, e talvez sempre existam, precisassem de advogados de defesa. É evidente que se compararmos meritocracia e clientelismo, o discurso já está distorcido. A verdade é que a meritocracia se tornou a legitimação ética da desigualdade, em nome de um grande mal-entendido: que talento é mérito (e não um dom). O outro efeito colateral diz respeito à pobreza: se o talento é mérito e, portanto, abençoado, o não talento torna-se demérito e amaldiçoado. A pobreza como maldição cresce juntamente com a meritocracia, basta ver o que acontece nos países mais meritocráticos do mundo.

Então o que fazer? Meritocracia sim, ou meritocracia não? Propomos sair do estéril ou-ou para propor um debate público sobre a desejabilidade da meritocracia e sobre o conteúdo das acções meritórias que as empresas desejam recompensar. Um exercício de reflexão colectiva, talvez através do instrumento da democracia deliberativa, onde os muros entre a academia e a sociedade podem finalmente ruir. A justiça social, ligada às nossas necessidades profundas de justiça pessoal, é um dos bens comuns mais preciosos de que dispomos. Mas se não encontrarmos um modo de a salvaguardar como um todo, corremos o risco de destruí-la. Pensemos nisto!

Artigo de Luigino Bruni e Paolo Santori, publicado em Avvenire a 5 de Maio de 2021.