Arquidiocese de Braga -
23 outubro 2021
Comunidades seguras
Discurso do Arcebispo Primaz na Formação “Por comunidades sãs e seguras”
Nos meus tempos de Seminário via a Sagrada Escritura como um livro a estudar para depois explicar aos outros. Não era uma simples teoria. Encerrava conceitos que geravam comportamentos e opções.
Mais tarde, fui levado à experiência da prioridade da Palavra de Deus que deveria ser estudada no rigor das ciências humanas mas que, sobretudo, deveria gerar vida. O centro não estava no conhecimento. Estava na inspiração e teria de se tornar palavra de vida, como geradora de uma mentalidade a explicitar-se em actos e comportamentos de vida.
Com esta consciência da prioridade da Palavra, procurei que todos os anos a nossa pastoral partisse de uma passagem escriturística. Algo era explicitado, muito mais se deveria esperar da criatividade do Espírito. Nesta lógica, para o triénio de 2020-2023 escolhemos uma passagem emblemática, muito conhecida mas talvez pouco geradora de vida. Queríamos que as comunidades fossem espaços de amor na dupla vertente do material e do espiritual. Importaria estar atento às contradições e sublinhar os desafios. Peço desculpa por a ler.
Em resposta, disse Jesus: “Um homem descia de Jerusalém para Jericó, quando caiu nas mãos de assaltantes. Estes lhe tiraram as roupas, espancaram-no e se foram, deixando-o quase morto.
Tomando a palavra, Jesus respondeu: «Certo homem descia de Jerusalém para Jericó e caiu nas mãos dos salteadores que, depois de o despojarem e encherem de pancadas, o abandonaram, deixando-o meio morto. Por coincidência, descia por aquele caminho um sacerdote que, ao vê-lo, passou ao largo. Do mesmo modo, também um levita passou por aquele lugar e, ao vê-lo, passou adiante. Mas um samaritano, que ia de viagem, chegou ao pé dele e, vendo-o, encheu-se de compaixão. Aproximou-se, ligou-lhe as feridas, deitando nelas azeite e vinho, colocou-o sobre a sua própria montada, levou-o para uma estalagem e cuidou dele. No dia seguinte, tirando dois denários, deu-os ao estalajadeiro, dizendo: ‘Trata bem dele e, o que gastares a mais, pagar-to-ei quando voltar.’ Qual destes três te parece ter sido o próximo daquele homem que caiu nas mãos dos salteadores?» Respondeu: «O que usou de misericórdia para com ele.» Jesus retorquiu: «Vai e faz tu também o mesmo.»”. (Lc 10, 30-37)
Nesta passagem entram quatro homens em cena. Um sacerdote, um levita, um samaritano, um ferido. A centralidade está no ferido. Podemos, porém, tentar descortinar as razões dos comportamentos dos outros três. Espero que compreendam a minha exegese. O sacerdote e o levita não pararam e são apresentadas muitas razões para a sua pressa. O horário no templo a cumprir, o não sujar as mãos com o sangue que tornava impuro, a desconsideração e o desinteresse. Ouso deixar uma alternativa, que não justifica o comportamento. Na comunidade tinha uma tarefa muito concreta. Os levitas surgem na Bíblia especialmente por serem pessoas separadas para cuidar das questões do santuário e do culto a Deus, o seu ministério era de auxílio aos sacerdotes, guardiões do templo, que deveriam proteger. Também ensinavam a Lei do Senhor ao povo. No reinado de Josefá, percorreram as cidades do Reino com o Livro da Lei. Os sacerdotes, superiores em hierarquia, eram pessoas totalmente dedicadas às coisas sagradas, ofereciam sacrifícios e louvores a Deus mas sobretudo ensinavam o povo a caminhar na obediência a Deus, a orientar as pessoas para viverem no agrado ao Senhor. Sabemos que depois da saída do Egipto, Deus estabeleceu várias leis e preceitos, descritos ao pormenor, com o intuito da adoração e da orientação da vida para Deus. Eles próprios tinham várias regras a cumprir mas particularmente competia-lhes ensinar e ajudar as pessoas a agradar a Deus.
Sacerdotes e levitas tinham este encargo de encontro com Deus e ensinar os caminhos da lei. Não estavam dispensados de a cumprir. Tinham o coração noutro local.
O Samaritano é um homem comum, sem nome, representante de todos, sem encargo de ensino, poderia, se a sua generosidade o aconselhasse, dedicar-se mais concretamente ao próximo, ele que não pertencia à comunidade hebraica.
Não sei se é justo, se exegeticamente correcto, encontrar aqui um grupo a lutar para manter a pureza da lei, pelo cumprimento integral do estipulado, a prevenir tudo quanto pudesse acontecer na convicção de que seria mais importante consciencializar para que o mal não acontecesse. As tentações exteriores eram muitas mas era necessário elevar o espírito tornando o ambiente seguro e longe de maus comportamentos.
Depois os casos aconteciam. O amor autêntico ao próximo, de respeito pelo alheio, de atenção à dignidade eram desconsiderados. Surgia o anonimato do Samaritano que representa a comunidade unida, com gestos concretos e a intervir na restituição da dignidade.
Neste processo de cuidar por uma cultura de protecção e bom trato de crianças e menores, vejo esta importância igual. Prioridade das prioridades são as comunidades seguras e tranquilas. Manter um nível de formação elevado para que o respeito por todos, menores ou adultos vulneráveis, seja norma sagrada e inquestionável. Na pastoral ordinária, nos seus diferentes intervenientes, os sacerdotes e os levitas de outras, não podem atenuar ou permitir distrações. Poderemos pensar que há novidades nos comportamentos. Deveríamos dizer foi sempre assim e terá de ser assim. Para tudo, nas comunidades a formação é imprescindível. Estávamos habituados a comportamentos iguais. Sabemos que hoje o inimigo, não só nesta área mas em tantas outras, está à espreita. Não podemos esperar que as coisas aconteçam. Teremos de agir proactivamente, investindo talentos e capacidades para que nada aconteça.
A formação para estas coisas devem pertencer à área dos comportamentos habituais e fazer parte das agendas, cumprindo quanto nos está a ser determinado. Começamos a ter experiência de trabalho. Não começamos no zero. Com toda a certeza que iremos aperfeiçoando critérios. A urgência de estarmos preparados tem de ser assumida por todos.
Depois o outro aspecto da parábola do Bom Samaritano, aprendemos a descodifica-la perante os hipotéticos casos que possam surgir. Não esqueçamos de uma coisa. O programa pastoral da Arquidiocese é substrato para tudo. Estaremos tentos às feridas que queremos cuidar com gestos. O Evangelho obriga a tomar à letra: “chegou ao pé dele, vendo-o, encheu-se de compaixão, aproximou-se, ligou-lhe as feridas, deitando nelas azeite e vinho, colocou-o sobre a sua própria montada, levou-o para a estalagem, cuidou dele”.
No agir nunca esqueçamos que só Cristo é o Bom Samaritano. Tenhamos esta ideia clara. O cristão é o estalajadeiro que talvez não esteja habituado a estes cuidados, mas terá de estar se surgir, aprendendo e não tendo toda a ciência necessária. A Igreja é a estalagem onde se cura e gasta tempo e dedicação.
Tudo muito bem sintetizado no dizer de S. Bartolomeu dos Mártires. A paróquia é o hospital de Deus onde se exerce medicina preventiva. Basta estar atento para se aperceber, onde se exerce a arte de cuidar com tudo o que isto implica não apenas de um lado, vítimas, mas de todos, possíveis agressores. Que os hospitais das nossas comunidades sejam lugares de respeito e de amor positivo a todos.
† Jorge Ortiga, Arcebispo Primaz
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